O texto que você vai ler é de Jorge de
Andrade, um dos autores brasileiros mais representativos do gênero dramático. A
história narra a decadência de uma família aristocrática em plena crise na
produção cafeeira nacional, desencadeada pela quebra da Bolsa de Valores de
Nova York em 1929. Obrigada a sair das terras cultivadas pelos seus
antepassados, a família vai morar na cidade enquanto espera pela possibilidade
de reaver a propriedade. Em sua opinião,
como o pai e a filha vão reagir diante dessa situação?
A moratória
Personagens: Joaquim, Helena,
Lucília, Marcelo, Olímpio, Elvira
PRIMEIRO ATO
CENÁRIO — Dois planos dividem o palco mais ou menos em diagonal.
Primeiro
plano ou plano da direita: Sala modestamente mobiliada. Na
parede lateral direita, duas portas: a do
fundo, quarto de Marcelo; a do primeiro plano, cozinha. Ao fundo da sala,
corredor que liga às outras dependências da casa. À esquerda, mesa comprida de refeições e de costura;
junto a ela, em primeiro
plano, máquina
de costura. Encostado à parede lateral direita, entre as duas portas, banco
comprido, sem pintura. Na mesma parede, bem em cima do banco, dois quadros:
Coração de Jesus e Coração de Maria. Acima dos quadros, relógio grande de
parede. No corte da parede imaginária que divide os dois planos, preso à parede como
se fosse um enfeite, um galho seco de jabuticabeira.
Segundo
plano ou plano da esquerda: Elevado, mais ou menos uns trinta
ou quarenta centímetros acima do piso do
palco. Sala espaçosa de uma antiga e tradicional
fazenda de café. À esquerda-baixa, porta do quarto de Joaquim; à esquerda-alta, porta em arco que liga a sala com a
entrada principal da casa e as outras
dependências. Na parede do fundo, à direita, porta do quarto de Marcelo; à esquerda, porta do quarto de Lucília. Bem no
centro da parede do fundo, o mesmo
relógio do primeiro plano. Na parede,
entre a porta do quarto de Joaquim e a porta em arco, os mesmos
quadros do primeiro plano.
Observação: As salas são iluminadas, normalmente, como se fossem
uma única, não podendo haver jogo de luz, além
daquele previsto no texto. A diminuição da luz no plano da direita ou primeiro
plano, na cena final da peça, embora determinada pelo
texto, não precisa ser rigorosamente seguida.
Ação — No segundo plano
ou plano da esquerda, a ação se
passa em uma fazenda de café em 1929; no primeiro plano ou plano da direita, mais ou menos três anos depois, numa pequena cidade nas proximidades da mesma fazenda.
CENA — Ao
abrir-se o pano, somente o primeiro plano está
iluminado. Lucília acaba de cortar um vestido, senta-se à
máquina e começa a costurar; suas pernas movimentam-se com incrível rapidez.
Joaquim, ligeiramente curvado, aparece à porta da cozinha com uma
cafeteira na mão.
PRIMEIRO PLANO
JOAQUIM:
Lucília! (Sai)
(Pausa. Lucília continua costurando. Joaquim aparece
novamente)
JOAQUIM: Lucilia!
LUCÍLIA: (Sem parar de costurar) Senhor. JOAQUIM: Venha tomar o café.
LUCÍLIA: Agora não posso.
JOAQUIM: O café esfria.
LUCÍLIA: Meu serviço está atrasado. JOAQUIM:
Ora, minha filha, cada coisa em sua hora.
LUCÍLIA: Para quem tem muito tempo. JOAQUIM:
Não é preciso se matar assim. Tudo tem um limite.
LUCÍLIA: Sou obrigada a trabalhar como uma...
(Contém-se)
JOAQUIM: Você já amanhece irritada! LUCÍLIA:
Desculpe, papai.
JOAQUIM: Venha.
LUCÍLIA: (Acalmando-se) O senhor pode trazer para mim?
(Joaquim entra na cozinha e logo aparece com uma
xícara de leite).
JOAQUIM: Olhe aqui, beba.
LUCÍLIA: Não suporto este leite.
JOAQUIM: Não comece, Lucilia.
LUCÍLIA: (Pausa) Foi ao médico?
JOAQUIM: Fui. Só para fazer a sua vontade. LUCÍLIA:
Que disse ele?
JOAQUIM: Nada. Que poderia dizer?
LUCÍLIA: O senhor anda se queixando do braço.
JOAQUIM: Deve ser de rachar lenha.
LUCÍLIA: Não deu nenhum remédio? JOAQUIM:
Tenho saúde de ferro. Pensa que sou igual a esses mocinhos de hoje?
LUCÍLIA: Estou perguntando, papai, se não receitou
algum remédio.
JOAQUIM: Se tivesse receitado, eu teria dito.
LUCÍLIA: O senhor acha que comprar remédio é jogar dinheiro fora.
JOAQUIM: E é mesmo.
LUCÍLIA: Tenho dinheiro. Se o senhor
precisar, é só falar.
JOAQUIM: (Impaciente) Já disse que não receitou. LUCÍLIA: Melhor, então.
JOAQUIM: O médico disse que ainda tenho cem
anos de vida.
LUCÍLIA: Não gosto de gente exagerada. JOAQUIM:
Está muito certo. Nunca
senti nada.
LUCÍLIA: (Voltando à costura) Hoje,
tudo está atrasado.
JOAQUIM. Não se afobe, minha filha. LUCÍLIA:
E que faço do meu serviço? JOAQUIM: Que importância tem? Você não é
obrigada a costurar. Até prefiro que...
LUCÍLIA: (Corta) Ora, papai! (Pausa. Lucília olha para Joaquim e disfarça)
Tia Elvira vem experimentar o vestido
e ainda tenho que acabar o da Mafalda.
JOAQUIM: Por que é que sua tia precisa de tantos
vestidos?
LUCÍLIA: Ela vai a uma festa amanhã. JOAQUIM:
(Joaquim sai levando a xícara) É um
despropósito fazer um vestido para cada
festa. LUCÍLIA: Assim gasta um pouco do dinheiro
que tem.
JOAQUIM: (Voz) Não é a festa do Coronel Bernardino?
LUCÍLIA: É.
JOAQUIM: (Voz) Você não vai?
LUCÍLIA: Não.
JOAQUIM: (Voz) Por que não? Recebemos
convite. LUCÍLIA: Não quero.
JOAQUIM: (Pausa. Reaparecendo) Não sei por que, depois que viemos para a cidade, você se
afastou de tudo e de todos.
LUCÍLIA: Convidaram por amabilidade, apenas. JOAQUIM:
Convidaram porque você é minha filha. É uma obrigação.
LUCÍLIA: Conheço essa gente.
JOAQUIM: Você precisa se divertir também. LUCÍLIA:
Preciso, mas não posso. JOAQUIM: (Violento) Pode! Pode! LUCÍLIA: Não se exalte, papai.
JOAQUIM: Eu digo que pode! LUCÍLIA: Está
certo, sou eu que não
quero.
JOAQUIM: (Pausa) Sei o que você
sente. Eu também me sinto assim.
LUCÍLIA: É apenas por causa do meu trabalho, nada
mais.
JOAQUIM: Há de chegar o dia em que vai poder
ir a todas as festas novamente. E de cabeça erguida.
LUCÍLIA: Ainda estou de cabeça erguida. Posso
perfeitamente recusar um convite. (Pausa.
Os dois se entreolham ligeiramente) Não vou porque fico cansada.
JOAQUIM: Eu sei. Eu sinto o que é. (Pausa) De cabeça erguida! Prometo isso
a você.
LUCÍLIA: Não faço questão nenhuma.
JOAQUIM: Eu faço.
LUCÍLIA: Está bem. Não se toca mais nesse
assunto.
(Pausa)
JOAQUIM: Com a nulidade do processo,
vou recuperar a fazenda. Darei a você tudo que desejar.
LUCÍLIA: Não vamos falar nisto. JOAQUIM: Por
que não? Eu quero Falar.
LUCÍLIA: É bom esperar primeiro a decisão do
Tribunal.
JOAQUIM: (Impaciente)
O mal de vocês é não ter esperança. Essa é que é a verdade.
LUCÍLIA: E o mal do senhor é ter demais.
JOAQUIM: Esperança nunca é demais.
LUCÍLIA: Não gosto de me iludir. E depois, se
recuperarmos a fazenda, vamos ter que trabalhar muito para pagá-la.
JOAQUIM: Pois, trabalha-se.
LUCÍLIA: Só depois disto, poderemos pensar em
recompensa... e outras coisas. Até lá preciso costurar e com calma.
JOAQUIM: É exatamente o que não suporto.
LUCÍLIA: O quê?
JOAQUIM: Ver você costurando para esta gente.
Gente que não merecia nem limpar nossos sapatos!
LUCÍLIA: Não reparo neles. Não sei quem são,
nem me interessa. Trabalho, apenas. (Por um
momento fica retesada) Por
enquanto não há outro caminho.
JOAQUIM: Gentinha! Só têm dinheiro...
LUCÍLIA: (Seca)
É o que não temos mais.
JOAQUIM: (Pausa)
Quando meus antepassados vieram para aqui, ainda não existia nada. Nem
gente desta espécie. (Pausa) Era um
sertão virgem! (Sorri) A única maneira de se ganhar dinheiro era fazer queijos.
Imagine, Lucília, enchiam de queijos um carro de bois e iam vender na cidade
mais próxima, a quase duzentos quilômetros! Na volta traziam sal, roupas,
ferramentas, tudo que era preciso na fazenda. Foram eles que, mais tarde,
cederam as terras para se fundar esta cidade. (Pausa) Quando eu penso que agora...
LUCÍLIA: (Corta, áspera) Papai! Já pedi ao senhor para não falar mais nisto. O que
não tem remédio, remediado está.
(Pausa.
Joaquim fica sem saber o que fazer. Atrapalha-se quando tenta arrumar os
figurinos que estão em cima da mesa)
Jorge Andrade. A moratória. Rio de Janeiro: Agir, 1987. p. 18-33.
1. Após a Leitura
do texto, retome as hipóteses levantadas.
O que você e seus colegas imaginaram antes da leitura se confirmou?
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2. O texto lido é
um trecho da peça A moratória. Com as suas palavras,
resuma o que acontece nesse trecho.
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3. Com base
na leitura desse fragmento de A
moratória, é possível deduzir o grande conflito dessa história. Qual é ele?
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4. Em sua opinião, qual é a finalidade de um texto
dramático?
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5. No texto dramático, como se nota, há indicações entre
parênteses que são chamadas de rubricas.
a) Qual é o objetivo dessas indicações?
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b) Por que elas são escritas de maneira diferente do
restante do texto?
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c) Quando o texto dramático é encenado, o texto das rubricas
aparece? Explique.
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Texto dramático não
tem narrador, pois a história é contada pelos próprios personagens em cena. No
texto escrito, o tom das falas, as expressões e até mesmo a postura que os
atores devem assumir durante a encenação são indicados por meio das rubricas, grafadas geralmente em
itálico e entre parênteses.
6. No trecho lido, há indicações do cenário da história. A
seguir, observe a imagem do cenário da peça A moratória na primeira vez em que
foi encenada, em 1955.
a)O autor divide o cenário em dois planos. Que espaço cada
plano retrata?
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b)Por que, ao escrever a história em um texto dramático, o
autor descreve também o cenário?
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c)Por que a máquina de costura de Lucília fica em primeiro
plano na cena?
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d)Na peça A moratória, o cenário auxilia o espectador a
saber quando os acontecimentos representados acontecem. Como isso é possível?
Em que momento do trecho lido esse recurso fica evidente?
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7. No início do texto, há a indicação das personagens da
história.
a) No fragmento lido, aparecem todas as personagens da peça?
Justifique.
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b) Como Lucília reage diante da situação da família?
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c) Lucília tem esperança de que eles vão conseguir a fazenda
de volta? Comente sua resposta.
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d) Qual é a atitude de Joaquim em relação à situação da
família? Ele tem esperança de que vai reaver a fazenda? Justifique.
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8. Releia o trecho no qual Joaquim e Lucília conversam sobre
a festa do coronel Bernardino e responda às questões.
a) Leia o significado da palavra coronel no dicionário. Que significado essa palavra assume no
texto?
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b) O que o uso dessa palavra demonstra sobre a época em que
se passa a história? Comente.
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c) Por que Joaquim afirma que é uma obrigação convidarem
Lucília por ela ser filha dele? Comente.
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O texto dramático
é escrito com o objetivo de ser encenado. Por isso, seus elementos, como
personagens, rubricas, cenário e iluminação formam um importante
conjunto que atribui significado à peça teatral.
• O CONTEXTO DE
PRODUÇAO j
9. O texto dramático A
moratória foi um dos primeiros escritos por Jorge Andrade, no ano de 1954.
Um aspecto dessa peça e que também está presente em quase todas as criações do
dramaturgo é a memória. Segundo ele, não é possível compreender o presente ou
prever o futuro sem que se pense, antes de tudo, no passado.
a) O primeiro ato de A
moratória se passa em que época? Justifique.
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b) A peça A moratória retrata
a época na qual foi escrita? Explique.
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c) Jorge Andrade foi filho de fazendeiros e teve uma
vivência no campo. Em sua opinião, é possível que a história de vida do
dramaturgo o tenha auxiliado na escrita dessa peça?
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10. Formado pela
Escola de Arte Dramática, Jorge Andrade decide aplicar em sua obra o projeto
que conheceu na universidade: o da formação de um dramaturgo que utilizasse
"cores locais" em seus textos, representando o Brasil e a história de
seu país nos palcos.
a) Em dupla, pesquise sobre o período no qual a peça se
passa e responda, em seu caderno, qual é a parte da história do Brasil que o
dramaturgo decidiu levar para os palcos.
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b) Você já assistiu a uma peça que retratasse parte da
história do Brasil?
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Na leitura de
um texto ficcional, é importante atentar para dois contextos: o da história narrada
e o de produção. O contexto da história narrada é importante para a compreensão
da linguagem, das expressões, de alguns fatos e acontecimentos que permeiam a história,
tornando-se, assim, parte importante da interpretação.
Com o contexto de
produção, compreendemos as condições de produção desse texto, conhecendo,
por exemplo, a motivação para escrevê-lo e também características que se
repetem na obra do autor.
FONTE:
COSTA, Cibele Lopresti, Geração Alpha Língua portuguesa: ensino fundamental:
anos finais: 7ºano-2ª ed. - São Paulo: Edições SM, 2018.