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quarta-feira, 19 de junho de 2024

PRIMO BITÚ - CONTO AFRICANO - ATIVIDADES

 

PRIMO BITÚ - Fátima Bettencourt

https://core.ac.uk/download/pdf/38680768.pdf

 

        No dia de Ano Novo, mais fatal que o destino, chegava todos os anos Primo Bitú à nossa casa, bem de manhãzinha.

        Ainda no rescaldo do Natal, nós, os meninos da casa também madrugávamos, agarrados às cometas, bolas e bonecas de farrapos no limite do transitório encanto. Já não causavam o deslumbramento de uma semana atrás, mas havia sempre e possibilidade de se recriar a beleza perdida da boneca acoplando-lhe uma cabeleira com bonitas e frescas barbas de milho, que a nossa horta do Mato Inglês produzia praticamente todo o ano. Umas havia da cor de ouro velho, brilhantes e sedosas que logo transformavam a feia boneca de feições espalmadas numa linda vampe. Mal imaginava eu na minha infância tão simples, que tinha nas mãos e percursora da sofisticada Barbie que muitos anos mais tarde viria a encantar a meninice das minhas filhas e atrapalhar os meus orçamentos sempre deficitários de jovem mãe, as toiletes e adornos da Barbie não mais colhidos da natureza, adquiridas a peso de ouro.  

         Os meninos macho da casa, esses rapidamente descobriam que a flauta de cana com os buraquinhos vedados por finíssimas teias de aranha tinha possibilidades melódicas de longe superiores às da cometa do Pai natal. Esta então era utilizada como moeda de troca e ia deslumbrar os meninos de nhô Brás, do outro lado do pequeno vale, que em contrapartida esvaziavam os bolos de piões, guitas e botões.

        Por aí se vê que a nossa manhã do dia de Janeiro era ocupadíssima, sem espaços mortos. Como então arranjar tempo e paciência para Primo Bitú com a sua cara bexiguenta, os seus olhos aguados e nebulosos e as enormes orelhas que no ultimo Janeiro descobríramos serem transparentes?

        Primo Bitú usava sempre casaco e bengala. O seu olhar soturno condizia com a fala pousada e grave. Parecia estar sempre triste. Estendia às pessoas uma mão fria e frouxa como se estivesse apresentado condolências. Tinha a mania de nos abençoar com aquela mesma mãe de casa de morto inspirando-nos mais medo que qualquer outro sentimento.

        Meu pai então para evitar que passássemos do medo ao gozo, falava do primo com grande entusiasmo e mostrava-nos que ela era pessoa muito direita a que devíamos respeitar.

        Naquela manhã, primo Bitú chegara mais cedo que de costume. Ainda se ouvia o pilão na preparação da farinha para cuscus. Meu pai, mais madrugador, fora à fora buscar um cachinho de banana prata especialmente guardado para aquele dia de festa.

        Na verdade trata-se apenas de um subterfúgio para encobrir o seu principal objectivo que era matar um cabrito para o almoço mas isso podia dizer.

        Havia muita criação em nossa casa, e a nossa relação com os filhotes era tão íntima e cheia de ternura que matar um deles, à vista dos meninos, estava totalmente fora de questão. Cabrito, franguinha, leitão, burrinho, cada um tinha um nome próprio e era o bichinho de estimação de alguém da casa e o companheiro de brincadeira dos garotos.

        É certo que víamos a carne aparecer à nossa mesa mas sempre surgia alguma história que justificava a sua origem ou o desaparecimento de um bichinho mais querido. Só as mortes por doença eram declaradas e choradas como daquela vez que o nosso burrinho “Crêtcheu” apareceu morto e não queríamos enterrá-lo. Por fim lá assistimos ao enterro empunhando ramos de flores bravias que íamos orvalhando com as nossas lágrimas. Durante o dia ficamos meio macambúzios, aquele bichinho que parecia um boneco de pelúcia e saltava conosco pelos pilares da horta não estava mais ali e isso nos causava uma dor enorme. Foi nesse dia que a nossa galinha “dourada”, sumida havia dias, surgiu no terreiro com um bando de pintainhos felpudos atrás. Esquecemos “Crêtcheu” temporariamente e só à tarde deparamos coma mãe do burrinho, nessa manhã enterrado, de orelhas murchas, a ração intacta, toda desconsolada. Então, ocorreu-nos que se ela sentisse alguém a mamar o leite pensaria que era o filho e se sentiria melhor. Sem mais delongas passámos à acção e quando a minha mãe descobriu estávamos a mamar o leite da besta havia dias. Salvou-nos Nhô Cirilo, um dos empregados, que garantiu que o leite de burra era excelente para os pulmões e que muita doença era curada com ele.

        Salvo o devido respeito por Primo Bitú, o burrinho “Crêtcheu” tem um cantinho muito especial nas minhas recordações. Daí o parêntesis e a inesperada homenagem. Fomos logo avisar a minha mãe que achou que o melhor era oferecer-lhe uma cadeira ali mesmo no terreiro, a casa não estava ainda devidamente arrumada para a gente de fora. Era dia e os preparativos muito mais complicados.

        Da enorme mala de madeira a minha mãe já retirara uma colcha de seda quase branca e uma toalha com renda à volta e ia começar a arranjar tudo, mas essa visita tão matinal era quase um contratempo. Se bem que ela nunca tivesse falhado não anos anteriores, nos alimentávamos a esperança de poder um dia sentar-nos à mesa do café sem aquela figura sinistra mastigando lentamente e sorvendo o café com ruídos. Não era ainda dessa vez que o nosso desejo se realizava.

        A minha mãe, decidida, colocou ela própria a cadeira no terreiro com um pedido de desculpas “sabe, primo, você é de casa, eu estou a dar um jeitinho lá dentro… é um dia especial, o primo não leva a mal”. Lá se foi a minha mãe às suas tarefas deixandonos ali para fazer”sala” ao primo, eu com a minha boneca de cabeleira acobreada bem presa ao peito, os meus irmãos cochichando coisas, o mais novinho cheio de medo não conseguia parar de fitar o olho aguado e mortiço do primo, um olhar de réptil hipnotizando um passarinho.  

        Fomos salvos por meu pai que regressou da horta com um cabritinho a que já tirara a pele, não fôssemos nós reconhecer o “pintadinho” tão nosso conhecido. Como sempre meu pai recebeu primo Bitú com exageradas demonstrações de alegria completamente incompreensíveis para nós. Como poderia aquela aparição causar alegria a alguém? Meu pai, porém, não entendia isso. Primo Bitú largara de sua casa de Monte Sossego, galgara a pé os oito quilómetros até Mato Inglês para dar as Boas Festas a uns parentes muito estimados e tínhamos que o receber engalanados em arco e ser amáveis durante o tempo que ele ali estivesse.

        Quanto mais crescidos ficávamos, menos paciência tínhamos para aquele visitante, de pedra e cal na nossa mesa todo o dia de Janeiro que Deus punho no mundo, desde que a minha memoria se lembrava. Sentíamos roubados das atenções dos mais velhos, das brincadeiras habituais, a minha mãe atenta ao codé e sua preferência por catchupa guisado dentro do café, procurando conter a minha obsessão pelas boas maneiras, capaz era eu de chamar a atenção de um visitante que cometesse alguma gafe enfim um clima diferente, quase tenso, todos preocupados com o primo “esta linguiça está muito saborosa, eu mesa fiz, coma um bocadinho”, “mais café, está quentinho!” a minha mãe sempre apaparicando o primo, os três filhos ali, ao Deus dará, nem isso talvez, pois qualquer deslize era prontamente anotado e silenciosamente reprovado com uma mirada certeira. Mas que café mais comprido! E que visitante mais indesejável! Acontecimentos posteriores viriam a mostrar como estávamos enganados.

       Naquela manhã, a conversa tombou para novidades da morada. Primo Bitú animou-se. Uma centelha pareceu soltar dos seus olhos pois ele trazia uma grande novidade. Tinham desencadeado uma grande campanha de vacina. A varíola que grassava pela costa africana ameaçava atingir-nos. Tudo inútil, dizia ele, aqueles doutores, todos uns ignorante nada entendiam daquela doença.

       – Imagine – dizia desdenhoso – querem curar bexiga com uma canetinha de arranhar nos braços das pessoas. Eles deviam era vir ter comigo porque eu já tive bexiga em Santo Antão, até que já ninguém contava que eu conseguisse sobreviver. Basta dizer que me puseram num casinhoto para morrer e até os pássaros brancos já andavam por ali a rondar. Estão a ver que eu conheço esta doença. Os doutores se quiserem saber alguma coisa sobre bexigas, eu vou ditando e eles vão escrevendo – aí meu pai não se conteve e caiu no riso. Mais impressionados estávamos nós com o calor e a animação que de repente se revelara naquele homem via de regra tão circunspecto. Aquele que estava ali explanando originais teorias sobre varíola era certamente alguém que não conhecíamos. A sua supremacia sobre a ciência médica nos animava a dar largas a nossa curiosidade. Acabámos descobrindo que o Primo Bitú era um falador interessantíssimo com resposta pronta para tudo e mil teorias pessoais elaborados numa vida longa e próxima e cheia de peripécias. Afinal ele não era soturno nem triste. Não era pois necessário programar a próxima visita para dali a um ano. Podia ser já no próximo Domingo. Insistimos até arrancar-lhe a promessa de passar a visitar-nos semanalmente. Aceitou logo e foi acrescentando que apesar de estarmos a crescer no campo éramos uns meninos espertos e sobretudo muito educados.

        O sol começava a descer para o Monte Cara quando o primo Bitú deixou o Mato inglês em direcção à cidade depois de um lanchinho de chá de cidreira, batata assada, queijo e doce caseiro. Despediu-se com muitos abraços e vénias, a mão um pouco mais quente, o coração também. Partiu segurando a bengala, pela vereda que ligava a nossa casa à estrada. Ficámos no terreiro vendo a sua pontinha de saudade. Felizmente só faltavam quatro dias para ele voltar.

        À noite, à volta da mesa, olhando a chama trémula do candeeiro a petróleo, o nosso silêncio era cheio de subentendidos e uma compreensão nascente das coisas da vida. Naquele dia crescêramos um pouco mais.

 

1. Qual o assunto principal do texto?

Visita do Primo Bitú à casa dos pais da narradora.

 

2. Quais são as personagens do texto?

Primo Bitú, a narradora, os dois irmãos, a mãe e o pai da narradora, Nhô Cirilo e Nho Brás (personagem figurante).

 

3. Onde se passou esta história?

Em Cabo Verde, Mato Inglês.

 

4. Quando aconteceu esta história?

1º de Janeiro – Dia do Ano Novo.

 

5. Qual foi a alternativa que a narradora encontrou para restaurar a boneca?

 A narradora fez uma cabeleira com bonitas e frescas barbas de milho.

 

6. As crianças não suportavam o primo Bitú. Retire do texto uma frase que justifique essa afirmação.

Não tinham tempo e nem paciência.

 

7. Por que as crianças mamaram o leite da burra?

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8. Por que motivo o pai trouxe o cabrito já sem a pele?

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9. No final os meninos acabam gostando do primo, por quê?

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10. Qual o nome do conto e o nome da autora?

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O ENTERRO DA BICICLETA - CONTO AFRICANO - ATIVIDADES

 

O enterro da bicicleta

Nelson Saúte

 

        A aldeia foi sacudida com a notícia da morte do deputado. Todas as mortes são notícia em nossa terra, mas aquela foi invulgar. A consternação colheu também as aldeias mais próximas. Sem dúvida que aquele era um acontecimento para se escrever nos armoriais da povoação em que ele era a única personalidade carismática. Não era a primeira vez que empreendia aquela viagem de bicicleta até à vila, onde apanhava o machimbombo[1] que o levava ao distrito e, de lá, para a capital da província, de onde se situava o parlamento. Nenhum dos habitantes daquelas terras alguma vez ouvira falar de leões. Falava-se, sim, de crocodilos que, não raro, devoravam crianças desprevenidas que tentavam atravessar para a margem adversa do rio. Contava-se inclusive a história de uma mãe que velou a cabeça do filho, dado que o corpo fora engolido por um crocodilo no rio. Aquele leão foi o primeiro de que se ouviu falar e, provavelmente, ouvir-se-á falar por muitos anos. Parece que o deputado ainda revelou alguma bravura quando se confrontou com a situação. Não fugiu, olhou frontalmente o animal, sem medo da sua juba e dos seus rugidos. Mas não estavam em igualdade de circunstâncias: as forças e armas eram tremendamente desiguais. O leão levou a melhor, tanto mais que do homem apenas restou uma bicicleta retorcida e alguns farrapos da sua roupa. A aldeia parou durante dias para os seus funerais.

        Quando deputado seguia para a capital, a aldeia parava para saudá-lo. A cerimônia decorria nas primeiras horas da manhã. Os habitantes da aldeia eram formalmente convidados para dele se despedirem na véspera. Havia aqueles que mesmo assim madrugavam para ir à machamba[2], mas à hora dos cumprimentos estavam na fila. Formavam-se duas longas filas por onde ele passava saudando os seus eleitores. Ninguém poderia duvidar: estava ali uma figura da aldeia, talvez a maior. Via-se na forma como o homem era celebrado, com cantos corais, coreografias populares, batuque e dança que levanta poeira.

        O homem era conhecido por possuir uma extensa biografia, mas sobretudo sublinhava-se a sua passagem heroica pela luta armada. Aliás, o momento fundador da nacionalidade tinha sido esse para os seus exaltadores. Era um homem predestinado, indubitavelmente: não teve uma infância como as outras, cedo os seus ombros carregaram a pátria. Não se falava, como os outros meninos, de uma pueril passagem pela profissão de pastor de gado. Fora professor, isso sim, dizia-se com ênfase, uma profissão nobre. Cedo havia de se envolver em atividades políticas. Teve que abandonar a sua aldeia e rumar a Norte, para juntar-se à luta. Regressou com a independência e não quis experimentar a vida da grande cidade, não que temesse seus perigos, as tentações que devoraram os revolucionários, a miragem que viu soçobrar muitos dos seus companheiros. Retornou à sua aldeia porque acreditava que era um homem do campo e lá tinha uma missão. Na verdade, aquela já não era a aldeia que deixara, mas muitos dos habitantes eram ainda do seu tempo. Vivia agora numa aldeia comunal e destacava-se nas atividades políticas.

        Caserna e os sonhos. Agora estavam distantes. Olhava e sorria. Tinha uma corrosiva ironia no olhar, mas não perdia a modéstia nem a fleuma nas longas reuniões do partido, no parlamento ou na aldeia.

        Muito se dizia também do deputado. Não foi ele que escolheu a mulher, foi-lhe atribuída pelo chefe. Isso lá no mato.

        "Queres chegar à independência? Não vês que estão ali muitas camaradas?"

        A pontaram para uma solteira. Assim desposara a mulher com quem vivia e partilhava sua vida. Acontece que o homem vivia alheio a esses boatos e prosseguia animado com a sua atividade. Frequentemente descia para a capital, hospedava-se no hotel do partido. Ali não faltava nada, mesmo quando lá fora tudo escasseava. Era o tempo das bichas[3] e do cartão do racionamento. O prato de que mais gostava no hotel era caldeirada de cabrito. Um Lada[4] vinha apanhá-lo e dirigia-se ao parlamento.

        Na aldeia onde vivia o deputado não havia um único automóvel. Por aquela rua, a única, de poeira e sem árvores, por vezes passavam bicicletas. Era uma rua sem o sobressalto dos motores, apenas com crianças que brincavam debaixo do sol quando não tinham aulas. Nos dias em que o deputado regressava da capital, a rua enganalava-se. Duas crianças eram preparadas para oferecer uma coroa de flores, que lhe era colocada sobre o pescoço. Muito gostava de vê-las a marchar, com passos sincronizados, como se fazia nos dias festivos da capital. O deputado cumprimentava toda a gente com delicadeza. O seu regresso era não só motivo de festa na aldeia, mas também de frenesim.

        O homem, depois dos cumprimentos da aldeia, dirigia-se à casa, onde lhe esperavam um balde de água quente para se banhar e comida diligentemente preparada pela mulher. Enquanto isso, os seus inúmeros filhos não o largavam, tentando saber que prensas o pai trouxera da grande cidade. mais tarde reunia-se com as personalidades da aldeia e fazia uma longa banja[5], contando episódios das viagens, as pessoas com quem falara, o contato com os altos dirigentes do partido e da Nação. O deputado repetia fielmente os discursos proferidos na tribuna do parlamento, argumentando sobre as vitórias da revolução, vituperando o inimigo. Os seus olhos cresciam, os gestos eram largos, a sua eloquência transformava-o numa figura mítica. Quem o ouvisse apenas poderia convencer-se de que estava ali o presidente, fazendo um daqueles seus discursos.

        O homem era o orgulho daquela remota aldeia, que vivia das machambas, de algum gado, mais do que nada. A água escasseava, mas havia um rio não muito longe, pelo qual as mulheres percorriam aqueles quilómetros com bidões à cabeça. As casas de adobe[6], muitas delas caiadas, hieráticas. Na varanda uma cama feita de palha, onde os homens se deitavam na modorra das tardes do tempo de calor. Havia ali um posto sanitário, muito precário, onde a velha parteira atendia a todo tipo de doentes. A árvore mais frondosa tinha uma gigantesca copa que fazia uma sombra enorme, capaz de albergar todas as crianças que aprendiam acocoradas. Era uma aldeia pobre, mas os seus habitantes eram felizes. O deputado gostava de o referir nos encontros em que participava quando relatava os progressos da sua terra.

        No dia em que foi conhecida a notícia da morte do deputado, os miúdos não tiveram aulas, as mamanas[7] regressaram cedo da machamba, os homens se reuniram na casa do mais velho dos aldeões. O deputado era um homem de uma certa idade, mas havia anciãos na aldeia, que tinham outra autoridade. A rua de poeira, onde perfilavam os habitantes da aldeia para receber a figura singular da terra, era um horizonte de tristeza e desolação. Os meninos recolheram-se. Não se ouviam as gargalhadas que atravessavam os dias, nem os gritos dos que chamavam pelos seus, apenas um ou outro galo cacarejava extemporâneo. Um profundo silêncio baixara com a poeira da rua.

        A velha parteira fechara o posto sanitário. Não tinha muitos doentes. Era uma situação de emergência. Foi encarregue de acompanhar e amparar a viúva. Outras mamanas também assomaram à porta da casa do deputado com a mesma missão, enquanto os homens tentavam uma saída para aquele imbróglio. Os filhos do falecido foram distribuídos pelas famílias mais próximas para brincarem com outras crianças.

        Os madodas[8] foram unânimes: um funeral condigno impunha-se. Mas antes de tudo era preciso resgatar o que sobrara do infausto encontro entre o homem e o animal naquela viagem fatídica do deputado. As notícias não eram animadoras. Só havia a bicicleta para testemunhar a violência da refrega. Mesmo a bicicleta, havia quem asseverasse, já vinha muito desfigurada. A peleja tinha sido de meter medo. Mas tinha que haver um funeral. Porém, não havia corpo para enterrar. O mais-velho por vezes rompia o seu silêncio proverbial e falava olhando para a imensidão do céu:

        "A alma do morto só descansa quando enterramos o seu corpo."

        Um outro, do grupo, interrogou-se:

        "Como havemos de vestir o luto se não enterrarmos o homem?

        A despeito formaram-se várias comissões. As reuniões e a azáfama se haviam apoderado de todos. A aldeia preparava-se para se curvar à memória e em homenagem ao seu mais ilustre filho, o deputado da Nação.

        "Ele merece um funeral de Estado!"

        Quase ninguém entendeu aquela frase desabrida, aquela enfática proclamação. As ideias sucediam-se:

        "Temos que construir um mausoléu."

        Também ninguém sabia o que significava aquela palavra que encerrava uma evidente grandiloquência. Apenas o professor, que era uma lenda da aldeia, se recordava do significado daquela estranha coisa que tinha sido invocada. Ele explicaria complicando:

        "Mausoléu é um sepulcro suntuoso."

        Mais confusão. O homem do partido, que fizera aquela eloquente proposta, encheu os pulmões de orgulho e rematou:

        "Mausoléu é um lugar onde se enterram os grandes. Enterram é um força de expressão. Na verdade, eles são depositados em gavetas."

        Sem discordar, houve quem atalhasse:

        "Os grandes, afinal, não estão depositados numa cripta?"

        "Sim, os nossos grandes descansam na cripta, mas esses são os grandes nacionais, outros assim como o deputado merecem também o nosso respeito, mas é um exagero fazer uma estrela como aquela construída na praça dos heróis à entrada da capital. Por isso, a ideia do mausoléu. podíamos propor às autoridades que se fizesse um mausoléu para a ilustre figura da nossa aldeia."

        O proponente di-lo com tamanho entusiasmo que ficara depois a olhar em volta à espera da anuência dos outros. O mais-velho, dono da casa, confirmou que era um homem sensato, coisa que se atinge também com a idade. Interrogou, derrubando os argumentos do homem que representava o partido:

        "Essa coisa de cripta faz-se com adobe e se cobre com capim?"

 

        A ideia de construir seja o que fosse estava deitada por terra. Foram discutidas outras hipóteses. A verdade é que toda a gente estava de acordo: o deputado teria umas exéquias fúnebres à sua altura, uma homenagem sentida de toda a população, mais nada de ideias estapafúrdias, nada de proselitismos.

        Depois, viriam certamente representantes de outras povoações, até da vila e da cidade, quem sabe um representante da própria Nação? Afinal, tratava-se de um eleito do povo. Era preciso providenciar alojamento para essas visitas insignes e seu respectivo acompanhamento. foram organizadas casas para os receber e uma comissão dos madodas avançou para recuperar a bicicleta ou aquilo que dela sobrava: os despojos da guerra.

        Estava decidido: seria sepultada a bicicleta, far-se-ia uma urna, que seria velada e enterrada como se o próprio dono se tratasse.

        "Só assim a alma do homem descansará."

        Ninguém se opôs e pareceu que a ideia era mesmo brilhante. A comissão das exéquias já estava no terreno, a comissão da logística e responsável por visitas desdobrava-se. Começaram os ensaios dos cânticos pela comissão das atividades culturais que funcionava na aldeia nos dias festivos como a data da independência e outras ocasiões. Sempre que uma figura importante desembarcava naquele lugar, mesmo o próprio deputado tinha sido agraciado inúmeras vezes com aqueles cânticos. Era uma mamana da OMM[9] que cuidava do assunto e, ao que parece, mostrava uma indubitável competência. A comissão da ornamentação tratou de colher flores silvestres das mais variadas. À entrada da casa do deputado havia uma coroa enorme e o percurso que foi traçado do lugar onde sairia a urna até ao cemitério foi igualmente enganalado.

        Nenhum pormenor escapou. Havia duas bandeiras apenas na aldeia. Uma por estrear, que viera com o administrador do distrito e fora guardada para ocasiões solenes; a outra estava rota. Ambas foram postas a meia haste. Os miúdos desenharam bandeiras nas folhas centrais dos cadernos e prenderam-nas com paus de caniço à entrada das casas. Vieram visitas de longe: o administrador, representantes de outras aldeias, uma alta figura que ninguém sabia identificar. A aldeia toda compareceu na manhã do funeral e concentrou-se junto do palanque que ficava num descampado que servia de campo de futebol para os miúdos. Quase todos envergavam roupa que denunciava o luto e tinham os rostos compungidos de dor e tristeza.

        A urna impunha num pequeno estrado. Foi coberta por capulanas[10], as bandeiras, as duas únicas que existiam não eram suficientes para todo o féretro. Os convidados tinham lugares sentados, assim como as autoridades locais e aqueles que se haviam deslocado para a cerimônia. A viúva e os nove filhos do deputado estavam sentados na primeira fila, do lado esquerdo, num banco sem costas, por onde passaria a enorme fila dos que lhes prestavam homenagem.

        O velório tinha sido marcado para as primeiras horas, o sol foi célere a atingir o rosto dos presentes. As mulheres cantavam. O chefe da célula do partido fez o elogio fúnebre, seguiram-se mensagens, antes de os homens da aldeia carregarem, compungidos, aquela enorme e disforme urna. O cortejo percorreu o trajeto indicado, os cantos e os acenos dos que se despediam do deputado são insequecíveis. Chegados ao cemitério houve mais elogios antes de a urna descer à terra.

 

        No final, houve lavagem de mão, em casa do defunto. A cerimônia do chá tinha muita gente e aí as conversas, nos círculos dos homens, já denunciavam que havia alguma descontração. os forasteiros começaram a despedir-se a meio da tarde para empreenderem a viagem de regresso. De repente, surgiu um burburinho e começaram a juntar-se pessoas. Chegara, não muito tempo antes, um mensageiro. O homem fizera tudo para chegar antes dos funerais da defunta bicicleta. Poré, houve percalços que o atrasaram pelo caminho. À sua volta estavam apenas os homens que haviam comparecido àquele último ritual de despedida do deputado. As mulheres mantinham-se num grupo à parte. O mensageiro caiu fatigado, sempre com a língua de fora. Ainda tentaram reanimá-lo. Estava morto antes de revelar o que lhe trouxera de tão longe.

 

 

1. Onde se passa a história?

A história inteira se passa em uma aldeia (sem localização especifica no livro.)

 

2. Em que tempo se passa o conto?

O tempo do é: passado. O tempo passado é retratado quando o narrador conta a história do falecido deputado e o que ele fez.

 

3. Clímax

 

O clímax do conto acontece quando os moradores da aldeia descobrem que no lugar do corpo do falecido deputado há uma bicicleta, item que retratava muito bem o mesmo.

 

4. Como o deputado morreu?

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5. Qual grande feito tornou o deputado muito conhecido?

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6. O que era oferecido ao deputado quando ele voltava à vila?

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7. O que sobrou da luta do deputado com o leão?

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8. Retire do texto uma frase que comprove a pobreza da vila.

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9. Quais eram as características do deputado.

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10. O mensageiro morre de exaustão sem dar a mensagem que trazia. Qual seria a notícia?

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segunda-feira, 10 de junho de 2024

CONTO - AS MÃO DOS PRETOS - ATIVIDADES - CONTOS AFRICANOS

 Contexto histórico

          A independência de Moçambique, proclamada em 25 de junho de 1975, foi um evento de extrema importância na história do país africano. Após séculos de colonização, o povo moçambicano conquistou sua liberdade e soberania, iniciando um novo capítulo em sua trajetória como nação.

          O conto abaixo foi inserido na obra publicada em 1964, denominada: Nós matamos o cão tinhoso, composta por sete contos e escrita pelo autor Luís Bernardo Honwana

 

AS MÃOS DOS PRETOS

 

        Já nem sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.

        Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.

        Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agoraé ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as palmas das mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.

        O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse-me que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:

        “Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e decidiram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!”.

        Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.

        Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.

        Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Vírginia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos desbotarem à força de tão lavadas.

Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!

        A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos disso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela me disse foi mais ou menos isto:

        “Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos”.

        Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.

        Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.

 

 

 

 

Podemos observar, através da leitura do texto, que o autor se utiliza da voz ingênua de uma criança para mostrar, através de uma ironia sutil, os discursos racistas que circulavam no mundo colonialista.

 

Qual a resposta dada por cada personagem sobre as mãos dos pretos?

 

1. O senhor professor – ciência:

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2. O senhor padre – religião:

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3. A Dona Dores – escravidão:

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4. O Senhor Antunes – Coca-Cola- império econômico:

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5. O narrador da crônica é branco ou negro? Justifique sua resposta com elementos do texto.

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6. O autor questiona os discursos racistas das classes dominantes através da voz de uma criança, sabemos que eles foram construídos ao longo dos anos e se perpetuaram por meio de piadas, troças, etc. Na sua opinião, como podemos desconstruir estes discursos?

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7. Qual a explicação foi dada pela mãe do menino sobre o assunto?

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8. A mãe ria das explicações que o menino lhe contava que tinha ouvido. Por quê?

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9. Por que quando o menino foi jogar bola a mãe chorou?

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10. Você acha que no Brasil há discursos racistas? Explique.

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