Contexto histórico
A
independência de Moçambique, proclamada em 25
de junho de 1975, foi um evento de extrema importância na história do país
africano. Após séculos de colonização, o povo moçambicano conquistou sua
liberdade e soberania, iniciando um novo capítulo em sua trajetória como nação.
O conto abaixo foi inserido na obra publicada em 1964, denominada: Nós matamos o cão tinhoso, composta por sete contos e escrita pelo autor Luís Bernardo Honwana
AS MÃOS DOS PRETOS
Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.
Lembrei-me
disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não
prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós,
voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era
assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um
piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agoraé
ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm
as palmas das mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que
Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem
para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não
deva ficar senão limpa.
O Senhor
Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as
coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que
me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele
garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele
contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
“Antigamente,
há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos
outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas
que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer
pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer
o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e
não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo,
fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque
é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar
enquanto o barro deles cozia?!”.
Depois de
contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta
desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo
dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e
disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma
grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era
o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho
num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos,
como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito
fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se
vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num
livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras
por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais
não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse
isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é
que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que
todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é
a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais
claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos disso, eu e ela,
estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta
de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava
disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar
de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar,
agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi
mais ou menos isto:
“Deus fez os
pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que
realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os
outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a
servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar
todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam,
fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das
mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não
admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que
os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito
por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem
qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com
que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus
por não serem pretos”.
Depois de
dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.
Podemos observar, através da leitura do texto, que o autor
se utiliza da voz ingênua de uma criança para mostrar, através de uma ironia
sutil, os discursos racistas que
circulavam no mundo colonialista.
Qual a resposta dada por cada personagem sobre as mãos dos pretos?
1. O senhor professor – ciência:
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2. O senhor padre – religião:
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3. A Dona Dores – escravidão:
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4. O Senhor Antunes – Coca-Cola- império econômico:
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5. O narrador da crônica é branco ou negro? Justifique sua resposta com elementos do texto.
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6. O autor questiona os discursos racistas das classes dominantes através da voz de uma criança, sabemos que eles foram construídos ao longo dos anos e se perpetuaram por meio de piadas, troças, etc. Na sua opinião, como podemos desconstruir estes discursos?
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7. Qual a explicação foi dada pela mãe do menino sobre o assunto?
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8. A mãe ria das explicações que o menino lhe contava que tinha ouvido. Por quê?
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9. Por que quando o menino foi jogar bola a mãe chorou?
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10. Você acha que no Brasil há discursos racistas? Explique.
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