O ENVIADO DE DEUS – FERNANDO SABINO
FAZIA
um dia lindo. O ar ao longo da praia era desses de lavar a alma.
O meu fusca deslizava dócil no asfalto, eu ia para a cidade feliz da vida.
Tomara o meu banho, fizera a barba e, metido além do mais num terno novo, saíra
para enfrentar com otimismo a única perspectiva sombria naquela manhã de
cristal: a da hora marcada no dentista.
Mas
eis que o sinal se fecha na Avenida Princesa Isabel e um rapazinho humilde se
aproxima de meu carro.
—
Moço, me dá uma carona até a cidade?
O
que mais me impressionou foi a espontaneidade com que respondi:
—
Eu não vou até a cidade, meu filho.
Havia
no meu tom algo de paternal e compassivo, mas que suficiência na minha voz! Que
segurança no meu destino! Mal tive tempo de olhar o rapazinho e o sinal se
abria, o carro arrancava em meio aos outros, a caminho da cidade.
Logo
uma voz que não era a minha saltou dentro de mim:
—
Por que você mentiu?
Tentei
vagamente justificar-me, alegando ser imprudente, tantos casos de assalto…
—
Assalto? A esta hora? Neste lugar? Com aquele jeito humilde? Ora, não seja
ridículo.
Protestei contra a voz, mandando que se calasse: eu
não admitia impertinência. E nem bem entrara no túnel, já concluía que fizera
muito bem, por que diabo ele não podia tomar um ônibus? Que fosse pedir a
outro, certamente seria atendido.
Mas
a voz insistia: eu bem vira pelo espelho retrovisor que alguém mais, atrás de
mim, também havia recusado, despachando-o com um gesto displicente. Nem ao
menos dera uma desculpa qualquer, como eu. Não contaria com ninguém, o pobre
diabo. Como os mais afortunados podem ser assim insensíveis! Era óbvio que ele
não dispunha de dinheiro para o ônibus e ficaria ali o dia todo.
E eu
no meu carro, de corpo e alma lavada, todo feliz no meu terninho novo. Comecei
a aborrecer o terno, já me parecia mesmo ligeiramente apertado. Dentro do túnel
a voz agora ganhara o eco da própria voz de Deus:
—
Não custava nada levá-lo.
Não,
Deus não podia ser tão chato: que importância tinha conceder ou negar uma
simples carona?
Ah,
sim? Pois então eu ficasse sabendo que aquele era simplesmente o teste, o
Grande Teste da minha existência de homem. Se eu pensava que Deus iria me
esperar numa esquina da vida para me oferecer solenemente numa bandeja a minha
oportunidade de Salvação, eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia
o meu destino. Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para me submeter à prova
definitiva. Era um enviado Seu, e a humildade do pedido fora só para disfarçar
— Deus é muito disfarçado.
Agora
o terno novo me apertava, a gravata me estrangulava, e eu seguia diretamente
para as profundas do inferno, deixando lá atrás o último Mensageiro, como um
anjo abandonado. Ao meu lado, no carro, só havia lugar para o demônio.
— Não
tem dúvida: aquele cara me estragou o dia — resmunguei, aborrecido, acelerando
mais o carro a caminho da cidade.
Quando
dei por mim, já em Botafogo, entrava no primeiro retorno à esquerda, sem saber
por quê, de volta em direção ao túnel.
Imediatamente me revoltei contra aquela tolice, que
apenas me faria perder o dentista — o que, aliás, não seria mau. Mas era tarde,
e o fluxo do tráfego agora me obrigaria a refazer todo o percurso.
Como
explicar-lhe, sem perda de dignidade, que havia mentido e voltara para
buscá-lo? Certamente ele nem estaria mais lá.
Estava.
Foi só fazer a volta na praia, e pude vê-lo no mesmo lugar, ainda postulando
condução. Detive o carro a seu lado. Justificando meu regresso, gaguejei uma
desculpa qualquer, que ele mal escutou. Aceitou logo a carona que eu lhe
oferecia: sentou-se a meu lado como se fosse a coisa mais natural do mundo eu
ter voltado para buscá-lo.
Era
mesmo alguém que pedia condução simplesmente porque não tinha dinheiro para o
ônibus. Desempregado, ia para a cidade por não saber mais para onde ir — o que
já é outra história.
Só não me pareceu que fosse um enviado de Deus: não
perdi o dentista e, ainda por cima, Deus houve por bem distinguir-me com um
nervo exposto.
Fonte:SABINO, Fernando. Deixa o Alfredo Falar! Rio
de Janeiro: Record, 1985.
1. Qual o
significado das expressões “lavar a alma” e “manhã de cristal”?
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“Logo uma voz que não
era a minha saltou dentro de mim:
—
Por que você mentiu?”
2. A quem
pertence a voz que recrimina o cronista?
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3. Que
passagem no primeiro parágrafo informa
ao leitor que o cronista não gosta de ir ao dentista?
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4. O
texto é narrado em primeira pessoa ( o narrador é um personagem também) ou em
terceira pessoa o ( o narrador só conta a história)? Justifique.
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“Se eu pensava que Deus iria me esperar numa esquina da vida para
me oferecer solenemente numa bandeja a minha oportunidade de Salvação,
eu estava muitíssimo enganado: ali é que Ele decidia o meu
destino. Pusera aquele sujeitinho no meu caminho para me submeter à prova
definitiva. Era um enviado Seu”
5. Porque os termos
Ele e Seu foram escritos com letra maiúscula?
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6. O que significa a expressão “oferecer de bandeja”?
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7. Ao afirmar que “Deus é muito disfarçado” a
intenção do cronista é dizer que:
a) Deus
não quer se revelar aos homens
b) Deus
se disfarçou para testar o cronista
c) a voz
que ouve é a voz disfarçada de Deus
d) talvez
Deus tivesse assumido a forma do rapaz que pediu carona
e) não
são conhecidos todos os meios que deus usa para se revelar aos homens
8. Nessa
crônica o autor;
a)
expressa uma opinião
b)
constrói uma narrativa
c)
reflete sobre a salvação de sua alma
d)
justifica a ação de não ajudar as pessoas
e)
destaca aspectos poéticos do Rio de Janeiro
9. O tema
dessa crônica é;
a)
religioso
b)
fantástico
c)
cotidiano
d)
incomum
e)
engraçado