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segunda-feira, 24 de junho de 2024

O MISTÉRIO DA ILHA - DIA CLARO E COM MISTÉRIO - ATIVIDADES

 

O MISTÉRIO DA ILHA

 PDF DO LIVRO: https://doceru.com/doc/n1ssecn

1. Dia claro e com mistério

 

        O dia era lindo, tão lindo quanto se puder imaginar. E Carlos estava de férias. Quer dizer, não precisava acordar cedo. Mas, mesmo assim, acordou. Talvez por causa da luz que entrava tão clara pela janela. Talvez por causa do hábito do horário da escola. Talvez por causa de um sonho esquisito que agora fugia da cabeça sem que ele conseguisse lembrar, apesar de fazer força. Tudo se desmanchando, sumindo para longe, por mais que a curiosidade fizesse com que ele tentasse agarrar as imagens na memória. Como se a luz do dia e o ato de abrir os olhos derretessem tudo o que ele tinha visto e vivido naquela misteriosa região do sono. Nem mesmo sabia se era um sonho bom ou um pesadelo. Só tinha certeza de que era muito nítido, como uma coisa vivida de verdade. E agora estava esquecendo, que droga!

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         Mas já sabia que, quando acontece isso, o melhor é a gente não ficar forçando. Mais tarde, a lembrança do sonho volta. Na hora que ela quiser, porque não dá para comandar muito esses assuntos. Pelo menos, ele, Carlos, não conseguia.

        De qualquer jeito, o que importava agora é que tinha acordado. Por isso, o melhor era levantar.

        Foi até a janela e olhou o dia que começava.

        Lá embaixo, do outro lado da rua e da calçada, dos coqueiros e da areia, o mar de água clara se espreguiçava.

        Como se também estivesse acabando de acordar. Mas, também, como se estivesse chamando o menino para perto dele. Não do jeito manso que o mar sabe chamar quando a gente encosta um búzio no ouvido, uma voz que vem de longe. Mas do jeito urgente que a água verde usa para atrair quem nasceu e vive na beira do seu movimento salgado. Aquele jeito cheiroso e, de repente, o jeito que faz a gente largar tudo o que tem para fazer e sair correndo para junto do mar.

        Foi o que Carlos fez. Nem teve dúvidas. Abriu a gaveta, pegou um calção, vestiu uma camisa colorida, apanhou um impermeável para o caso de alguma emergência e num instante estava na sala. Engoliu o café às pressas, reclamando da demora:

        - Puxa, Maria, que lesma... Anda logo com isso, que eu não posso perder tempo... E prepare um lanche para eu levar. Depressa, que eu vou passar o dia no mar.

        Quando Carlos queria uma coisa, era sempre assim. Queria porque queria porque queria. Feito uma criancinha teimosa. Pouco estava ligando para os problemas dos outros. Estava mesmo acostumado a que fizessem tudo para ele. Já de saída, avisou à mãe:

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        - Vou sair de barco.

         A resposta veio um tanto preocupada:

        - Sozinho, meu filho? Você sabe que eu não gosto...

        - Bobagem, mãe, já estou grande, sei velejar direito. Afinal de contas, desde pequeno que não faço outra coisa com papai todo domingo. E depois, não vou sozinho. Vou chamar o Chico. Ele vai comigo e me dá uma mão. O mar está calmo, o vento está ótimo, não tem nem uma nuvem no céu...

        A mãe insistiu:  

        - Mas Chico é da sua idade, meu filho... Não é a mesma coisa que sair com um adulto.

        - Fique descansada, mãe. A gente não vai longe. Vamos só ficar dentro da baía, não tem nem onda... Como das outras vezes. Não se preocupe. Tchau.  

        Desceu as escadas apressado, acabando de fechar a sacola onde tinha jogado de qualquer maneira as frutas e os sanduíches que a empregada lhe entregara. Ainda se preocupou um pouco: e se não encontrasse Chico? O chato de só resolver sair de barco em cima da hora é que podia ser que o companheiro tivesse ido fazer outra coisa. E sozinho, Carlos não podia ir. Não sabia nem manobrar a embarcação direito.

        Mas Chico estava no cais. Com um bando de amigos, preparando-se para soltar pipa. Pipa que ele mesmo tinha feito. Chico era danado de jeitoso. Fazia cada coisa linda - pipa, balão, espingardinha de cabo de guarda-chuva, atiradeira. Consertava tudo. Dava jeito em tudo. Fazia milagres com seu inseparável canivete. Era um bamba na bola de gude. Um craque no futebol. E ainda soltava pipa como ninguém.

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        Chico, vamos sair de barco - avisou Carlos, em tom de mando.

        Dava para ver que Chico não tinha gostado da idéia. Em volta, os amigos todos olhavam, esperando, de pipa na mão. Ele ainda tentou reclamar:

         - Mas, Carlos, você não tinha avisado nada... Eu já tinha combinado outra coisa. Está uma brisa ótima, a gente ia soltar pipa.

        - Não avisei nada porque não sabia, não podia adivinhar. Só hoje de manhã é que me deu vontade. Essa tal brisa ótima de que você falou... Anda logo. Estou te esperando lá dentro.

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        E enquanto Chico suspirava, ainda veio outra ordem:

        - Ah, vê se arruma também qualquer coisa para matar a sede. Eu só trouxe comida...

        Com suspiro ou sem suspiro, que jeito? Chico tinha mesmo que perder seu programa. Afinal de contas, assim é que eram as coisas, desde que ele se entendia por gente. O pai de Carlos pagava. O pai de Chico recebia. O pai de Carlos mandava. O pai de Chico cumpria. E, se Carlos ordenava, a pipa de Chico ficava mesmo para outro dia.

        Providenciou tudo. E num instante estavam saindo. Bom filho de marinheiro, ajudando o pai desde pequeno, Chico era um mestre nas coisas do mar. Gostava de domar a brisa, cavalgar as 8 ondas, empinar na arrebentação, deslizar no sol. Soltar as velas ao vento era com ele mesmo. Só tinha se aborrecido porque nesse dia seu encontro com o vento devia ser outro, em terra, de pipa na linha, na companhia dos amigos... Pelo menos, era o que tinha planejado. Mas Carlos até que podia ser bom companheiro - às vezes. E o passeio, afinal, era bom. Dava gosto sentir o calor do sol e os respingos da água, ouvir o cabo da vela gemer de vez em quando, ver passar uma gaivota, descobrir o brilho de um peixe pulando ao longe.

        Por sua vez, Carlos estava feliz. Tinha sido boa a idéia de aproveitar o barco que o pai só usava no fim de semana. Um passeio lindo. O mar azul, encontrando o céu claro lá longe, um dia limpo, sem nuvem nenhuma... Sem nuvem? E aquela ali na frente, tão perto? Seria capaz de jurar que ela tinha se formado de repente, justamente naquele instante, não estava ali ainda há pouco, tinha certeza. Tinha olhado naquela direção há pouquinho, não havia nada. Ia exatamente comentar alguma coisa, quando ouviu a voz de Chico reclamar:

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        - Mas que neblina mais esquisita aí na frente...  

        - Também achei - concordou Carlos. - E se formou de repente, ainda agora não tinha nada.

        - Nunca vi uma neblina desse jeito, assim tão esquisita...

        - repetiu Chico, e sua voz mostrava que ele estava meio assustado.

        Carlos também estava, mas tentou dar um palpite fingindo calma. Afinal de contas, ele era uma espécie de capitão daquele barco e não podia dar a impressão de que estava com medo.

        - Vamos desviar dela, Chico.

        - Se a gente pudesse, bem que eu desviava. Mas é que ela não está desviando da gente, veja só. A gente muda o rumo do barco e ela também muda. Está vindo para cá, na direção da gente, e bem depressa.

        Estava mesmo.

        Num instante estavam inteiramente cercados.

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1. Qual o título do livro?

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2. A partir da leitura do título do livro o que você imagina que irá acontecer?

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3. Qual o nome da autora?

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4. Quais são os personagens principais dom primeiro capítulo?

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5. O Que o pai de Chico era do pai de Carlos?

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6. Qual era o nome da empregada?

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7. O que cercou o barco?

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8. Como era a personalidade de Carlos?

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domingo, 23 de junho de 2024

O MENINO MARROM - ATIVIDADES

 

O  MENINO MARROM

          Era uma vez um menino marrom. Ele era um menino muito bonito. Acho que dá para se ter uma ideia pelo desenho (que está logo aí, na virada da página). Caprichei no desenho do menino, mas acho que ele era muito mais bonito pessoalmente. Vou ter até que ajudar com algumas informações, que é para a descrição do menino marrom ficar mais completa.

        Sua pele era cor de chocolate. Chocolate puro, não aqueles misturados com leite (não gosto de chocolate com leite, daí achar a cor do chocolate puro mais bonita).

        Os olhos dele eram muito vivos, grandes. As bolinhas dos olhos pareciam duas jabuticabas: pretinhas. Aliás, pretinhas, não, Jabuticabas não são pretas. Para falar a verdade, tem muita pouca coisa, realmente preta na Natureza.

        Se você for examinar bem a jabuticaba, descobrira que ela é roxa muito preta. Preta mesmo, não é. Mas deve ter coisas pretas muito pretas na Natureza. Que tal cabelo de gente? Olha, dizem os estudiosos e especialistas que não existe cabelo humano absolutamente preto. Você sabia?

         Ah tem pelo de animal! A pantera é preta, as manchas do couro de boi são pretas, o gato preto é preto. E pretas são as asas da graúna, como são as do urubu, as do  anum, as do condor e as do assum preto.

        E no Reino Vegetal, o que é que tem que é preto mesmo, absoluto? Aquele olhinho  do fruto do guaraná, acho que é preto de verdade. E tem o azeviche. Vocês conhecem aquela canção que diz “Boneca de Piche, da  jabuticaba, cor do azeviche..?"

        Pois é, azeviche deve ser preto mesmo pois o Lamartine Babo — autor da música — não iria mentir pra gente. Mas... espera aí: azeviche não é vegetal. Ou é: Bom: o que parece preto mesmo, preto definitiva na Natureza, é o carvão. Fica assim: o carvão é o preto absoluto, pronto.   

        E vamos deixar de ficar falando neste negócio de preto, pois a nossa história é do menino marrom.

        Entrei nessa do preto, de repente, porque este assunto vai rolar daqui a pouco. Só que é um assunto do menino marrom e não meu.

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        Como diria o riacho imitando o espelho: "Que menino é esse aí?' Pois é o menino marrom. E vamos tratar de terminar sua descrição para que vocês o conheçam melhor. Já falei dos seus dentes? Ihhh, vai começar outra longa conversa para explicar que não existem dentes absolutamente brancos. E realmente, não existem. Se você ficasse com a boca cheia de dentes brancos como a neve, você iria ficar ridículo, parecendo um vampiro sem presas.

        Quando os dentes são o mais próximo do branco, a gente diz que eles são clarinhos. Aliás, até repete: "Clarinhos, clarinhos!"

        Pois o menino marrom tinha os dentes claros, certinhos, certinhos. Pareciam as teclas de um piano, sem as cáries (vocês sabem: os bemóis e os sustenidos são as cáries do piano).

        Quando o menino ria, era aquela luz no meio do seu rosto marrom. O branco dos olhos diminuía, ficavam aqueles dois tracinhos assim, no lugar dos olhos: um traço de cada lado do nariz. Mas o brilho das duas jabuticabas permanecia.

        Os cabelos eram enroladinhos e fofos. Pareciam uma esponja. Logo depois do banho, quando seus cabelos secavam, era um prazer ficar fazendo assim, com os dedos em gancho, fofando a cabecinha do menino marrom. Sempre achei que seus cabelos eram pretíssimos. Mas, um dia, um amigo, especialista em identificação do Instituto Félix Pacheco, me disse "Não existem  cabelos humanos absolutamente pretos, você sabia?"

        Falta descrever as bochechas do menino marrom, seu queixinho pontudo, sua testa alta, bem redonda, tudo harmoniosamente organizado no seu rosto. E, finalmente, falta descrever seu nariz. Nariz de menino marrom nunca é pontudinho. Ele cresce mais para os lados do que para a frente. O do menino marrom era feito de três bolinhas surgidas assim, de repente, no meio do rosto. Uma bolinha maiorzinha no meio e duas menorzinhas, uma de cada lado, em volta das narinas. Um desenho perfeito.

        Deixei o nariz para o final   porque o nariz do menino marrom tinha uma qualidade especial. Tem gente que exprime suas emoções através dos olhos. Outros se revelam nos movimentos dos lábios. Tem pessoas até que ficam mexendo com a boca, sem perceber, fazendo todos os movimentos dos lábios de quem está contando um caso emocionante para elas; se espantam, sorriem, xingam, choram, sem fazer qualquer barulhinho. Tem outras que se emocionam só com os músculos do rosto. Vocês já notaram? O olho fica parado, a boca também, tudo no seu lugar, imóvel, só os músculos da face é que se movem, o maxilar fica se mexendo Como água de piscina, comprimido pelos dentes (morro de medo de gente assim). E tem ás pessoas que se, emocionam com o nariz. Levam um susto, prestam atenção ou ficam ansiosas e só movimentam as abichas das ventas. Se ficam muito alegres, as narinas se dilatam sem a pessoa perceber, como se pedissem mais ar, mais alegria.

        Pois é: o menino marrom tinha um nariz muito expressivo.

        No mais, ele era magrinho, de joelhos redondos e perninhas finas – as perninhas dele pareciam aquelas pilastras antigas, o peito era quadradinho

 

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e os ombros, também: um corpo muito bonito de atleta futuro; os pés eram grandes grandes mesmo! — para o tamanho dele. E viviam metidos num velho par de sandálias de dedo. O menino marrom estava tão acostumado com aquelas sandálias que era capaz de jogar futebol com elas, apostar corridas, saltar obstáculos sem que as sandálias desgrudassem de seus pés. Vai ver, elas já faziam parte dele...

 

          Agora, falta falar se ele era alegre ou se era triste, se era um boa praça ou se era  um chatinho. Não, chatinho ele não era. Era, isto sim, muito curioso (e se existe gente grande que não tem paciência com menino perguntador, não é o menino que é o chatinho).

        Confesso que, às vezes, ele exagerava.

        Um dia, na beira da praia, olhou o mar — longamente... — pensou um pouquinho, olhou para a tia que o havia levado à praia e perguntou: "Tia, quando você nasceu já tinha mar?" Esta a tia respondeu na hora, bem zangada. Afinal, ela estava levando o sobrinho à praia porque não tinha filhos nem marido, mas também não era tão velha assim que tivesse visto Deus fazer o mar ou não pudesse mais se casar.

        Todo mundo sabe a hora a em que a criança vira um perguntador permanente. Dizem que ela chegou à idade do por que. Por que a água escorrega? Por que o fogo é quente? Por que eu tenho que ir dormir? Por que eu não tenho irmão? Mãe, por que a sua barriga ficou grande? Pois todas essas perguntas, o menino marrom fez ou fazia. E fazia outras mais complicadas ainda. Um dia ele se chegou para o pai e perguntou: "Pai, quem nasceu primeiro o ovo ou o índio?"

        Se as perguntas do menino marrom eram complicadas, precisava ver as respostas. "Por que você quebrou todas as coisas da mamãe?" E ele: 'E que a senhora deixou o tio tomando conta de mim e ele não tomou direito."

        O menino marrom morria de medo de cachorro. Certa vez, ele vinha passeando na pracinha pela mão de uma prima mais velha, quando viu um cachorrinho vindo em sua direção. Ele segurou a mão da prima e gritou: "Me protege, que eu estou com um medo!!! "Assim mesmo: "Me protege! " Era destamaninho e já falava essas palavras difíceis. A prima, muito pacientemente, explicou para ele que não tinha perigo, que era apenas um cachorrinho indefeso. Aí, apareceu outro cachorro na história. E mais que depressa o menino gritou para a prima: "Socorro, porque agora eu estou com dois medos!"

        E o que o menino marrom inventava em casa? Nem sabia ler ainda e já jogava damas com o pai, às vezes comia quatro pedras em carreirinha.

       Além disso, ele inventava seus próprios jogos, cada um mais maluco do que o outro. E nos jogos que ele inventava, só quem ganhava era ele. Não que os jogos fossem uma grande invenção, nada disso. É que, qualquer resultado que desse, a vitória era dele, pois a regra dos jogos mudavam, sempre, de acordo com a vontade do inventor. Era um prazer prestar atenção nas invenções do menino marrom. Sabe? Eu acho que ele era um menino muito inteligente.

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          Não fique triste aí não, você que está me lendo, achando que o menino marrom era mais inteligente e mais vivo do que você. Não era.

         Sabe como é: vai ver, eu estou exagerando.

         Os autores têm mania de ficar valorizando os seus personagens, falando que eles são os mais valentes, os mais brilhantes, os mais inteligentes, os mais corajosos, os mais nobres e leais.

         Personagens levam muita vantagem sobre as pessoas da vida real. É que o autor pode inventar sempre mil mentiras sobre eles, só para valorizar.

        Todo menino da idade do menino marrom é assim: se ele é feliz, se as pessoas gostam dele e se têm paciência para ouvir suas histórias, ele solta toda a sua vivacidade.

        Menino é mais criativo do que adulto, sabe por quê? Porque adulto já viveu muito e já aprendeu dos outros. Menino tem que inventar, enquanto não aprende.

        Lembro-me de uma vez que minha, filha mais velha tinha assim a idade do menino marrom —ainda não sabia ler, mas já frequentava o jardim — e eu estava passeando com da e a irmãzinha mais nova pela Zona Sul do Rio de janeiro. Aí, ela ia explicando para a irmãzinha — que tinha uns dois anos — tudo o que via. Passamos pela praia e ficamos olhando o mar agitado, com suas ondas quebrando na areia. E a minha filha mais velha explicou: "Isto é mar." A pequenininha entendeu e ficou repetindo: "Mar, mar, mar..."

        Saímos da praia e fomos em direção à Lagoa. Quando a irmãzinha viu a lagoa serena ali na sua frente, disse para a mais velha: "Olha: mais mar! " E ela explicou: "Isto não ê mar. Isto é lagoa. '

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        Fiquei surpreso por ela saber a diferença e perguntei: "Qual é a diferença entre mar e lagoa?" E ela explicou para mim e para a irmã: "E que mar pula e lagoa não pula. "

        Viu? Algum adulto seria capaz de inventar uma diferença dessas?

        Só criança é capaz de observar as coisas com os olhos de primeira vez.

        Você, por exemplo, que já aprendeu muitas coisas, tem que ficar atento: mesmo aprendendo muitas coisas, a gente não deve esquecer nossa capacidade de inventar. Quanto mais a gente sabe, menos moda a gente inventa. O menino marrom ainda estava na idade de inventar muita moda.

        E ninguém inventa moda sozinho.

        É preciso sempre ter um parceiro. O Tom Jobim fez uma canção linda onde ele fala que "é impossível ser feliz sozinho" . Tipo da descoberta de quem aprendeu tudo e manteve ainda a capacidade de descobrir coisas novas, não é? A gente leva um susto quando ouve uma pessoa dizer assim uma coisa que parece que todo mundo sabe mas que ninguém diz. São as pessoas que fazem essas descobertas — das coisas que estão na nossa cara — que a gente chama de poetas. Como o Tom Jobim.

        Pois é: ele sabia — e sabia dizer — que para inventar moda é preciso um parceiro, alguém para soltar aquele riso frouxo, quando só os dois sabem exatamente de que segredo estão falando.

        O menino marrom tinha um parceiro.

        Como diria o riacho, tão festeiro, tão brincante, tão espelho: 'Que menino é este aqui?" Este é um menino cor-de-rosa. Bem, as crianças não são exatamente cor-de-rosa. Elas só têm essa cor em desenhos e em livros infantis. O problema dos poetas é que a cor da pele não tem um nome exato. Quando, por exemplo, faço uma ilustração para um livro e faço o desenho com traços pretos sobre papel branco, eu indico as cores que quero para cada detalhe. E aí, anoto a lápis, do lado, para o técnico da gráfica colorir meu desenho com seu sistema de filmes coloridos.

          Um dia, mandei o desenho de um personagem para ele e marquei do lado as indicações das cores que eu queria: "Quero amarelo na camisa, verde-escuro na calça e cor de pele no menino. " a técnico da gráfica me ligou de volta: "Escuta, o senhor quer cor de pele branca ou cor de pele marrom?

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         Como este menino que entra agora na história era muito clarinho — o mesmo clarinho que serve para indicar dentes brancos serve também para indicar cor de pele — todo mundo achava que ele era cor-de-rosa. Principalmente porque ele tinha o rosto muito coradinho. Que ele era um menino muito bonito, acho que dá para ver pelo desenho, não dá? Tem algumas diferenças do menino marrom. Aliás, tem algumas muitas.

        O cabelo dele era amarelado —mais para amarelo do que para castanho — lisinho como rabo de cavalo, só que muito, muito fino. Caía na testa e dançava com o vento, de tão leve. Os lábios eram fininhos, como um risco debaixo do nariz. O nariz era pontudinho e os olhos eram meio azuis, meio verdes, meio castanhos, dependia do dia. Sua cor mudava da luz da manhã para a tarde, mudava se ele estava na serra, no meio do mato ou na beira da praia, se era dia de chuva ou se era noite de lua. Toda a expressão do menino cor-de-rosa estava nos olhos. Que brilhavam de alegria, quando ele via chegar o menino marrom com as ventinhas do seu nariz se movimentando também, pedindo mais ar.

        Depois da escola — eles estavam numa escola pública, no pré-primário ou no Jardim, não sei bem — os dois voltavam para casa e brincavam o dia inteiro.

        E como inventavam moda!

        Vou contar uma história dos dois, de quando eles ainda estavam aprendendo as primeiras letras. Uma história ótima! Eles já sabiam que A era a, que B era b, que C era c e assim por D, ou melhor, por diante. Nas páginas do livro dos dois tinha lá os desenhos das letras grandes com as pequenininhas do lado. Um dia, o menino cor-de-rosa viu o menino marrom chegar seguro pela mão do pai e, vendo-o assim ao lado dele, disse: "Ei, você é o minúsculo do seu pai!"

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        Quando as mães dos dois contavam as gracinhas dos seus filhos para as vizinhas, a gente nem sabia qual a história que era de um, qual a história que era do outro. Também, não faria diferença: os dois eram parceiros e, numa boa parceirada, tudo é feito junto.

        Aí vocês vão me perguntar: "Mas eles não brigavam nunca?"

        Ah, isto, brigavam. Claro! Imagina os dois juntos o dia inteiro, a cabecinha de cada um funcionando por conta própria, vê se era possível concordarem em tudo?

        Grandes brigas!

        Muito olho roxo, muita unhada, muito soco no peito. E muito cabelo puxado (modalidade em que só o menino marrom levava vantagem).

        A briga mais famosa dos dois — que os deixou separados e de mal por um tempo enorme — foi a histórica briga do "sou mais eu". Toda a. dupla briga esta briga, um dia. Tem sempre a hora da disputa e esta hora pinta assim, sem nenhuma explicação.

         Pois, os dois estavam ali, numa boa, destruindo as peças de um jogo de armar, quando se desentenderam. Acho que isto foi antes de os dois entrarem para o jardim. Deixa ver... Foi, sim. Eles eram bem pequenininhos. De repente, um deles já meio zangado, falou: "Minha camiseta é vermelha e a sua não é!"

        Ah, pra que? Foi um desafio inaceitável. O outro respondeu, na bucha:

        "Meu short é azul, o seu não é. Aí, o caldo entornou:

        "Minha mãe usa óculos, a sua não usa!"

        "Eu tenho um irmãozinho, você não tem!"

        "Eu tenho duas primas, você não tem! "

        "Minha tia é velha, a sua não é!"

        "Eu tenho uma bicicleta, você não tem!"

        "Eu sei assoviar, você não sabe"

         Vocês vêem: a coisa foi ficando da maior gravidade, quase insuportável. A cada provocação, a resposta do outro vinha mais perigosa. Até que um deles bradou a vantagem maior, insuperável:

        "Minha avó morreu, a sua não morreu!"

        Ah, meus filhos, depois desta, só a agressão física! Quando as mães entraram no quarto, os dois rolavam pelo chão, aos berros, fazendo mais barulho que gatos em noite de lua. Pelo menos, os mesmos sons.

        Foram separados, aos prantos, e afastados definitivamente um do outro.

        Foi urna longa separação. Longa e dolorosa. Durou toda uma noite de cansaço dos dois e mais seis horas. No dia seguinte, um apareceu na frente do outro e ficaram só olhando, paradinhos, sem saber o que dizer para a vida recomeçar. Até que o que tinha perdido a parada no dia anterior, se explicou:

        "Mamãe me falou que a minha avó tá: muito doente...”

        E tudo voltou ao que era antes.

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        Eis que estava contando a história desta parceirada para um menino amigo meu, _ antes de completar o livro —, e ele estranhou uma coisa: se a história é dos dois meninos, por que o livro se chama só "O Menino Marrom?"

        Aí, embatuquei. Não tinha percebido que estava contando a história de dois meninos e colocado um só no título do livro.

        Então, pensei: deve ter sido por causa do telefonema do técnico da gráfica. A gente escreve cor-de-pele na indicação e quer que as pessoas adivinhem que cor de pele que é. Como se todos os meninos do mundo, de todas as histórias, tivessem uma cor só.

        Quando me sentei à máquina para contar essa história, tinha decidido que ia escrever a história de um menino marrom. Depois é que o menino cor-de-rosa entrou.

        Vou contar um segredo de autor para vocês. Quando se começa a contar uma história, não fiquem achando que a história vai acabar igualzinho a gente quer. Não vai. Por mais que você invente, de repente, um personagem entra pela página adentro toma o seu lugar e, ó, cadê que você tira de da história?

        Mesmo inventada, a história é que dirige o autor.

        Vê? Agora a história ficou sendo dos dois. Como, porém, a intenção inicial era contar só o lado do menino marrom, deixa o título como está.

        Estava pensando: acho que queria mesmo era contar a história de um menino que fosse muito feliz.

        Não acho graça em infelicidade, embora seja com ela que se faz a melhor literatura. Azar, vou ter que tentar com meninos felizes mesmo!

        Vocês se lembram que citei o verso do Tom Jobim — não é? — quando ele diz que é impossível ser feliz sozinho. Então? O menino cor-de-rosa entra nesta história com a maior naturalidade.

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        Os dois brincavam juntos o dia inteiro, já contei. Muito mais do que brigavam, é claro. Inventavam os brinquedos mais malucos do mundo, as indagações mais inquietantes. Epa!

        Você sabe o que é uma indagação* inquietante?

        Pois é: eles ficavam inventando essas coisas difíceis de explicar. E outras menos complicadas, se bem que muito interessantes.

        Um dia, os dois resolveram descobrir como é que os personagens entravam dentro do vídeo de televisão. Pensam que eles desmontaram o aparelho para descobrir? Tinha graça! Essa seria uma história muito antiga, tipo Wilhelm Busch, um famoso contador de histórias infantis  da Alemanha do século passado. Nada disso. Os dois foram ao Manual de Instruções e à Enciclopédia para entender o problema da transmissão da imagem: a captação pela câmera e a recepção feita pela amplificação da frequência super-heteródina.

         Vocês aguentam?

        É isso: ouvindo conversa de adulto, vendo televisão todo dia, participando da guerra nas estrelas, os meninos de hoje estão sabendo mais do que todo mundo. Para a geração do autor desta história aqui, por exemplo, vocês já estão para lá do Flash Gordon.

        Querem ver? Outro dia mesmo, os dois amigos estavam vendo um filme inter-planetário e apareceu um desses heróis intergaláctico aí, descendo com sua nave num planeta qualquer. O menino marrom então, perguntou iro menino cor-de-rosa: "O homem vai, de verdade, à Lua?"

        E o menino cor-de-rosa respondeu: "Atualmente, não! "

        Assim mesmo: "atualmente, não." E completou: "Eles iam, antigamente."

        E é verdade: antigamente!

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Foi em 1969 — olha quanto tempo faz! — que os homens foram à Lua pela primeira vez e nunca mais ninguém voltou lá.

        Eles — os meninos — viam velozes naves cruzando o espaço sideral, viam brigas intermináveis de gato e rato, viam super-heróis voadores e cheios de superpoderes, viam beijos, abraços e muita paixão na mágica tela da televisão ligada o dia inteiro. Mas, mesmo assim, e por um mistério qualquer/achavam tempo para ficar, horas e horas, folheando os livros de história que ganhavam e mesmo os velhos livros que seus pais tinham — esquecidos — na estante.

        As vezes, quando fazia muito silêncio no quarto, mamãe ia ver, olha os dois deitados no chão entretidos e silenciosos, lendo até mesmo livro sem figuras, só com emoção. Como a história do Robinson Crusoé, por exemplo, comprida história que não acabava mais. E a história ficava mais comprida ainda pois o Sexta-Feira custava a aparecer e eles não podiam imaginar coma é que o Robinson Crusoé aguentava ficar tanto tempo sem um amigo.

        Não sei se eles liam muito porque prestavam atenção em tudo ou se prestavam atenção em tudo porque liam muito...

        Neste tempo aí das leituras, o menino cor-de-rosa já não tinha mais babá, estava crescidinho e ninguém precisa a ficar tornando conta dele. A velha mulher que vivia em sua casa desde os ternpos da mamãe menina tinha 'ido embora e, no lugar dela, havia deixado uma sobrinha que não tinha muito o que fazer. Ela ficava o dia inteiro lendo os velhos livros da coleção "Menina e Moça" e suspirando.

        O namorado dela era o carteiro e este tinha outra mania: a de colecionar o folhetos coloridos do "Círculo do Livro".

        Na casa do menino cor-de-rasa, logo depois da cozinha nos fundos, tinha urna, varanda que dava para um pequeno quintal. Ali, havia uma grande mesa de fórmica, onde os dois amigos passavam boa parte da tarde, lendo, jogando ou fazendo os deveres. De vez em quando os dois soltavam uma ,gargalhada, explodida de repente, como se um maestro dirigisse um afinado coral de apenas dois cantores. E que, na verdade, eles nem sempre estavam prestando atenção nos deveres. Estavam era ouvindo, caladinhos, a conversa pedante e rebuscada da babá com a cozinheira, as duas sentadas na cozinha, naquelas tardes compridas.

         A mocinha, talvez por suas românticas leituras, adorava falar palavras difíceis. E, muitas- vezes, palavras completamente desajeitadas no meio das frases. Os dois, muito debochados, caíam na gargalhada.

        Paravam de rir, fazia-se o maior silêncio na varanda e na cozinha, a conversa das moças recomeçava. Aí, na hora certa, outra risada.

        Aquilo era toda t: um verdadeiro ritual.

        Teve um dia que os dois não riram, quando a moça falou a palavra difícil. Ela estava doidinha pra se casar com o carteiro e, muito pedantezinha, explicou para a cozinheira: "Ele tem todos os ingredientes para ser um bom marido! "

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        Não dá para esquecer a palavra ingredientes no plural, quando se ouve esta palavra pela primeira vez. Ingrediente: grande mistério!

        Os dois largaram o que estavam fazendo — com a gargalhada parada no ar — e correram para o quarto, atrás do dicionário.

        Abrem o dicionário, que aflição! Letra A, não é aqui não, passa, passa, passa o B; não passa esse tanto não, letra M, já passou. L é antes, muito antes; M, L, j, I: aqui. LI, IM, IN, Incêndio, incendioso, é mais pra frente, Incenso, Indagador, o que será? o que será que este noivo tem? Inocência, já passou, volta, volta, é nesta página, inglesia, vira outra, Inglesice, Ingremidade, aqui está: INGREDIENTE.

        Leram o verbete.

        Leram várias vezes.

        E o mistério continuou. Voltaram para a varanda sem saber — e por muito, muito tempo — qual era o mistério do carteiro-noivo da sobrinha da babá. Eles ainda teriam pela frente muitos mistérios pra poder desvendar.

        Agora, preciso saber quando é que foi essa história...

        Não é difícil descobrir. Pelo tipo de coisa que aconteceu aquele dia tia escola, eles já estavam no primeiro grau. Sem dúvida: estavam. Foi uma tarde, os dois brincavam com suas cores, quando o menino marrom misturou todas as tintas que tinha na caixinha de aquarela, todas as cores do arco-íris.

       E ai, sabe o resultado que deu?

       A mistura das cores todas deu um marrom. Um marrom forte como o do chocolate puro. O menino marrom olhou para aquela cor que ele tinha inventado e falou: "Olha aí, é a minha cor!"

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        Os olhinhos do menino cor-de-rosa brilharam como eles brilha suas descobertas. E ele disse: "Sua cor é a soma de todas as cores!"

        O menino marrom ficou todo feliz. Criou sua cor e achou que era bom.

        Justo no dia seguinte, na escola, a tia levou toda a turma para o laboratório do colégio para dar algumas explicações sobre cores. Quando os dois souberam que o assunto era cor, ficaram muito excitados. E que eles iam revelar aos coleguinhas sua grande descoberta.

        "Eu chego e conto?" perguntou o menino cor-de-rosa.

        "Não' disse o menino marrom. "Deixa a professora falar primeiro, depois nós damos o nosso show."

        Eles estavam convencidos de que iriam brilhar na visita ao laboratório da escola. E, enquanto todo mundo ria, falava, mexia nas cores, acendia luzes, desligava projetores, eles estavam caladinhos num canto para fazer a grande revelação na hora exata.

        Aí, chegou a hora.

        A professora resolveu mostrar para eles o Disco de Newton.

        Toda mundo conhece o Disco de Newton, não é verdade?

        Todo mundo já foi ao laboratório da escola, certo? Ou sua escola não tem laboratório?

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        Bem, essa é urna outra história e é o Ministro da Educação que tem que resolver. Deixa a gente contar a nossa, que felizmente tem um laboratório instalado na escola.

        E ali tinha o Disco de Newton.

        O Disco de Newton é o seguinte: um pequeno circulo de metal, plano como um disco comum, dividido em raios (como uma roda de bicicleta). São sete espaços entre os raios, cada espaço com urna das cores do arco-íris. O disco gira em pé, como urna pequena roda-gigante, tocado por uma manivela. Você toca a manivela bem depressa, o disco vai girando, girando e ai, o que é que acontece com as sete cores? O quê?

        Isto é o que os meninos iam descobrir naquela manhã, na escola.

        A professora mostrou o disco para eles — tinha uns meninos tão pequenininhos, tão agitadinhos que nem estavam ligando para aquela história — e perguntou: “Se eu misturar todas essas cores, o que é que elas viram?"

        O menino marrom gritou, rápido: "Viram marrom! " E olhou orgulhoso para os outros. Só que ele esperava aplausos e levou foi o maior susto.

        A professora disse: "Não. " E continuou: " Vejam: eu vou rodar este disco bem depressa e vou misturar todas as cores nesta rodada»

        Prestem atenção, fiquem de olho no disco."

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        E todos prestaram atenção. O disco foi girando, girando, e, de repente, ficou to-do branco. E a professora explicou: "Viram? O branco não é uma cor. O branco é a soma de todas as cores em movimento.”

        "Com esta eu não contava" falou o menino marrom.

        "Nem eu " falou o menino cor-de-rosa.

        Os dois voltaram para casa calados, com a cabecinha fervendo. A coisa tinha ficado desse jeito: se misturar todas as cores e elas não girarem, elas ficam marrom.

        Se misturar todas as cores — em partes iguais — e botá-las para rodar, elas viram o branco.

        Estava tudo assim, quando, de repente, o menino marrom falou para o menino cor-de-rosa:

        "Quer dizer que eu sou todas as cores paradas e você é todas as cores em movimento?"

        O menino cor-de-rosa pensou um pouco e respondeu: "Só tem um detalhe: eu não sou branco!"

        Pronto. Agora, é que as coisas complicaram de vez...

        E voltou aquela discussão: o que é realmente branco na Natureza?

        O tipo da pergunta de menino curioso!

        O técnico do Instituto Félix Pacheco que me desculpe, mas tem cabelo de velhinho que é branco mesmo, branco-omo-total!

        Tem muito pelo de animal: o pelo do urso, o pelo do coelhinho de páscoa, o pelo do porquinho-da-índia. E tem o cálice os lírios e tem as pétalas das rosas — quando as rosas são brancas — e tem as penas do cisne branco, que em noites de lua, vai navegando no lago azul. E, embora nem o menino marrom nem o menino cor-de-rosa jamais tivessem visto — eles sabiam! — tem a neve que é branca, branca.

        Aí, os dois chegaram a uma boa conclusão: a coisa mais preta da Natureza é o carvão e a mais branca é a neve. Se isto não for cientificamente certo, quando vocês crescerem, por favor, façam aí umas pesquisas e me desmintam, está bem?

        Como, porém, os dois acharam que assim estava bom, fica assim.

        E ficou também acenado que gente branca, branca mesmo, também não existe. A não ser em histórias para crianças, como aquela dos sete anões.

        E quando os dois chegaram em casa, estavam encantados com uma nova descoberta: o mundo não é dividido entre pessoas brancas e pretas.

        Mesmo porque, elas não existem.

        O que existe — que boa descoberta! — é gente marrom, marrom-escuro, marrom-claro, avermelhada, cor•de-cobre, cor-de-mel, charuto, parda, castanha, bege, flicts, esverdeada, creme, marfim, amarelada, ocre, café-com-leite, bronze, rosada, cor-de-rosa e todos esses nomes aproximados e compostos das cores e suas variações.

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        Aquela visita ao laboratório deixou os dois, sem dormir por vários dias de tanto que eles matutaram sobre suas descobertas.

        O mais engraçado é que eles não  estavam preocupados com o mistério das misturas, com o fato da mesma mistura dar o branco e dar o marrom.

        Eles estavam despertados para outras coisas.

        Tipo de coisa que acontece, não é? As vezes a gente vê um fato impressionante pela primeira vez e em vez de ficar marcado pelo fato propriamente dito, fica preocupado com outra coisa completamente diferente que nasceu daquele fato.

       Deu pra entender? Vou tentar explicar com uma história que a minha mãe contava.  Ela era menina e a estrada de ferro chegou à cidade onde ela vivia. Meu avô, então, resolveu levar um empregado dele muito bonzinho para ver a locomotiva. Meu avô amava aquele empregado meio simplório! E queria ver sua reação, quando ele visse,

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pela primeira vez, uma máquina andando sozinha, sem cavalo nenhum para puxar. Vovô ficava imaginando como ia ser a reação de espanto do seu empregado.

        Lá se foram os dois para a estação. E veio a locomotiva andando sozinha, aquela„ coisa mágica se aproximando, vupt, vupt, vupt.

        Meu avô ali, de olho, pronto para saborear a emoção do rapaz.

        E a máquina passou por eles, os dois parados, sem dizer palavra, vapt, vupt, vupt, vupt, vupt.

        Ai, meu avô falou: "Então, Zé? O que foi que você achou deste milagre?"

        E o Zé respondeu: "Puxa, seu Hortêncio, como faz fumaça, fiem!?"

        Pois é isto: o que impressionou os meninos também, não foi a roda rodando e fazendo as cores sumirem no disco. O que os deixou inquietos foi a fumaça que a experiência fez na cabecinha deles...

        Puxa vida! Se um era marrom e o outro era — digamos — cor-de-rosa, por que é que todo mundo dizia que um era preto e o outro era branco?

        Imagina: eles nunca haviam se preocupado com isto. Mesmo marrom, o menino marrom achava normal ser chamado de preto. Mesmo cor-de-rosa, o menino cor-de-rosa achava normal ser chamado de branco.

        Agora, como na caixa de aquarelas  estava tudo misturado na cabeça deles.

        Eles tinham estado juntos, praticamente, desde o dia que nasceram, brincando, conversando, inventando coisas,   brigando, rolando na grama, dando socos um na cara do outro, fazendo pazes, brigando de novo, passeando na praça, jogando na escola, sempre juntos, sempre às gargalhadas, sempre inventando moda.

        E nunca tinham se reocupado com o fato de um ser de uma cor e o outro ser de outra.

        Agora, eles queriam saber o que que era branco e o que que era preto e se isto fazia os dois diferentes. P.20

        Uma vez me aconteceu uma história que — me parece dá pra ajudar a gente a entender o novo problema dos dois amigos.

        Eu era bem pequenininho e já sabia fazer bolinhos de fritar. Quer dizer: devia fazer a maior bagunça na cozinha mas mamãe me deixava ficar lá, quebrando ovos, derramando farinha de trigo pelo chão, me lambuzando todo, mas fazendo a massa, rodando a massa nas mãos, fazendo as bolinhas — como se fossem sonhos — e jogando tudo na gordura quente para fritar. Vai ver, mamãe ficava por ali, tomando conta. Na minha memória, porém, me vejo o rei absoluto da cozinha.

        E estava lá, fazendo os meus sonhos — ou meus bolinhos de fritar — e queria que eles ficassem prontos para o café da manhã. Tantas fiz que a massa dos bolinhos não ficou pronta a tempo. Aí, já era hora do almoço e me lembro de ouvir a voz do papai chegando do escritório e me dizendo: "O meu filho está fazendo bolinhos pa-ra o almoço?'

       Eu disse que estava sim e tomei uma decisão: "Bolinhos para o café são doces; bolinhos para o almoço devem ser salgados."

        Na minha cabeça, o que eu tinha que fazer era simples: tirar o doce da massa e fazê-la ficar salgada. Simples! Simplíssimo: como eu havia botado um copo de açúcar para adoçar os bolinhos, bastava agora botar um copo de sal em cima, que tudo ficava empatado.

        Não pensei duas vezes, virei um copo de sal na massa e ainda botei mais,uma pitadinha de sal extra, para — aí, sim — temperar o bolinho para u almoço.

        Juro que não me lembro do que aconteceu depois. Só sei que foi nesta manhã que elaborei a minha Teoria dos Contrários: "Uma coisa só é o contrário da outra, quando toma o seu lugar. Logo, salgado não é o contrário de doce."

        Não lhes parece uma boa teoria?

        Vamos à prova: tome-se um arame e ponha-o no fogo. Ele fica quente. Tire o arame do fogo e bote-o na água gelada. Ele fica frio. O frio toma o lugar do quente. logo, o frio é o contrário do quente. C. Q. D. (Vê ai se a sua professora ainda sabe o que quer dizer C. Q. D. Depois, você me conta.)

        Bem, não creio que esta história tenha ajudado o tanto que eu esperava. Vocês vêem ai. Tenho o maior medo de explicações cientificas, sabem? , Mesmo porque, não sou nada bom nisso. O que estou tentando é ajudar os dois meninos na sua dúvida, pois — me prece — o que eles estavam querendo era saber se o branco é o contrário do preto. É? Será?

 

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        Eles ficaram por muito, muito tempo sofrendo esta dúvida.

        Mas menina tem essa coisa de bom: logo esqueceram aquela história e já entraram de novo em outras invenções.

        Menino nunca sabe a hora exata em que essas coisas acontecem, os dois descobriram  juntos: a moça na janela da casa ao lado!

        Era a filha mais nova da vizinha, meu Deus, a coisa mais bonita que jamais houve neste mundo desde que Deus criou o mar.

        Mas, ela era uma menina, outro dia mesmo!

        E aí, numa tarde na janela, surgiu como uma princesa!

        De repente, como se uma fada tivesse tocado seu corpo com uma varinha de condão, a menina virou uma princesa e apareceu na janela.

        Numa tarde assim, daquelas bem quietinhas.

        A partir desse dia, era aquela febre e aquela aflição na escola, a vontade imensa de voltar para casa, de ver a tarde chegar e ir olhar a princesa na janela do seu castelo, a pequena casa verde ao lado.

        Lá vinha ela, das sombras do quarto e chegava à janela, toda cheia de luz; e entrava e saía e seus braços tão brancos dançavam no espaço, ajeitando os cabelos, jogando a cabeça, de leve para trás; e teus olhos brilhavam, olhando pra longe e seu rosto girava, de leve, de leve, sobre os ombros redondos — que ombros, meu Deus! ---- que curva tão linda, a corrente de ouro, e a medalha onde está?

        Não estou bem certo se aquela era a hora exata da chegada dos dois à janela para olhar a moça ou se era a exata hora da chegada da moça para que os dois olhassem para ela.

        Depende de quem conta a história.

        "Como é, meu Deus, que nós vamos afastar esta paixão que vai fazer a gente brigar no beco, longe dos pais e dos tios, uma briga de decidir? Tira essa moça da nossa cabeça! Xõ, xô mosquitinho, xô xô mosquitinho a moça da casa verde, xô xô mosquitinho, xô xô mosquitinho, vou ardendo, vou morrendo, xô xô mosquitinho xô, xô... mosquitinho. Ai!"

        Há certas manhãs em que a cama deixa de ser boa companhia e, quando a gente dá pela coisa, já está de pé, no meio da rua, no meio do quintal ou na área, longe do quarto.

        Nem acabou de amanhecer ainda e ficamos sem saber o que fazer com aquele pedaço de dia que ganhamos, de repente. Pois numa manhã dessas, o menino marrom enjoou cedo da cama. Acho que estou contando essa história, indo e vindo no tempo, sem botar as coisas em ordem. Vai ver que estou.

        Esta manhã de que falo agora, por exemplo, é uma manhã muito mais antiga, muito anterior aos sonhos com a menina da casa verde, eles eram bem pequenininhos ainda.

        Pois o menino marrom — daquele tamaniaho se viu sozinho no meio da rua,

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antes que o dia acabasse de amanhecer, antes que a primeira loja da rua abrisse para, a luz do dia suas barulhentas portas de aço.

        Tudo vazio, só ele sozinho no meio da ma como menino perdido. De repente, ele vê a velhinha atravessando a rua a caminho da missa das seis Agora, meu deus, me digam: onde foi que aquele tico de gente tinha ouvido falar em boa ação? Pois não é que ele tomou a decisão, como se fosse um experimentado  escoteiro' Correu e pegou a mão da velhinha para guiá-la na travessia da rua:

        "Não careço de ajuda. Me larga, menino, por amor de Deus!"

        Deu um tapa na mão do menino marrom, e atravessou a rua sozinha.

        O menino ficou estático no meio-fio, com a mãozinha no ar, parado como uma estátua desapontada, olhando para a velhinha com a maior de todas as incompreensões.

        Na manhã seguinte, a cama incômoda de novo, antes dás seis hora.

        E ele estava ali, no mesmo lugar, sentadinho na calçada. Só que desta vez em companhia do menino cor-de-rosa, que foi acordado por ele sem qualquer explicação, só “Vem!”

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        E lá apareceu a velhinha, de novo, indo para a missa. Os dois não diziam nada. Só ficaram olhando a velhinha atravessar a rua que levava à praça e depois à igreja. A velhinha sumiu no meio da vegetação da pracinha e os dois voltaram para casa. No dia seguinte, olha os dois lá, de novo, sentadinhos na calçada, esperando a velhinha passar.

        No final de algumas manhãs, já que o menino marrom não dizia nada, o menino cor-de-rosa resolveu perguntar:

        "Por que você vem todo dia ver a velhinha atravessar a rua?" E o menino marrom respondeu:

        "Eu quero ver ela ser atropelada.

        Como pode durar este jogo de deus e de diabo em peito de menino?

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        Menino tem muitos defeitos. Por exemplo: menino cresce. E os dois amigos não tiveram como se livrar deste dever. De repente, começaram a crescer mais depressa, a voz começou a engrossar aqui, a esganiçar ali, até que chegou a hora do menino cor-de-rosa ter que ir embora. Primeiro foi comprar umas cuecas, alguns pares de meia, pregar uns botões nas camisas, descer a bainha de uma ou outra calça e juntar os amigos para o bota-fora.

        Os amigos todos apareceram para a festa de despedida do menino cor-de-rosa que, àquela altura, já não era tão menino nem tão cor-de-rosa. Foi uma farra: muitos abraços, muitas palmadinhas nas costas — teve um que vomitou com sua primeira cerveja — e muitas piadas de bom e de mau gosto.

        Muito bem: agora, o menino, ainda que não queira, vai ter que ser ele mesmo e não mais um objeto de família, agasalhado na voz musical da mamãe, protegido na força de bronze que menino enxerga no pai, que vence o medo, que afasta os raios. Os olhos se desprendem da paisagem, a própria casa ignora que ele vai partir, nenhuma xícara, nenhuma porta lhe deseja boa viagem. Lá vai ele para o mundo, deixar seu quarto infinito.

        O pai chama-o num canto e desfila os conselhos. O menino ouve com a maior atenção, como se aquela história já tivesse acontecido ele alguma vez em algum lugar.

        Quando mamãe veio com a bolsa de mão toda arrumadinha e com os olhos cheios de lágrimas dizer: juízo, meu filho, vai com Deus e... o menino cor-de-rosa só faltou repetir cada palavra da mãe, de tanto que ele sabia que ia ser assim. Ele sabia também que ia ficar com os olhos cheios d'água, não ia conseguir dizer nada e aconteceu tudo direitinho: ele não conseguiu dizer nada e ficou com os olhos cheios d'água.

         Mamãe veio até a porta, papai veio até a rua e ele seguiu para a estação em companhia do menino marrom, que lhe carregava a mala.

        Os dois foram andando devagarinho para a estação. Naquele instante eles estavam certos — sem que nenhum dos dois falasse isto para o outro — de que não iriam nunca se esquecer daquele momento e se perguntando, sem fazer a pergunta: "Quem é o dono da história? Aquele que parte ou aquele que fica?"

         De repente, o menino marrom deu uma gargalhada dessas que não acabam mais, dessas de perder o fôlego.

        O menino cor-de-rosa espantou-se, sem entender nada. Esperou que a gargalhada terminasse e aí perguntou: "Tá rindo de quê?" O menino marrom olhou para ele, todo solene, e disse:

        "Espero que você tenha todos os ingredientes para vencer na vida!"

        "Você se lembra?" falou o menino cor-de-rosa, pegando carona na risada que não acabava.

 

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        A sobrinha da babá, que falava difícil, havia se casado com o carteiro e já estava esperando o terceiro filho.

        A gargalhada acabou e eles voltaram a caminhar em silêncio, agora que o mistério estava desfeito.

        Às vezes, os silêncios ficam muito compridos e você não sabe como diminuir seu tamanho, a não ser com uma pergunta boba.

        "E o nosso pacto de sangue, como é que fica?"

        "Amigos para sempre!

        "Temos que selar nosso pacto com sangue!"

        "Com sangue!"

        Eles eram tão pequenininhos naquela época que nem se lembravam onde tinham visto este negócio de pacto de sangue. Vai ver, um deles tinha ficado sem dormir até mais tarde e pegado um filme de espadachim na televisão, no fim da noite. Sei lá, às vezes, o que a gente aprende vem no vento, sem qualquer explicação.

        O pacto! "Temos que fazer um pacto de sangue!"

        Um deles foi até a cozinha buscar uma faca de ponta para furar os pulsos e misturar o sangue dos amigos eternos.

         Ficaram os dois, os bracinhos espichados, as mãozinhas fechadas para cima, os pulsos à mostra, latejando. A faquinha na mão de um, esperando o pacto. Os dois ali, parados, sem um sorriso sequer, só o ruído das suas respirações ofegantes, olhando firmes um no olho do outro, sem piscar: pacto é pacto. E a faquinha parada no ar. Até que um deles resolveu a questão: "Não tem um alfinete?"

        O outro nem respondeu, foi correndo ao estojo de costura da mãe, estojo de costura, tesouro da vista, linhas, carretéis, fitas, cor o quarto reino natural — não apenas alfinetes de bolinhas coloridas nas pontas.

        "Pego este, da bolinha vermelha!"

        "A gente fura o dedo."

        "Qual dedo?"

        "O fura-bolos. Que é pra gente assinar o nome com sangue."

        "Isto! O dedo vira uma caneta-tinteiro."

        Agora pausa para uma gargalhada dupla de se ouvir na rua inteira, riso bobo, exclusivo.

           "Quem foi que inventou essa do dedinho, soltando sangue pela ponta, virar caneta-tinteiro, foi eu ou você?"

        Muito bem: os dois dedinhos fura-golos ali, esticadinhos, e cadê coragem para furar a ponta de cada um? Nova pausa e um deles resolve sair da pose. Sai e vai tranqüilamente até a gaveta onde guarda as coisas da escola.

        "Que ê que você está procurando?"

        "Tinta vermelha. "

        O outro correu para ajudar. Pacto de sangue de menino pode ser com tinta ver-

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        melha, claro. Depois de assinado e sacramentado, quem vai desconfiar de que não é sangue verdadeiro?

        Não tinha tinta vermelha.

        Foi o menino marrom que achou o vidro de tinta azul. Abriu, enfiou o dedo no vidro e mandou o outro fazer o mesmo. Ficaram os dois com as pontas do fura bolos cheias de tinta azul. Esfregaram os dedos um no outro, pegar uma folha de papel e, juntos, assinaram seus nomes. Aliás, assinaram, não: escreveram com a dificuldade com que escreviam seus nomes naquela época. E tiveram que enfiar o dedo várias vezes no tinteiro, que a tinta secava rápido.

        A maior lambança. Ao final, orgulhosos, os dois esconderam o documento em lugar secretíssimo, certos de que tinham feito um pacto indestrutível. Pacto de reis é pacto de reis!

        Aí, eles pararam mais uma vez no caminho da  estação para reforçar suas lembranças.

         'Quem é que tinha falado pra gente este negócio de sangue real?'

        "Será que a gente sabia mesmo?"

        "Tenho certeza absoluta. Estávamos fazendo um pacto de sangue azul.”

        'Amigos eternos, Milord!"

        "Fiéis para sempre, Alteza!

        "E onde foi que a ente escondeu documento?"

        "Não tenho a menor ideia!"

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        Ai, já tinham chegado à estação. Não era uma estação com sua bufante locomotiva, seus estertores, seus rangidos, angustiante ou festiva mensagem de seu apito; era uma estação rodoviária de luzes frias e o ônibus enorme não era nada romântico, todo colorido, ar refrigerado, rodomoça, carteira de identidade, autorização dos pais para viajar desacompanhado. Quando o chofer entrou para assumir seu lugar e' a porta automática do ônibus fez aquele barulhinho de ar comprimido, informando que estava na hora de ser fechada, o menino cor-de-rosa descobriu que só faltava ele para entrar no ônibus. Aí, foi aquece abraço muito forte, muito apertada mesmo e ele disse, sem nunca ter programado:

       "Não me esqueça amigo, eu vou voltar.

        Falou assim, sem sentir, aquela frase que lhe saiu com a música que ela contém. E estava certo, também, de que não tinha programado aqueles olhos úmidos. Da janela, o ônibus saindo, ele pôde ver que o menino marrom estava com as ventas do nariz mexendo mais do que asa de borboleta. Quando o ônibus ia sumir no fim da pista, ele olhou para trás e viu todas luzes da rodoviária brilhando nos olhos de jabuticaba do menino marrom.

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        Era chegada a hora de deixar de ser corgo, brincar de ser rio. o menino marrom foi crescendo, ganhando corpo, tudo muito devagarinho, ele foi ficando um rapazinho quieto, caladinho, lendo muito, estudando, fazendo experiências, fazendo versos, inventando coisas só para ele e, de repente, abandonando tudo, fazendo uma manhã toda diferente da outra ou repetindo aquelas manhãs em que ele acordava muito cedo e ia sentar-se na calçada para ver a velhinha morrer atropelada.

        Um dia, aquela história do preto e do branco voltou-lhe à cabeça. "Se o azul é uma cor fria e o vermelho é uma cor quente, por que é que, na cabeça de ninguém, uma é o contrário da outra? Quem foi que inventou que o preto é o contrário do branco? Se eu sou marrom e se meu melhor amigo não é exatamente branco, por que é que nos chamam de preto e de branco? Será que é para que fiquemos um contra o outro?"

        Ele já sabia uma porção de coisas, já tinha estudado direitinho o Disco de Newton, já sabia o que era luz, o que era a decomposição da luz, o que era prisma, essas coisas que vocês vão saber daqui a pouco e das quais já me esqueci...

        Ficar sozinho, às vezes, é bom: você começa a refletir, a pensar muito e consegue descobrir coisas lindas.

        Nessa de saber de cor e de luz — matérias que passaram a interessá-lo profun-damente — o menino marrom começou a entender por que é que o branco dava uma ideia de paz, de pureza e de alegria. E por que razão o preto simbolizava a angústia, a solidão, a tristeza. Ele pensava: o preto é a escuridão, o olho fechado; você não vê nada. O branco é o olho aberto, é a luz!

        Santa mãe, a cabeça do rapazinho fervia. Aí, ele concluía: para o Homem, tudo vira símbolo! É verdade: o Homem foi sempre um grande inventador de moda.

        Sua cabecinha de adolescente chegava a ranger, crec, crec, crec, ele N. ia a hora que eia ia derreter.

        Vocês já ouviram falar num sábio brasileiro chamado Silva Melo?

        Ele era médico, escritor-e foi da Academia Brasileira de Letras.

        Um dia, ele estava voltando para o Brasil de navio, o navio afundou e ele nadou — que nem o Camões — com os orig;riais do seu livro numa das mãos, até ser salvo. Isto, porém, é outra história que um dia vocês vão conhecer melhor. Uma vez, fiz uma entrevista com o Professor Silva Melo sobre uma porção de coisas e, entre as muitas que ele contou, uma não deu para esquecer.

        Ele disse lá, a um certo ponto da entrevista: "Eu não consigo descobrir em que altura da História do Homem, ele decidiu que o branco simbolizava pureza."

        Aí, eu disse: "Deve ser. desde quIndo abriu os olhos pela primeira vez."

        Ele nem mc ouviu. E continuou:

        "As coisas puras da Natureza não são, exatamente, brancas!" Falou e disse, Professor! O branco do lírio, por exemplo — agora sou eu que

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estou repetindo — tem uma química complicadíssima, uma mistura incrível para dar aquele branco. Um pelo de gato preto é tão puro quanto um pelo de gato branco. As coisas puras da Natureza estão muito mais para os tons ocres e pardos. Como o açúcar mascavo, por exemplo, que é muito mais puro do que o açúcar refinado.

        O Professor falava coisas assim. Acho que o menino marrom andou lendo a en-trevista que fiz com o Professor e começou a entender esse negócio do valor dos sím-bolos. Sabe por que eu acho isto? Porque, um dia, ele — que também tinha pensado na minha Teoria dos Contrários — fez uma bela constatação de adolescente.

        Foi assim: ele estava muito triste e achou que as coisas estavam pretas para ele. Ai, não gostou do próprio símbolo que criou:

        "Pretas, porrrrrrrrquê?"

        Ele estava no seu guano, estudando, e ficou olhando urna folha de papel bran-quinha sobre a mesa, onde ele ia escrever uma carta. De repente, a luz do quarto apagou. E a folha branca sumiu. Ele botava a folha de papel perto dos olhos e via tudo preto. Mas ele sabia que a folha de papel estava ali e continuava branca.

        Então, ele deu um sorriso lindo, todo branco que ----- no escuro ninguém viu.

        Ele havia descoberto que o preto não era o contrário do branco!

        A luz acendeu de novo. E a folha branca apareceu diante de seus olhos.

        Ele pegou a caneta e começou a carta que ia escrever:

MEU QUERIDO AMIGO

EU ANDAVA MUITO TRITE ULTIMAMENTE , POIS

POIS ESTAVA SENTINDO MUITO MA SUA FALTA

AGORA ESTOU MAIS CONTENTE PORQUE ACABO

DE DESCOBRIR UMA COISA IMPORTANTE: PRETO É

APENAS A AUSENCIA DO BRANCO

 

 

        Algum tempo depois aconteceu tudo igualzinho como na canção do Milton Nascimento: o menino — que agora já era doutor — voltou com sinhazinha  para apresentar. A moça não era bem urna sinhazinha como as de antigamente. Era uma bela estudante de sociologia e vinha fazer urnas pesquisas na cidade dos dois meninos. A sobrinha da babá já tinha seis filhos e o amigo deles que não sabia beber cerveja na festa de despedida já bebia feito um craque.

        A vida continuou.

        A partir daí, porém, a história já não é mais nem do menino cor-de-rosa nem do menino marrom. Menino. é como certos rios misteriosos da Amazônia que, de repente, desaparecem no meio da mata ---- ou no meio do mapa e vão aparecer lá na frente, um rio muito maior, um outro rio.

 

p.30

        Que os dois continuam os maiores amigos, isto eu sei, tenho sempre notícias deles embora não os veja há muito tempo.

        Só sei que os dois continuam fazendo das suas. Um é craque de basquete e o outro, de voleibol; um já está quase formado e o outro não estuda mais — ou os dois já se formaram, todos dois já são doutores — já nem posso precisar. Só sei que um desistiu de tocar a bateria e o outro fez um samba e gravou uma canção; um está tocando flauta e o outro, violão. Um deles já se casou — se casou, eu não sei bem —e o outro perdeu a conta das namoradas que tem. Um quer conhecer o mundo e o outro a Patagônia, um é o rei da Informática e o outro do vídeo-clip; um andou fazendo cursos de teatro e literatura e o outro já fez figura num festival da canção. Um já conseguiu emprego; o outro foi despedido do quinto que conseguiu. Um passa seus dias lendo — ou não sei se são os dois — um não lê coisa nenhuma, deixa tudo pra depois. Mas, faz cada verso lindo, que ainda vai virar canção. Um pode ser diplomata. Ou chofer de caminhão. O outro vai ser poeta ou viver na contramão. Um é louco por sorvete de chocolate e o outro detesta o gosto de chocolate com leite; prefere, pro seu deleite, cerveja com tira-gosto. Um adora um som moderno e o outro — como é que pode? — se amarra é num pagode. Um dos dois é muito alegre e o outro mais quietinho; um faz piadas com tudo e os dois riem sozinhos. Um é um cara ótimo e o outro, sem qualquer dúvida, é um sujeito muito bom. Um já não é mais rosado e o outro está mais marrom.

        Aqui acaba a história. Por que dar fim a histórias? Quando Robinson Crusoé deixou a ilha, que tristeza... Ainda bem que os dois meninos — não tão meninos mais — continuam por aí, sem saber que, neste momento, estamos lendo quase tudo sobre eles.

        Até que se eles descobrissem isto, não ia ser nada mau.

        Não por causa do contador desta história, mas por causa deles rnesmos, eles iam fazer mais uma bela descoberta. E cada um ia poder dizer pra gente: "Eu não sabia que a minha história era mais bonita que a do Robinson Crusoé. "

 

 

Série

MUNDO COLORIDO

 

Esta é a história de três meninos

Em primeiro lugar, é a história

de um menino marrom.

E é também a historia do seu amigo,

o menino cor-de-rosa.

Mas, principalmente , é urna história

do menino que mora no coração do Ziraldo,

e que é um menino poeta, contador de caso,

inventador de moda, sempre sonhando,

imagïnando, juntando amigos,

e, com eles, fazendo outras histórias,

e com as histórias, outros amigos,

e, com os amigos,

novas histórias...

Ciça

 

1. Em certo momento da história o menino de onze anos deseja que uma velhinha morra, pois havia rejeitado a sua ajuda para atravessar a rua. Você acha que esse comportamento?

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2. Os dois amigos planejam fazer um pacto de sangue para selar a amizade. Acabam fazendo com tinta azul. Você acha que isso incentiva as crianças a fazerem pacto de sangue de verdade?

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3. Quais as partes do corpo do menino são descritas pelo narrador? P3,4,.

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4. Com o que o narrador compara os olhos, os dentes e as pernas do menino?

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5. Do que o Menino Marrom tinha medo?p.6

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6. O narrador do texto é o próprio autor? Justifique com um fragmento do texto. P.7.

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7. De acordo com a filha do narrador, qual a diferença entre mar e lagoa?. P8.

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8. Como era a aparência do menino cor–de–rosa? p.10.

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9. Em que escola os meninos estavam estudando, provavelmente? P.10.

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10. Os amigos partiram para a agressão física após um insulto. Qual foi esse insulto? P.11

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11. Qual foi o motivo do insulto ter provocado a briga?p.11.

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12. Quem passou a tomar conda do menino depois que a babá foi embora?p.14

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13. Qual a cor que resultou da mistura de todas as cores do arco-íris no experimento do menino marrom? p. 15.

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14. Por que o menino ficou feliz com a descoberta? P.16.

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15. De acordo com o experimento do disco de Newton a mistura de todas as cores cria qual cor?

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16.Qual foi a descoberta feita pelos meninos sobre as pessoas brancas e as pessoas pretas?p.18

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17.Os amigos nunca haviam se preocupado com que fato? P.20

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18. Qual o nome da teoria criada pelo narrador quando era criança? p. 21.

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19.Que novo acontecimento os dois amigos descobrirem? P. 22.

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20. Por que o menino resolveu ajudar a velhinha a atravessar a rua? P. 23

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21. Por que ele ficou com raiva da velhinha?

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22.  De acordo com o narrador um dos defeitos dos meninos e o quê? P.25

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23. Qual idade aproximada os amigos tinham quando fizeram o pacto de sangue? P.26

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24. Como foi o pacto de sangue dos amigos?p.26

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25. Qual dos amigos partiu no ônibus? Justifique com um fragmento do texto.

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26. De acordo com o menino marrom o que é o preto? P. 30

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27. O menino marrom e o menino cor-de-rosa representa quem? P. 31.

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28. Quais os três meninos dessa história? P.32

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