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quinta-feira, 23 de novembro de 2023

CONTO - O AMIGO INFIEL TEXTO E VÍDEO

 ASSISTA AO VÍDEO NO LINK ABAIXO


https://drive.google.com/file/d/1jQ7RLykaila28sJEKAwhwRn14Zipu5nV/view?usp=sharing


O AMIGO INFIEL

Era uma vez um jovem e honesto trabalhador. Chamava-se Hans. Morava sozinho em uma pequena casa. Passava o dia inteiro cuidando do jardim. Por toda a região não havia jardim tão bonito quanto o seu. Encontravam-se aí as mais variadas espécies de flores que cresciam ao lado das mais lindas rosas.

          O pequeno Hans tinha muitos amigos, mas o seu maior amigo, o amigo de coração era Hugo, o rico moleiro. Realmente, Hugo era tão amigo de Hans que jamais visitava o seu jardim sem inclinar-se sobre os pés de cravo para admirá-los de perto, ou sem colher um bom punhado de flores que levava para casa.

          — Os amigos verdadeiros repartem tudo entre si — costumava dizer o rico moleiro. O pequeno Hans concordava com a cabeça e sorria, sentindo-se muito orgulhoso por ter um amigo com tão nobres ideias.

          Às vezes, porém, os vizinhos achavam estranho que o rico moleiro nunca concedesse coisa alguma ao pequeno Hans. Conquanto possuísse cem sacos de farinha armazenados em seu estabelecimento comercial, seis vacas leiteiras e uma boa criação de galinhas, jamais compensava o pequeno Hans pelas flores que colhia de seu lindo jardim. O jovem, no entanto, jamais se preocupava com isso.

          Nada o encantava tanto quanto ouvir as belas coisas que o moleiro costumava dizer sobre a solidariedade dos verdadeiros amigos.

Assim, pois, o pequeno Hans cultivava o seu jardim. Na primavera, no verão e no outono, sentia-se muito feliz; mas, quando chegava o inverno, e ele não tinha flores para levar ao mercado, chegava a sofrer de frio e fome, deitando-se, à noite, muitas vezes, sem nada ter comido durante o dia.

Além disso, no inverno, sentia-se muito só, porque o rico moleiro jamais o visitava durante essa estação.

          — Não convém visitar o pequeno Hans enquanto o inverno durar — dizia, às vezes, o rico Moleiro à sua mulher. — Quando uma pessoa está em apuros, não devemos atormentá-la com visitas. Essa é a minha opinião, e estou certo de que tenho razão. Por isso, esperarei a primavera e, então, tornarei a visitar o meu amigo. Poderá dar-me um cesto de flores e isto o alegrará muito.

          — És realmente muito bom, querido — afirmava sua mulher, sentada em um cômodo divã perto de um bom fogo de lenha. — Gosto imensamente de te ouvir falar sobre a amizade. Estou certa de que o padre da comarca não diria sobre ela tão belas coisas como tu.

          — E não poderia convidar o pequeno Hans a vir à nossa casa? — perguntava o filho do moleiro. Se o pobre homem está em dificuldade, dar-lhe-ei metade do que é meu, e, assim, já não sofrerá fome:

          — Que tolo você me saiu! — exclamou o moleiro. — Na verdade, não sei para que serve mandar-te para a escola. Parece que não aprendes nada. Se o pequeno Hans viesse cá, e visse o nosso bom fogo, e comesse da nossa excelente comida, e tomasse do nosso ótimo vinho tinto, poderia sentir inveja. E a inveja é uma coisa terrível capaz de corromper o melhor coração. Realmente, eu não poderia consentir em que o caráter de meu grande amigo se prejudicasse. Estarei sempre atento para que o pequeno Hans não se desvie do bom caminho. Além disso, se ele viesse cá, poderia pedir-me um pouco de farinha, e eu não lhe poderia dar. A farinha é uma coisa e a amizade é outra; não devem confundir-se, portanto.

          — Quão inteligente és, querido! Como falas bem! — disse a mulher do moleiro, servindo-lhe um grande copo de cerveja. — Sinto-me tão bem quando falas como quando estou na igreja.

          — Muitos sabem agir — replicou o moleiro. — Poucos, porém, sabem falar com elegância e aprumo, o que prova que falar bem é não só mais difícil do que agir, como mais bonito.

E fixou tão severo olhar no filho que este sentiu vergonha de si mesmo, baixando a cabeça e chorando baixinho.

          Logo que passou o rigor do inverno e os botões começaram a abrir-se em rosas, o moleiro disse à sua mulher que já era tempo de visitar o pequenos Hans.

          — Ah, que bom coração tens! — exclamou a mulher. — Estás sempre pensando nos outros. Não te esqueças de levar o cesto grande para trazeres as flores.

          O moleiro, então, desceu à colina com a cesta no braço.

          — Bom dia, Hans — disse o moleiro.

          — Bom dia — respondeu Hans, todo sorridente e feliz.

          — Como passaste o Inverno?

           — Bem, bem — respondeu, prontamente, o jardineiro. — Muito obrigado pelo seu interesse. Houve alguns momentos duros, mas, agora, chegou a primavera e sinto-me quase feliz... — Ademais, as flores estão muito bonitas.

          — Em casa, falamos muito a teu respeito, Hans — disse-lhe o moleiro. — Pensávamos no que seria de ti, em pleno inverno.

          — Quanta amabilidade! — exclamou Hans. — Pensei que me tivésseis esquecido.

           — Hans! Francamente... Como podes falar desta maneira? — disse o moleiro. — Na verdadeira amizade não há esquecimento. É isso que há de mais admirável. Temo, porém, que não compreendas a poesia da amizade... Mas, voltando às flores, que belas estão!

          — Sim, estão muito bonitas — respondeu Hans. — Vou levá-las ao mercado, onde as venderei à filha do burgomestre e, com esse dinheiro, comprarei outra vez o meu carrinho de mão.

          — Queres dizer que o vendeste, então? Foi uma tolice.

          — Certamente. Mas o fato é que me vi obrigado a fazê-lo. O inverno foi muito rigoroso... e eu fiquei sem dinheiro para comprar pão. Vendi, primeiramente, os botões de prata de meu traje dos domingos; depois, me desfiz da corrente de prata que recebi do vovô e, em seguida, vendi a minha flauta. Por último, vendi o meu carrinho. Agora, porém, vou resgatar tudo.

          — Hans — disse o moleiro — dar-te-ei o meu carrinho de mão. Não está em muito bom estado. Um dos lados está precisando de reparo, mas, apesar disso, te darei. Sei que é muita generosidade de minha parte e que a muita gente isso parecerá uma loucura, mas não sou como os outros. Estou em que a generosidade é a essência da amizade e, além disso, comprei um carrinho novo. Portanto, podes ficar tranquilo... dar-te-ei o meu carrinho.

         — Obrigado, és muito generoso — disse o pequeno Hans. — Posso consertá-lo muito bem porque tenho aqui uma tábua.

         — Uma tábua! — exclamou o moleiro. — Muito bem! Isso é juntamente o que necessito para o teto do meu estábulo. Há uma fenda que é preciso tapar. Muito bem, eis uma bela oportunidade de me prestares um serviço. Realmente, uma boa ação é sempre bem recompensada. Dei-te o meu carrinho e, agora, dás-me a tua tábua. É claro que o carrinho vale muito mais que a tábua, mas a amizade sincera não olha estas coisas. Dá-me, pois, a tua tábua e, hoje mesmo, consertarei o teto do meu estábulo.

        — Pois não — replicou, solícito, o pequeno Hans.

        Foi correndo ao outro jardim e trouxe uma tábua.

         — Não é muito grande — disse o moleiro, examinando-a. — Creio que só dará para o reparo do teto do estábulo. Não sobrará madeira para consertares o carrinho, mas, é claro que a culpa não é minha... E, agora, que te dei o meu carrinho, penso que me poderás dar em troca umas flores. Aqui tens o cesto; procura enchê-lo quase por completo.

        — Quase por completo?! — perguntou, aflito, o pequeno, vendo que o cesto era muito grande e, se o jardineiro o enchesse, não teria mais flores para levar ao mercado.

        — Francamente! — exclamou o moleiro. — Uma vez que te dou o meu carrinho, não julguei que fosse muito pedir-te algumas flores. Talvez eu esteja equivocado, mas acreditava que a amizade, a verdadeira amizade, estava isenta de toda classe de egoísmo.

        — Meu bom amigo, meu maior amigo — protestou o pequeno Hans —, todas as flores do meu jardim estão à tua disposição.

E correu a colher os cravos perfumosos e encher a grande cesta do moleiro das mais lindas flores de seu jardim.

         — Adeus, Hans — disse o moleiro, subindo novamente a colina com a sua tábua ao ombro e a cesta cheia de flores ao braço.

         — Adeus — respondeu o pequeno Hans.

        E pôs-se a cavar alegremente: estava tão contente de possuir um carrinho de mão!

        Na manhã seguinte, quando novamente estava cultivando o seu jardim, ouviu a voz do moleiro que o chamava da estrada. Trazia ao ombro um grande saco de farinha.

        — Hans — disse o moleiro —, queres levar-me este saco de farinha ao mercado?

         — Oh, é pena — disse Hans —, mas estou hoje muitíssimo ocupado. Tenho de regar ainda todo o jardim, de podar muitas roseiras, enfim, de fazer ainda quase todo o serviço.

         — Francamente! — exclamou o moleiro. — Acreditava que, em consideração a te haver dado o meu carrinho, não te negarias a fazer-me um favor.

        — Oh, sim! Eu não me nego! — protestou o pequeno Hans. — Jamais deixarei de agir como um verdadeiro amigo.

        E correu a buscar o seu gorro, partindo, em seguida, com o grande saco ao ombro.

        Era um dia de calor e a estrada estava muito poeirenta. Antes de alcançar o posto que marcava a sexta milha, Hans já estava tão cansado que teve de sentar-se para poder continuar depois. Chegou ao mercado, vendeu toda a farinha e voltou quase contido a casa, porque temia encontrar-se com algum salteador, se se demorasse pelo caminho.

        — Que trabalho árduo! — disse consigo mesmo ao deitar-se, à noite. — Mas estou contente por não me haver negado, porque o moleiro é o meu melhor amigo e, ademais, vai dar-me o seu carrinho.

        Na manhã seguinte, muito cedo, o moleiro chegou para receber o dinheiro do saco de farinha, mas o pequeno Hans estava tão fatigado que ainda não havia deixado a cama.

        — Palavra! — exclamou o moleiro. — És muito preguiçoso. Quando me lembro de que te dei o meu carrinho, acho que devias trabalhar com mais ardor.

        — Sinto muito — respondeu o pequeno Hans. — Eu estava tão fatigado que pensei que me havia deitado há pouco. Agora, porém, já me sinto bem.

        — Bravo! — exclamou o moleiro, dando-lhe uma palmada no ombro. — Preciso que faças o reparo no teto do estábulo.

        O pequeno Hans tinha grande necessidade de trabalhar no seu jardim, porque havia dois dias que não regava as suas flores, mas não quis negar-se a fazer a vontade do moleiro, que era o seu melhor amigo.

        Vestiu-se, apressadamente, e acompanhou o rico moleiro ao estábulo.

        Trabalhou o dia todo. Ao anoitecer, o moleiro veio verificar como iam as coisas.

        — Terminaste o serviço? — perguntou ele, alegremente.

        — Está quase pronto.

         —  Não há trabalho melhor do que o que se faz por outro! — exclamou o moleiro. — E agora que reparaste o teto do estábulo, é melhor que voltes para casa, a fim de descansares, pois amanhã necessito de que leves os meus carneiros à montanha.

        No dia seguinte, quando o pequeno Hans voltou da montanha, estava tão cansado que adormeceu em uma cadeira.

        — Que tempo bom para as minhas flores — pensou ele, ao acordar. E ia trabalhar quando chegou o moleiro e lhe pediu que fosse trabalhar no seu cercado, que precisava ser cultivado. O pobre jardineiro lembrou-se de suas flores. Precisava tanto de trabalhar no seu jardim... Mas acompanhou o moleiro, consolando-se em pensar que ele era o teu melhor amigo.

       — Além disso — dizia consigo mesmo —, vai dar-me o seu carrinho.

        O pequeno Hans continuou trabalhando para o moleiro, e este dizia muitas coisas belas sobre a amizade, coisas que Hans copiava em seu livro verde e que relia à noite, pois amava a leitura.

        Certa noite, estava o pequeno Hans sentado janto ao fogo, quando bateram à porta.

        A noite era negríssima. O vento soprava forte. Era intenso o frio.

        — Será algum pobre viajante? — disse consigo Hans, e correu para abrir a porta.

        Era o moleiro que estava com uma lanterna em uma mão e sustinha com a outra as rédeas de seu belo cavalo.

        — Querido Hans — gritou ele —, estou muito aflito. Meu filho caiu da escada. Está ferido. Preciso do médico. Mas ele mora tão longe daqui, e a noite está tão escura, que me lembrei de que era melhor que você fosse em meu lugar.

        — Certamente — exclamou o pequeno Hans. — Alegra-me muito que tenhas lembrado de mim. Irei imediatamente. Peço-te apenas a lanterna, pois está tão escuro que eu temo cair em algum pântano.

        — Sinto muitíssimo — respondeu o moleiro. — Mas é a minha lanterna nova e seria uma grande perda se voltasses sem ela.

        — Bem, não falemos mais nisso! Irei sem lanterna.

        A noite era tão negra que o pequeno Hans quase nada via. No entanto, depois de caminhar durante cerca de três horas, chegou à casa do médico, batendo à porta.

        — Quem bate? — gritou o doutor.

        — Sou eu, doutor! Hans!

        — E que desejas, Hans?

        — O filho do moleiro caiu de uma escada e machucou-se. Por isso, é necessário que o doutor vá até lá.

       — Muito bem — replicou o médico.

        Montou o seu cavalo e dirigiu-se à casa do moleiro, sendo seguido por Hans, que caminhava a pé.

        Começou a chover e Hans já nada via. Finalmente, perdeu o caminho. Vagou pelo terreno baldio. A chuva aumentava mais e mais. Havia muitos lugares pantanosos e, na escuridão, Hans caiu em um pântano, afogando-se.

        O seu cadáver foi encontrado no dia seguinte pelos guardadores de cabras que o levaram para sua cabana.

       Todo mundo assistiu ao enterro de Hans porque ele era muito querido.

        — Era eu o seu melhor amigo — dizia o moleiro. — É justo, pois, que eu ocupe o melhor lugar. A morte do pequeno Hans foi uma grande perda para todos. Disse o moleiro — Uma grande perda para mim, pelo menos- disse o moleiro.. Vejam que até lhe dei o meu carrinho e agora não sei o que fazer com ele, é um estorvo lá em casa, está em tão mal estado que se eu o vendesse, ninguém me daria nada por ele.

        E voltando-se para os outros , afirmou:

        Nunca mais hei de dar nada a ningém. Sofre-se sempre por ser generoso...

Ilustração de Charles Robinson (1870 – 1937).


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