O enterro da bicicleta
Nelson Saúte
A aldeia foi
sacudida com a notícia da morte do deputado. Todas as mortes são notícia em
nossa terra, mas aquela foi invulgar. A consternação colheu também as aldeias
mais próximas. Sem dúvida que aquele era um acontecimento para se escrever nos
armoriais da povoação em que ele era a única personalidade carismática. Não era
a primeira vez que empreendia aquela viagem de bicicleta até à vila, onde
apanhava o machimbombo[1] que o levava ao distrito e, de lá, para a capital da
província, de onde se situava o parlamento. Nenhum dos habitantes daquelas
terras alguma vez ouvira falar de leões. Falava-se, sim, de crocodilos que, não
raro, devoravam crianças desprevenidas que tentavam atravessar para a margem
adversa do rio. Contava-se inclusive a história de uma mãe que velou a cabeça
do filho, dado que o corpo fora engolido por um crocodilo no rio. Aquele leão
foi o primeiro de que se ouviu falar e, provavelmente, ouvir-se-á falar por
muitos anos. Parece que o deputado ainda revelou alguma bravura quando se confrontou
com a situação. Não fugiu, olhou frontalmente o animal, sem medo da sua juba e
dos seus rugidos. Mas não estavam em igualdade de circunstâncias: as forças e
armas eram tremendamente desiguais. O leão levou a melhor, tanto mais que do
homem apenas restou uma bicicleta retorcida e alguns farrapos da sua roupa. A
aldeia parou durante dias para os seus funerais.
Quando
deputado seguia para a capital, a aldeia parava para saudá-lo. A cerimônia
decorria nas primeiras horas da manhã. Os habitantes da aldeia eram formalmente
convidados para dele se despedirem na véspera. Havia aqueles que mesmo assim
madrugavam para ir à machamba[2], mas à hora dos cumprimentos estavam na fila.
Formavam-se duas longas filas por onde ele passava saudando os seus eleitores.
Ninguém poderia duvidar: estava ali uma figura da aldeia, talvez a maior.
Via-se na forma como o homem era celebrado, com cantos corais, coreografias
populares, batuque e dança que levanta poeira.
O homem era
conhecido por possuir uma extensa biografia, mas sobretudo sublinhava-se a sua
passagem heroica pela luta armada. Aliás, o momento fundador da nacionalidade
tinha sido esse para os seus exaltadores. Era um homem predestinado,
indubitavelmente: não teve uma infância como as outras, cedo os seus ombros
carregaram a pátria. Não se falava, como os outros meninos, de uma pueril
passagem pela profissão de pastor de gado. Fora professor, isso sim, dizia-se
com ênfase, uma profissão nobre. Cedo havia de se envolver em atividades
políticas. Teve que abandonar a sua aldeia e rumar a Norte, para juntar-se à
luta. Regressou com a independência e não quis experimentar a vida da grande
cidade, não que temesse seus perigos, as tentações que devoraram os
revolucionários, a miragem que viu soçobrar muitos dos seus companheiros.
Retornou à sua aldeia porque acreditava que era um homem do campo e lá tinha
uma missão. Na verdade, aquela já não era a aldeia que deixara, mas muitos dos
habitantes eram ainda do seu tempo. Vivia agora numa aldeia comunal e
destacava-se nas atividades políticas.
Caserna e os
sonhos. Agora estavam distantes. Olhava e sorria. Tinha uma corrosiva ironia no
olhar, mas não perdia a modéstia nem a fleuma nas longas reuniões do partido,
no parlamento ou na aldeia.
Muito se dizia
também do deputado. Não foi ele que escolheu a mulher, foi-lhe atribuída pelo
chefe. Isso lá no mato.
"Queres
chegar à independência? Não vês que estão ali muitas camaradas?"
A pontaram
para uma solteira. Assim desposara a mulher com quem vivia e partilhava sua
vida. Acontece que o homem vivia alheio a esses boatos e prosseguia animado com
a sua atividade. Frequentemente descia para a capital, hospedava-se no hotel do
partido. Ali não faltava nada, mesmo quando lá fora tudo escasseava. Era o
tempo das bichas[3] e do cartão do racionamento. O prato de que mais gostava no
hotel era caldeirada de cabrito. Um Lada[4] vinha apanhá-lo e dirigia-se ao
parlamento.
Na aldeia onde
vivia o deputado não havia um único automóvel. Por aquela rua, a única, de
poeira e sem árvores, por vezes passavam bicicletas. Era uma rua sem o
sobressalto dos motores, apenas com crianças que brincavam debaixo do sol
quando não tinham aulas. Nos dias em que o deputado regressava da capital, a
rua enganalava-se. Duas crianças eram preparadas para oferecer uma coroa de
flores, que lhe era colocada sobre o pescoço. Muito gostava de vê-las a
marchar, com passos sincronizados, como se fazia nos dias festivos da capital.
O deputado cumprimentava toda a gente com delicadeza. O seu regresso era não só
motivo de festa na aldeia, mas também de frenesim.
O homem,
depois dos cumprimentos da aldeia, dirigia-se à casa, onde lhe esperavam um
balde de água quente para se banhar e comida diligentemente preparada pela
mulher. Enquanto isso, os seus inúmeros filhos não o largavam, tentando saber
que prensas o pai trouxera da grande cidade. mais tarde reunia-se com as
personalidades da aldeia e fazia uma longa banja[5], contando episódios das
viagens, as pessoas com quem falara, o contato com os altos dirigentes do
partido e da Nação. O deputado repetia fielmente os discursos proferidos na
tribuna do parlamento, argumentando sobre as vitórias da revolução, vituperando
o inimigo. Os seus olhos cresciam, os gestos eram largos, a sua eloquência
transformava-o numa figura mítica. Quem o ouvisse apenas poderia convencer-se
de que estava ali o presidente, fazendo um daqueles seus discursos.
O homem era o
orgulho daquela remota aldeia, que vivia das machambas, de algum gado, mais do
que nada. A água escasseava, mas havia um rio não muito longe, pelo qual as
mulheres percorriam aqueles quilómetros com bidões à cabeça. As casas de
adobe[6], muitas delas caiadas, hieráticas. Na varanda uma cama feita de palha,
onde os homens se deitavam na modorra das tardes do tempo de calor. Havia ali
um posto sanitário, muito precário, onde a velha parteira atendia a todo tipo
de doentes. A árvore mais frondosa tinha uma gigantesca copa que fazia uma
sombra enorme, capaz de albergar todas as crianças que aprendiam acocoradas.
Era uma aldeia pobre, mas os seus habitantes eram felizes. O deputado gostava
de o referir nos encontros em que participava quando relatava os progressos da
sua terra.
No dia em que
foi conhecida a notícia da morte do deputado, os miúdos não tiveram aulas, as
mamanas[7] regressaram cedo da machamba, os homens se reuniram na casa do mais
velho dos aldeões. O deputado era um homem de uma certa idade, mas havia
anciãos na aldeia, que tinham outra autoridade. A rua de poeira, onde
perfilavam os habitantes da aldeia para receber a figura singular da terra, era
um horizonte de tristeza e desolação. Os meninos recolheram-se. Não se ouviam
as gargalhadas que atravessavam os dias, nem os gritos dos que chamavam pelos
seus, apenas um ou outro galo cacarejava extemporâneo. Um profundo silêncio
baixara com a poeira da rua.
A velha
parteira fechara o posto sanitário. Não tinha muitos doentes. Era uma situação
de emergência. Foi encarregue de acompanhar e amparar a viúva. Outras mamanas
também assomaram à porta da casa do deputado com a mesma missão, enquanto os
homens tentavam uma saída para aquele imbróglio. Os filhos do falecido foram
distribuídos pelas famílias mais próximas para brincarem com outras crianças.
Os madodas[8]
foram unânimes: um funeral condigno impunha-se. Mas antes de tudo era preciso
resgatar o que sobrara do infausto encontro entre o homem e o animal naquela
viagem fatídica do deputado. As notícias não eram animadoras. Só havia a
bicicleta para testemunhar a violência da refrega. Mesmo a bicicleta, havia
quem asseverasse, já vinha muito desfigurada. A peleja tinha sido de meter
medo. Mas tinha que haver um funeral. Porém, não havia corpo para enterrar. O
mais-velho por vezes rompia o seu silêncio proverbial e falava olhando para a
imensidão do céu:
"A alma
do morto só descansa quando enterramos o seu corpo."
Um outro, do
grupo, interrogou-se:
"Como
havemos de vestir o luto se não enterrarmos o homem?
A despeito
formaram-se várias comissões. As reuniões e a azáfama se haviam apoderado de
todos. A aldeia preparava-se para se curvar à memória e em homenagem ao seu
mais ilustre filho, o deputado da Nação.
"Ele
merece um funeral de Estado!"
Quase ninguém
entendeu aquela frase desabrida, aquela enfática proclamação. As ideias
sucediam-se:
"Temos
que construir um mausoléu."
Também ninguém
sabia o que significava aquela palavra que encerrava uma evidente
grandiloquência. Apenas o professor, que era uma lenda da aldeia, se recordava
do significado daquela estranha coisa que tinha sido invocada. Ele explicaria
complicando:
"Mausoléu
é um sepulcro suntuoso."
Mais confusão.
O homem do partido, que fizera aquela eloquente proposta, encheu os pulmões de
orgulho e rematou:
"Mausoléu
é um lugar onde se enterram os grandes. Enterram é um força de expressão. Na
verdade, eles são depositados em gavetas."
Sem discordar,
houve quem atalhasse:
"Os
grandes, afinal, não estão depositados numa cripta?"
"Sim, os
nossos grandes descansam na cripta, mas esses são os grandes nacionais, outros
assim como o deputado merecem também o nosso respeito, mas é um exagero fazer
uma estrela como aquela construída na praça dos heróis à entrada da capital.
Por isso, a ideia do mausoléu. podíamos propor às autoridades que se fizesse um
mausoléu para a ilustre figura da nossa aldeia."
O proponente
di-lo com tamanho entusiasmo que ficara depois a olhar em volta à espera da
anuência dos outros. O mais-velho, dono da casa, confirmou que era um homem
sensato, coisa que se atinge também com a idade. Interrogou, derrubando os
argumentos do homem que representava o partido:
"Essa
coisa de cripta faz-se com adobe e se cobre com capim?"
A ideia de
construir seja o que fosse estava deitada por terra. Foram discutidas outras
hipóteses. A verdade é que toda a gente estava de acordo: o deputado teria umas
exéquias fúnebres à sua altura, uma homenagem sentida de toda a população, mais
nada de ideias estapafúrdias, nada de proselitismos.
Depois, viriam
certamente representantes de outras povoações, até da vila e da cidade, quem
sabe um representante da própria Nação? Afinal, tratava-se de um eleito do
povo. Era preciso providenciar alojamento para essas visitas insignes e seu
respectivo acompanhamento. foram organizadas casas para os receber e uma
comissão dos madodas avançou para recuperar a bicicleta ou aquilo que dela
sobrava: os despojos da guerra.
Estava
decidido: seria sepultada a bicicleta, far-se-ia uma urna, que seria velada e
enterrada como se o próprio dono se tratasse.
"Só assim
a alma do homem descansará."
Ninguém se
opôs e pareceu que a ideia era mesmo brilhante. A comissão das exéquias já estava
no terreno, a comissão da logística e responsável por visitas desdobrava-se.
Começaram os ensaios dos cânticos pela comissão das atividades culturais que
funcionava na aldeia nos dias festivos como a data da independência e outras
ocasiões. Sempre que uma figura importante desembarcava naquele lugar, mesmo o
próprio deputado tinha sido agraciado inúmeras vezes com aqueles cânticos. Era
uma mamana da OMM[9] que cuidava do assunto e, ao que parece, mostrava uma
indubitável competência. A comissão da ornamentação tratou de colher flores
silvestres das mais variadas. À entrada da casa do deputado havia uma coroa
enorme e o percurso que foi traçado do lugar onde sairia a urna até ao
cemitério foi igualmente enganalado.
Nenhum
pormenor escapou. Havia duas bandeiras apenas na aldeia. Uma por estrear, que
viera com o administrador do distrito e fora guardada para ocasiões solenes; a
outra estava rota. Ambas foram postas a meia haste. Os miúdos desenharam
bandeiras nas folhas centrais dos cadernos e prenderam-nas com paus de caniço à
entrada das casas. Vieram visitas de longe: o administrador, representantes de
outras aldeias, uma alta figura que ninguém sabia identificar. A aldeia toda
compareceu na manhã do funeral e concentrou-se junto do palanque que ficava num
descampado que servia de campo de futebol para os miúdos. Quase todos
envergavam roupa que denunciava o luto e tinham os rostos compungidos de dor e
tristeza.
A urna impunha
num pequeno estrado. Foi coberta por capulanas[10], as bandeiras, as duas
únicas que existiam não eram suficientes para todo o féretro. Os convidados
tinham lugares sentados, assim como as autoridades locais e aqueles que se
haviam deslocado para a cerimônia. A viúva e os nove filhos do deputado estavam
sentados na primeira fila, do lado esquerdo, num banco sem costas, por onde
passaria a enorme fila dos que lhes prestavam homenagem.
O velório
tinha sido marcado para as primeiras horas, o sol foi célere a atingir o rosto
dos presentes. As mulheres cantavam. O chefe da célula do partido fez o elogio
fúnebre, seguiram-se mensagens, antes de os homens da aldeia carregarem,
compungidos, aquela enorme e disforme urna. O cortejo percorreu o trajeto
indicado, os cantos e os acenos dos que se despediam do deputado são insequecíveis.
Chegados ao cemitério houve mais elogios antes de a urna descer à terra.
No final,
houve lavagem de mão, em casa do defunto. A cerimônia do chá tinha muita gente
e aí as conversas, nos círculos dos homens, já denunciavam que havia alguma
descontração. os forasteiros começaram a despedir-se a meio da tarde para
empreenderem a viagem de regresso. De repente, surgiu um burburinho e começaram
a juntar-se pessoas. Chegara, não muito tempo antes, um mensageiro. O homem
fizera tudo para chegar antes dos funerais da defunta bicicleta. Poré, houve
percalços que o atrasaram pelo caminho. À sua volta estavam apenas os homens
que haviam comparecido àquele último ritual de despedida do deputado. As
mulheres mantinham-se num grupo à parte. O mensageiro caiu fatigado, sempre com
a língua de fora. Ainda tentaram reanimá-lo. Estava morto antes de revelar o
que lhe trouxera de tão longe.
1. Onde se passa a história?
A história inteira se passa em uma aldeia (sem localização
especifica no livro.)
2. Em que tempo se passa o conto?
O tempo do é: passado. O tempo passado é retratado quando o
narrador conta a história do falecido deputado e o que ele fez.
3. Clímax
O clímax do conto acontece quando os moradores da aldeia
descobrem que no lugar do corpo do falecido deputado há uma bicicleta, item que
retratava muito bem o mesmo.
4. Como o deputado morreu?
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5. Qual grande feito tornou o deputado muito conhecido?
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6. O que era oferecido ao deputado quando ele voltava à
vila?
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7. O que sobrou da luta do deputado com o leão?
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8. Retire do texto uma frase que comprove a pobreza da vila.
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9. Quais eram as características do deputado.
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10. O mensageiro morre de exaustão sem dar a mensagem que
trazia. Qual seria a notícia?
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