MEMÓRIAS LITERÁRIAS TIA HIENA
Antes de ler
1. Você se lembra de acontecimentos marcantes em sua vida
quando criança? Se você se sentir à vontade, compartilhe essas histórias
com os colegas.
Resposta pessoal.
2. De que maneira podemos registrar acontecimentos
importantes em nossa vida?
Resposta pessoal.
No final do
século XIX, sob um inverno rigoroso, famílias italianas decidem emigrar para o
Brasil. Entre elas, estão os Da Col e os Gattai, que embarcam em busca de uma
vida melhor em São Paulo, onde Angelina Da Col e Ernesto Gattai se conhecem,
casam-se e têm filhos. A caçula da família é a pequena Zélia, que, Já adulta, rememora
fatos vividos ou contados por seus familiares. No trecho que você vai
ler agora, ela relembra a história de uma das crianças que vieram no navio
Città di Roma e que morreu em 1890, pouco depois do desembarque no Brasil.
Durante a
leitura, tente descobrir o sentido das palavras desconhecidas pelo contexto em
que elas aparecem. Se for preciso, consulte o dicionário.
Tia Hiena
Tia Hiena
estaria festejando cento e onze anos de idade, não tivesse morrido aos dois.
Passei a
infância e adolescência ouvindo a família - mamãe, mais do que todos - lamentar
o triste fim da menina, a mais nova dos quatro irmãos de seu marido nascidos na
Itália.
Ao contar aos
filhos a história de Hiena, mamãe não abria mão de mencionar o título da
criança, tia.
Um dia lhe perguntei:
- Por que ela se
chamava Hiena, mãe? A resposta não se fez esperar:
- Ela, não!
Mais respeito, menina! Titia Hiena.
Eu perguntara por
perguntar, o que eu queria mesmo era atazanar mamãe, fazendo-a repetir o que já
estava farta de saber, tantas vezes a ouvira repetir o fato.
Minhas irmãs mais
velhas tinham até procurado no dicionário referências sobre o animal que
originara o nome de nossa tia.
Do pouco que
sabíamos sobre a hiena - da característica pitoresca e simpática, a das
gargalhadas sonoras e escancaradas - o verbete não tratava, dizia apenas:
" ... Mamífero, carnívoro e digitigrado que se alimenta
sobretudo de carne de animais mortos e putrefatos e que tem pelo cinza ou ruivo
cem manchas escuras ... " Curiosa, Wanda, a mais velha
de minhas irmãs, teve a pachorra de procurar no dito dicionário o significado
de digitigrado. E lá estava: " ... que anda nas pontas dos dedos
... "
Imaginação fértil
de criança, eu visualizava a hiena andando mansamente nas pontas de uns dedos
longos, focinho levantado para o céu, bocarra escancarada, dentões à mostra,
rindo a bandeiras despregadas. Chegava a me arrepiar.
Nos dias de
hoje, o falado chupa-cabra que andou ocupando as manchetes dos jornais,
animal misterioso que matava cabras e ovelhas, sugando-lhes o sangue, uma
espécie de fantasma, bicho-papão de criadores de gado e pequenos lavradores,
lobisomem que nunca ninguém viu e que assim como veio se foi, faz-me pensar na
hiena.
Cada qual guardou
do chupa-cabra a imagem criada pela própria imaginação.
Quanto a mim, como já disse, comparei-o à risonha e
asquerosa hiena, com seus pelos fulvos e manchas escuras, a caminhar nas pontas
de seus longos dedos, lembrança que guardei da minha fantasia de criança.
Nonno Gattai
Dona Angelina,
minha mãe, costumava dizer: O avô de vocês, o nonno Gattai, era
um homem destemido. Livre-pensador, de ideias avançadas, dizia o que pensava,
fazia o que achava justo e direito. Passava por maus pedaços devido às suas
ideias, mas não recuava. Era um "testardo", um
obstinado, concluía.
[ ... ]
Nonno Gattai
foi registrar a filha. Desencavara para lhe dar um nome polêmico, ótimo para
escandalizar. Sem consultar a mulher, talvez com receio de que pela primeira
vez ela estrilasse, saiu de casa, satisfeito da vida, imaginando o espanto do
escrivão do cartório, o primeiro a se horrorizar com o nome que ele arranjara
para a filha, o primeiro a receber a resposta já prontinha, na ponta da língua.
Antegozando o
impacto que a provocação iria causar, saiu seu Gattai, feliz da vida,
assobiando pelas ruas de Florença, o cartório não ficava distante de sua casa.
De pé, diante
do homem que o atendia, Francesco Gattai aguardava a esperada reação. Não
esperou muito.
- Como foi que o
senhor disse? Que nome quer dar à sua filha? - perguntava o escrivão sem poder
acreditar em seus ouvidos.
- Hiena. Escreva
aí, não vou repetir outra vez - disse o pai da criança.
- Por que o senhor
quer dar à sua filha o nome de um animal tão repugnante? Por quê?
Francesco
Arnaldo soltou a frase já pronta para escapulir:
- Se o papa
pode ser Leão, por que minha filha não pode ser Hiena? O funcionário ficou
sem resposta, não discutiu mais, registrou a criança.
- Fosse eu o
escrivão - disse Vera, minha irmã, interrompendo mamãe-, tinha dado uma boa
resposta. Eu diria: "Olha aqui, moço, o Leão é o rei dos animais e a Hiena
é um bicho nojento ... " Foi uma pena ele não lembrar disso. Só
queria ver com que cara o nonno Gattai ia ficar ...
- Você agora está
contra seu avô, menina? - reclamou mamãe. - Você não ia ver cara nenhuma. Isso
aconteceu há tantos anos que vocês ainda nem sonhavam sair da casca do
ovo ..
[ ... ]
GATTAI, Zélia. CIttà di Roma. Rio de Janeiro: Record, 2000. P. 7-10.
1. O que você entende por "memórias
literárias"? Leia a explicação a seguir.
[ ... ]
Memórias
literárias são textos produzidos por escritores que dominam o ato de escrever
como arte e revivem uma época por meio de suas lembranças pessoais. Esses
escritores são, em geral, convidados por editoras para narrar suas memórias de
um modo literário, isto é, buscando despertar emoções estéticas no leitor,
procurando levá-lo a compartilhar suas lembranças de urna forma vívida. [ ... ]
ALTENFELDER, Anna Helena; CLARA, Regina
Andrade. O género memórias hteránas. Escrevendo o futuro. Disponível
em· <www escrevendoofuturo
org.br/conteudo/b1bl1oteca/nossas-publicacoes/revista/art1gos/
arttgo/1339/o-genero-memonas-hteranas>. Acesso em: 31 maio 2018.
Agora, releia dois fragmentos do texto de Zélia Gattai.
Fragmento 1
Tia Hiena estaria festejando cento e onze anos de idade[ ...
].
Fragmento 2
Nonno Gattai foi registrar a filha.
a)No contexto do relato das memórias, em qual dos fragmentos
a autora faz referência ao momento em que está escrevendo suas memórias?
No fragmento 1.
b) Em qual dos fragmentos a memorialista conta um fato do
passado, acontecido há muitos anos?
No fragmento 2
c) Anote no caderno a explicação que julgar mais adequada
com base em suas respostas anteriores. Podemos entender que um autor
memorialista:
I. põe lado a lado passado e presente, recriando a
realidade e interpretando-a sob seu ponto de vista.
II. fixa-se apenas no passado para registrar suas memórias,
recriando fatos já ocorridos há anos.
Resposta:I
2. Leia
o quadro abaixo e responda.
Ordem cronológica é a ordem do relógio, isto é, apresenta
os fatos na ordem em que aconteceram, do mais antigo para o mais recente. |
a) Um autor literário não precisa organizar os fatos
narrados de acordo com a ordem cronológica. No trecho lido, a narradora
conta os fatos seguindo essa organização? Justifique sua resposta.
Não, ela inicia sua narrativa no
presente e depois relata os fatos ocorridos em sua infância.
b) Você acha que esse modo de narrar comprometeu a
compreensão do texto I Por quê?
Não, pois
é possível diferenciar bem quando se trata de fatos ocorridos na infância da
narradora e quando se trata de fatos presentes.
3. Em um
texto de memórias, o autor seleciona o que vai narrar, considerando a
importância dos fatos de acordo com o significado que tiveram para ele.
a) Observe os títulos dos capítulos: "Tia Hiena" e
"Nonno Gattai". Nas memórias da narradora, de que forma esses
dois capítulos estão inter-relacionados?
A narradora rememora a tia que
morreu quando criança e a explicação do nome incomum que o pai lhe dera.
b)Ao relembrar esses fatos, o que parece ter sido mais
significativo para ela ao registrar suas memórias?
A reação
provocada em suas irmãs e nela mesma
pela estranheza do nome da tia, a personalidade do avô que escolheu esse
nome e o momento em que ele foi
registrar a menina.
4. Além da memorialista, outra personagem assume um papel
importante na preservação da memória de seus antepassados.
a) Quem é essa personagem?
Dona Angelina, mãe da memorialista.
b) Explique por que suas ações contribuem para a preservaçâo
da memória da família.
Pelo fato de ser responsável por
passar as historias de família para seus filhos, garantindo que conhecessem e
respeitassem seus antepassados.
5. Em um
relato de memórias, o escritor é autor e narrador-personagem ao mesmo tempo,
lembrando-se de si mesmo como personagem que viveu os acontecimentos recriados
em sua memória.
a) Sabendo que o narrador-personagem pode ser um narrador-protagonista
ou um narrador-testemunha, responda: Qual desses tipos pode ser
identificado nos capítulos lidos?
A autora Zélia, em alguns momentos,
apresenta-se como narrador-testemunha ( quando , por exemplo, conta sobre as
atitudes da mãe), em outros como narrador protagonista(quando conta sobre sua
vida com a mãe e as irmãs).
b) Como é possível reconhecer quando a autora se coloca como
narradora de fatos que aconteceram com ela no passado?
Pelo uso de verbos e pronomes na 1ª
pessoa.
6. Além
da presença da "voz" de um narrador que relembra fatos, há
outras que integram a narrativa.
a) Quais são as outras vozes que se manifestam com falas e
opiniões nos capítulos lidos?
A mãe, dona Angelina, a irmã da
narradora, Vera, nonno Gattai eo escrivão.
b) De que modo você pôde reconhecer essas vozes?
Resposta pessoal.
c) De que modo essas diversas vozes ajudam a enriquecer a
narrativa?
As diversas vozes dão profundidade
ao texto, incluindo experiências e impressões de diversos ângulos, não apenas
do ponto de vista da memorialista.
7. O texto de memórias trabalha com
imagens, lembranças e impressões que permanecem na vida adulta. Nos capítulos
que lemos, a narradora rememora a imagem que lhe ficou da hiena.
a) Na infância, qual era a primeira imagem da hiena que a
menina tinha em seu imaginário (fantasia)?
Um animal pitoresco e simpático que
dava gargalhadas sonoras e escancaradas.
b) Um fato muda a imagem que a garota tinha do animal. Qual
foi esse fato e de que modo ela passou a visualizar o bicho em sua imaginação?
A leitura do verbete sobre a hiena
em um dicionário fez com que ela passasse a visualizá-la como um animal
repugnante.
c) Qual das duas imagens ela carregou como lembrança para a
vida adulta?
Uma mistura das duas: um animal
risonho, mas assustador.
d) Qual fato, na vida adulta, reativa as lembranças
que a narradora tinha a respeito da hiena?
A leitura de jornais com manchetes
sobre um animal misterioso que matava ovelhas e cabras, chamado de chupa-cabra.
8. O
autor de um texto de memórias literárias fala de si, de seus sentimentos e
emoções, narrando fatos dos quais participou, descrevendo cenas e caracterizando outras personagens.
A adjetivação ajuda a caracterizar os personagens e permite
que o leitor reconstrua em sua mente a imagem deles.
a) A mãe da memorialista narra a história da tia Hiena,
relacionando-a à personalidade do avô, nonno Gattai. Como ela o
descreve?
Ela dizia que nonno Gattai era um
homem destemido, um livre pensador, de ideias avançadas, que dizia o que
pensava e fazia o que achava justo e direito. Dizia também que ele passava por
maus momentos devido a suas ideias, mas não recuava, pois era obstinado.
b) Essa caracterização fica clara quando pensamos no
objetivo que nonno Gattai tinha em mente ao escolher o nome de tia
Hiena. Que objetivo era esse?
Ao escolher o nome de um animal para
a filha, tinha o objetivo de criaar polêmica, escandalizar, chocar.
c) Você considera aceitável a justificativa de nonno Gattai
para a escolha do nome da filha? Explique.
Resposta pessoal.
DELMANTO. Dileta;
CARVALHO. Laiz B. de. Português: conexão e uso. 7º ano; ensino
fundamental, anos finais. 1ed. São Paulo: Saraiva, 2018.p.56-58.