LAURA LEVOU O VENTO
Ou o vento trazia? Onde
parava de soprar o que, pela cabeça de Laura, ia? Nas alturas, rente ao chão,
espalhada feito areia? Que mistério a tecia? Difusa sereia - plena luz ou
meia-noite e meia? Talvez por isso não parasse, nem ficasse, sempre fosse,
fosse... Fosse ela uma rocha, concreta, monolítica. Mas Laura era aérea, diziam
os professores. Etérea, suspiravam os enamorados. Eólica, afirmavam os colegas,
após uma aula sobre moinhos. Onde os olhos de Laura? Onde?
Onde ninguém espia. Em coisa que não
se admira: folha morta, sombra torta, hora vadia. Laura olhava pela janela,
sumia o dia. Que dia era agora? Ontem, hoje, amanhã, que importa? Recordava a
infância, enquanto a vivia, sentada no cais, cai, não cai. Sem medo, que medo
não tinha: o vento levou, desde cedo. O cabelo preto riscava, de nanquim, o ar
azul, ar bom de respirar. Ar: beijo de balão.
A casa na ilha, janela pra todo lado.
Todas abertas. Milhas e milhas de vento em volta, ciranda de sopro. Ao voltarem
da pescaria, ela e o padrinho foram surpreendidos por tempestade em alto-mar.
Guinchos de gaivotas, ondas revoltas, espumas loucas. A menina tremia? Nada!
Nem miava, nem gemia:
-
O
vento é meu amigo. Está de mau humor, só isso. Laura pousa em terra firme.
Grita a madrinha, descabelada:
-
Filha,
achei que jamais a veria! - e sapeca-lhe um abraço de tirar o ar.
-
iam
dia, convido o vento pra jantar. Garanto que ele vem. Verão como se comporta
bem. Perigo? Não tem!
Vento quer apito, quer fazer
sinfonia. Laura dispõe, pela praia, pilhas de garrafas vazias. Ouve-se estranha
melodia: são os cochichos, em cachos sonoros, do parceiro. Ela acompanha com
assobios. O gosto pela harmonia vem da cantiga do vento. Num dueto. "Vou
ser flautista, acho. Instrumento de sopro é um barator, sonha ou desperta
Laura? Pra que uma escolha apenas, se no coração cabe a orquestra inteira?
Arruma a partitura. E ainda sobra espaço para prosa e poesia. Já vi esse filme.
Ouça a canção e veja a pintura: na escola de artes, causa espanto.
"Fôlego: nota dez. Em compensação, quanta dispersão!". Também, com o
mestre que tem... Vento só sabe ser avoado.
Faz pirueta.
Volta, volteia. Roda feito fuso e o diretor entra em parafuso. Na aula de balé,
só ela sobrava em pé! Tonto com tanto giro, entre suspiros, questiona o
professor:
- Onde
aprendeu essa coreografia que mais parece uma bagunça?
- Me sustém,
do vento, a sustância. Quem pratica sempre alcança. Minha estaca é a esperança.
Vivo a vida em festança!
- Que
respostas para uma criança...
Era uma vez... Que história é
essa? A que ela fez. Entrou também na dos outros, guardadas já na memória.
Misturou tudo e tirou da cartola. E agora? Fez escola. Na aula inaugural, fez
discurso transcendental:
- Pra voar, tem que ser mais leve
que o "Ah!". Se deixe levar, sem susto na mudança.
Chama o vento pra ajudar. Ele
chega, num golpe de ar. Cadê que o povo flutua? A primeira turma, de cara,
perde a bravura. Meninas seguram as saias. Sai, assim não dá! O remédio foi
dispensar. Não combinam vento e medo. E os meninos? Tão valentes — Só de
brinquedo.
O céu, colorido de bandeirola?
Não me enrola - é um concurso de pipa! Qual a mais bonita? Acertou: é a dela!
Meio azul e amarela, roxa cor de berinjela. Frajola, feita de revista. Na ponta
da rabiola, pôs seu laço de fita. Tão acostumada, Laura voa. Numa boa. Como se
voar fosse coisa à toa...
Peraí: "Laura voa"?
Decerto, quem você pensa ver de perto, a menina? É a pipa que baixa à terra.
Laura está solta, lá em cima. Avoada, sempre no mundo da lua. Senta na cauda do
cometa. Comadre das borboletas. Mas não se iluda que ela não é nenhuma tonta.
Tem o sol por testemunha e o vento pra segurar as pontas. Não espalhe: é ele
seu guarda-costas. Não provoque que ele sopra. Sopra, sopra e lhe derruba.
Ou carrega até Aruba.
Experimente! Laura é calma, mas, quando se esquenta...É ardida feito pimenta.
Laura, teatral, nunca se dá mal. Arma um
circo, faz uma cena. Todos morrem de pena:
-
Que
foi, minha filha?
-
Não
chore assim, pequena...
-
Ai,
que me mata de dó!
Viu só? Ganhou brinde, boneca, prenda. Aprenda. Vai guardar tudo no
cofre... Pra brincar depois da morte? Quem é seu amigo tem sorte: Laura tudo
reparte. Viver é uma arte. Que parte da peça é essa?
-
Brincar
sem elenco? Coisa mais sem graça! Vem, vento, sopra um cisco em meu olho.
Preciso de mais chorar. Falta brinquedo, falta sonho. Quero o mundo mais
risonho.
Ela me disse assim:
-
Quem
vive pra si só sobra. É ato trágico, navio em naufrágio.
Fina, tem boas maneiras. Prendada, é exímia bordadeira. Também moleque e
atrevida: tão franzina e dá rasteira. Joga bola, mas nada de atiradeira!
Atirada, salta mais longe. E, lógico, tem mais fome:
-
Como
isto ou aquilo? Ora, os dois: quem come pouco é esquilo!
Compra bala a quilo. Doce pra todo mundo.
-
Menina,
seu dinheiro some! Gastou tudo em besteira? -ralha a tia, mãos na cintura,
-
Me
doeu o olho comprido do menino. Não miro só meu umbigo. Em minha terra, papel
de bombom é bandeira.
"Sem eira, nem beira", rotulam os adultos. "Fada verdadeira",
em coro, cantam as crianças, suas parceiras.
-
Laura,
fica quieta, senão o alfinete te espeta!
Experimenta o vestido da festa. Mas, na hora H, entra outra com a
vestimenta.
-
Como
apronta! Dar seu vestido novo em folha... Quem aguenta? - comenta a prima,
ciumenta.
Foi assim mesmo. Foi-se um dia,
dois, na ventania. Pedra
-
Se
era meu, não é mais. Dou pra quem me apraz. Minha amiga, tão feliz, vestida
feito princesa, fisgou um belo rapaz.
Não habita, em seu coração, sentimento perneta. Centopeia equilibrista,
corre o risco do trapezista. Anda no ar, suspensa. Quem não arrisca não
petisca. Vive a vida feito turista. Do mundo, nada se leva, só a vida que se
leva. Então, até a vista!
Passado é fogo. Primeiro amor também. Palpitação de acender labareda.
-
Tu me
amas? - ele a chama.
Ela aventa:
- Vou, não vou?
Voo. Medo nenhum, que medo não tinha. Espanta o moço que espanta Laura, com
tanto esquema. O grande amor era faísca de isqueiro? Onde o incêndio de
convocar bombeiro? É hora pra chegar, hora pra sair, hora pra chorar, hora pra sorrir.
A asa de Laura dói assim, tão espremida. Ele chega de visita, rosa-rubra na
mão... Entra não! Na porta, o bilhete azul: "Você me consome com seu lume
de fogão automático. Tão sistemático! E eu não sou gás de bujão. Preciso de
espaço. Fui pra Austrália aprimorar, com os cangurus, a arte do salto. Sem mais,
aquele abraço".
E fica, o moço, com cara de tacho.
Foi mesmo assim. Foi-se um dia, dois, na ventania. Pedra rolante. Sangue de
viajante. Traz, na testa, a franja inquieta. Como as ideias, A estrada parece
enguia, dá choque, arrepia. Laura, sem freio, se guia. Começa por urna, dobra
em outra, acaba numa terceira via. E os atalhos? Tantos... Anda como quem
despista. Sua pista? De avião, à la Santos Dumont.
Ainda tem o que se ver? Já vi tudo. Já vi? Nada! A linha do horizonte, pra
ela, é pontilhada: carece completar. É brinquedo - tem que se jogar.
Será que vai dar tempo? A volta ao mundo em oitenta dias, o mundo feito
numa semana. Mil e uma noites. E o tempo parece açoite!
Falta muito? Achou o mapa da mina? Me conta, menina!
- Quem conta um conto aumenta um ponto. O que não sei, invento. Também, o
mundo não para quieto... Parece o vento!
Para Laura, o bonito está adiante. Em frente, avante! Sempre alerta e
obediente ao seu sonho de estudante.
Quantas línguas ela fala? Tantas que chego a perder a fala. Fala, bela, com
as mãos e os olhos, poços negros de petróleo. Caros, preciosos, raros. Razão de
guerras. Guerra? Qual, se não tem garra pra paz, não é com ela! Avisa os
navegantes: "Ouviu?". Senão, sumiu! Sumiu no mundo. O mundo é rosa amarela:
desfolha pátria por pátria.
Laura, viajar sozinha... Isso não te apavora? - perguntam
as amigas, de hora em hora, roendo unha. Medo nenhum, que medo não tinha. -
O mundo é uma bola! - ri, dentes à mostra.
Laura traduziu arco-íris pro braile. Não perdeu nenhum baile. Foi abaixo de
zero e à beira do vulcão. Viu todo
tipo de explosão: fogos, tiros, revolução. Venceu chuva e inundação. Dormiu na
seda e no chão. Sem erro, colheu flor com cheiro de tempero. Viu exagero pela
metade e exagero por inteiro. Andou de camelo e avestruz. Supersônica, na
velocidade da luz!
Ui, como é que pode? No trote do vento, vira, antes, coisas mais
impressionantes. Nada te espante. Comeu troço que arde e adoça. Faço troça?
Você acha? Conheça Laura! De cada viagem, trouxe tesouros? Incenso, mirra,
ouro? Melhor, não trouxe - deixou. Porque o vento tudo leva, mas amizade leva,
não. Laura deixou saudade e fez estoque de paisagem: guardados, na maletinha,
postais de todo lado!
Amigo é coisa pra se guardar... ou dividir? Laura, casamenteira, junta as
brasas na lareira. Davi ama Leni, Rafael ama Isabel e Pedro ama Maria. Quem
diria? De par em par, passou todos pra arca da alegria. Laura, com seu jeito de
vento, fez chover quarenta dias. Encharcou toda a secura, acabou o tempo que
estia. Espia! Com talento, mexe o fogo da paixão. Queima, não. Siga a receita:
misture os ingredientes, com grande sabedoria. Coração com coração. O bolo não
sai solado. Sopra segredo aos ouvidos. De amor, guardados.
- Guardar segredo de amor? Pra que tanto cuidado? Estraga, desanda, acaba
azedado.
Resultado: virou madrinha de um batalhão de afilhados.
-
E
você, Laura, não casa?
-
Se me
arranjar uni noivo com asa...
Ela também tem ninho (que cabe na mochila)! Não cochila, sonha. Acordada.
Olho espetado na estrada. E também nas armadilhas que, no coração, estão
armadas. De uma queda, foi ao chão, esparramada. A causa? Moço alto feito
muralha. Lá vinha Laura e deu de cara. Tomou impulso, ia pular... Mas não veio
a ordem de batalha. Resolveu esperar. Relaxou. E a passagem ele fechou:
-
Vamos
pôr uma pedra nessa história de viajar. Depois construir sólida morada e nossa
vida plantar.
Quem mata não ama. Cada parede erguida mais a sufocava. A tempo, Laura acha
o fio da meada:
-
É tempo.
Faz tempo que o tempo passou. Eu já vou. Você é muito concreto, eu sou de
vento. Não somos do mesmo elemento. Quase me quebra por dentro. A vida, pra
mim, é movimento. Tenho pressa. Um beijo na testa!
E segue batida. Amar é bom à beça, mas, se não acerta, mire novo alvo, com
nova seta.
Está no ar! De volta, do jeito que ela
gosta: de avião ou asa-delta. Balão ou paraquedas. Ultraleve ou planador.
Esquece o que fere, apaga a dor. Vê o mundo lá do alto, com olhos de aviador:
- Venha, do vento, a rajada. Sobre as nuvens quero estar. Da aurora à
madrugada, até essa febre passar.
Laura se dá por inteiro. Nada de meias palavras, verdades veladas. Alada,
mas consistente. Passada de elefante, com peso de alfinete. Voa além do horizonte
até passar do limite. Onde o limite que impede? Se o vento a impele ao ponto
culminante do firmamento. Quase vira astronauta. Bebe, da Via Láctea, a nata.
Nota, repara! Voltou a sorrir aliviada, Recuperou o ar de fada. Faz de conta
que a dor é nada.
- Ufa, passou... Águas passadas não movem moinhos. Segue seu caminho, sem
rotina e sem destino
-
O bom
de viver é o que eu ainda vou ver. Mais o que se junta. Quanta coisa aprendi,
mas quanta falta aprender! E quando ficar velhinha, já pensou como vai ser?
-
Muito
posso fazer: contar história de condão ou pra valer. Vendedora de balão ou ás
da aviação. Figurante de escola de samba ou maestrina de charanga. Ah, nem sei!
Quem tem agenda é rei. Estou só de passagem e sou leve feito aragem. Parar? Nem
pensar! Pra envelhecer, não tenho tempo. Quem me leva é o vento. Próxima
parada: qualquer lugar.
Como quem faz ginástica, Laura estica o tempo. Barriga pra dentro! Voam
folhas do calendário, sopradas que nem cata-vento. Presente? É coisa de
momento, quase um passatempo. Presente é coisa de criança - nunca se cansa.
Janeiro foi-se, de carona, num navio cargueiro. Fevereiro: par na dança do
mulato inzoneiro. Março, aulas começo, Férias? Aquele abraço! Abril: céu de
anil do meu Brasil varonil. Maio, mês das noivas e desmaios. Junho arma a quadrilha do sanfoneiro fanho. Julho é
frio pra burro: me encapoto feito um embrulho. Agosto não é mês do desgosto,
mas de festa, aposto. Setembro, baile da primavera: com esmero, se enfeita a
Mãe Terra. Outubro: chega o calor, sol cada vez mais rubro. Novembro: de tantas
viagens me lembro... Dezembro é Natal: abrir comportas e compotas não faz mal.
Bom se empapuçar, de papo pro ar.
Volta ao lar. Lar?! Eia, você não quer dizer lareira? Ela tem eira, afinal?
Por que o susto? Laura é normal. Que nem todo mundo, ela tem um canto, no
fundo. Comprou um trailer e estacionou no fundo do quintal. Cada amigo que tem
casa arranja uma nova vizinha - Laura, a passarinha!
De Damasco a Madagascar, gasta o pneu de tanto rodar. Ih, o mar! Como se
atravessa, quando ele atravessa o caminho? E tem canto de sereia, misturado com
espinho? Cuidado, moça! O mar não está pra peixe. Surge das águas um mergulhador.
Belo feito boto. Vai dar o bote, não deixe! Já era: caiu na rede, é peixe. O
moço tem língua marinha de serpente. Laura, encantada, fica dormente. Seu sonho
se entope de entorpecente. Amolece, afrouxa. Começa a desmanchar. De novo? Será
que ela não aprende?
- Quem aprende se arrepende. Quem não aprende também. Melhor conhecer, de
perto, a noite do meu bem. Só que, no aquário, não caibo. Quase me afogo em sua
areia movediça. Movediça eu sou. O vento mudou: levantar âncora!
Vai singrar outros mares. Mudar de ares. Dá adeus a seu pirata. Entrega o
ouro, jamais o mapa!
Sangra um pouco, assim do lado. Resultado da rinha. Medo nenhum, que medo
não tinha.
- Faz parte da vida. Cai, depois, a casca da ferida. Verdade seja dita: que
alta onda! Quase me afronta. Se fosse marinheira
de primeira viagem, perdia a luta na abordagem, morrer ria praia? Não tem
cabimento! Depois de tanto percurso? É tempo de mudar o curso. Navegar eu
preciso!
Será o Benedito, o Expedito ou o Carlitos? Cadê a alma gêmea que acalma o
olhar aflito? Onde a cara-metade que dá asa ao infinito? Que é do pedaço que
falta ao seu sonho mais bonito? Já estou enjoada dessa história solitária!
Mundo, mundo, vasto mundo, se seu nome for Raimundo, será rima e solução?
Adamastor... sei não, parece nome de ator.
Finge tão completamente que finge sentir que é dor, a dor que deveras
sente. Que tal Zélio? E se ele esconder um mistério?
De A a Z, quem seu par vai ser? Que agonia dá na gente! Quando Laura vai, enfim,
arrumar um pretendente?
- Tenho cara de Cinderela, afinal? Princesa é que se amarra em sapatinho de
cristal: "Felizes pra sempre", na redoma imperial. Também sonho
dourado, com alguém ao meu lado. Só não acredito em príncipe encantado, nem em
sapo enfeitiçado. E não tolero prisão: comigo não, violão! Conquistei minha
anistia. Me vesti de fantasia. Meu coração
ninguém rouba. Dou de mão beijada, na bandeja, de coração. Só que amor não
é arame farpado, pra se viver espetado. Nem coleira, muito menos muro. Ainda
acho um amor assim, infantil e maduro.
Laura, se príncipe não faz seu estilo, que
tal dono de circo? Este tem destino cigano. Ou, quem sabe, um Quixote? Cantador
de feira do Norte? Mecânico de charrete? Vendedor de sorvete? Ou então... Onde
se meteu essa senhora? Quando olho, já foi embora e me largou falando sozinha!
- Pra certas coisas, pressa s6 atrapalha. De que me adianta fogo de palha?
Não fica pedra sobre pedra, quando o vento tudo espalha. E água mole ninguém
segura. Sei que o amor é feito do que dura. Tudo a seu tempo. Quem é amigo do
vento sabe o que ele traz, num zás-trás: novidades a mais!
Lá vai ela! O mundo se descortina, diante de sua janela. As quatro
estações. Os cinco continentes. As sete maravilhas. Europa, França e Bahia. Repúblicas e dinastias. E por
aí vai. Laura, já pensou se fosse como antigamente? Achavam que a Terra acabava
de repente!
- Chegar ao limite do globo? Se der lá, com meus costados, descubro como
fazer para passar pro outro lado!
Agora vai devagar. O mundo tá quase acabando. Conhece tanto lugar... Olha
pro céu e suspira:
- A lua, como será? Devorar todo
aquele queijo, eis meu novo desejo. Mirar, lá de longe, a Terra. Sentar-me numa
cratera e fazer crochê. Quem me dera! Será que a Terra é azul? Será que na lua
tem guerra? Guerra entre sol e lua, pra ver qual luz é a mais bela. O espaço
conquistar, cada estrela e quasar. Mas de forma delicada, sem atropelo nem
míssil. Sei que a missão é difícil. Astronauta pacifista, quero o amor
anunciar!
Com mil planos na cabeça, fuxica preço de
foguete. vê se pode? Mas até que eu acho bacana. Laura não é banana, vai fundo!
Se não se viaja no sonho, ele acaba medonho -seco, enrugado, maracujá de
gaveta. Ela segue o impulso de seu jeito de cometa. Súbito, topa com um anúncio
maluquete: "Vendo foguete, um, barato! Fabricação caseira, feito com muito
tato. Só para quem sonha alto e gosta de história. Não aceito promissória.
Promessas, se forem bonitas. Rua Estreita, Bela Vista".
Laura guarda o recorte. Põe um vestido com decote e segue a pista, à risca. Caindo
aos pedaços, a casa cai de charme pro seu gosto:
- Já vi que o morador não morre de
tédio ou desgosto. Alguém que não para quieto. Povo esperto e amigo. Deve ser da minha tribo.
A campainha é um estribo e o som, um
estribilho, Nada de Nitri-Nom, mas um
rock do bom. Quem abre a porta? Uma graça de garça!
- Boa tarde, minha senhora. Não fique
ai fora, venha pro abrigo, sem demora! Quer um chá? Tem de manga e de amora. Garça
que fala? E essa agora?
Esqueceu que a história nasceu da
cabeça desta autora? E que toda autora é inventadeira? Se quiser, faço gosma
virar
trepadeira. Político assumir suas
besteiras. Todo tipo de doideira. E garça fala, sim! Se não escuta, é seu
ouvido que está cheio de cera. Depois da pausa que restaura, voltemos à
história de Laura.
Quem abre a porta? Um tipo que
nunca vi, diferentão e aéreo. Fora do padrão e do esquadro. Casaco do lado
errado. Cada meia de uma cor. O cabelo em desalinho, grisalho, passado o
pente-fino do vento. Olho azul, céu em movimento. Nos lábios, flutua um
sorriso. Em que pensa esse menino? Espia com olhar ausente. Não se engane:
naquela íris de anil, duas gotas ferventes, encantos mil. Brilha tanto, tanta
graça, vê-se logo que é feliz. Parece o pote de ouro no final do arco-íris.
Verdadeiro tesouro. Laura, o que me diz?
Ai, que vertigem! Ai, ai, que aragem! Ai, ai, ai, quanta bobagem! Onde
escondo essa cara de bestagem? E o rubor adolescente? Sinto, por dentro, um
hálito quente. Sopro de vida ardente. Sua fala sussurrante lembra um vento
cortante. Rompe as amarras que prendem. Tão atraente, parece um ano errante. Me
eleva feito ciclone. Anúncio de tempestade. Perdido nos ares. Que nem alguém
que conheço...
Ficam os dois ali, parados, grudados feito chiclete. Passa tempo. Olho com
olho, dente contente. Quem vai cortar a corrente?
- Veio ver o foguete? Pra você, dou de presente. Uma pessoa se conhece pela
fuselagem. Seu motor, aposto, topa qualquer viagem. Tremendo avião! Não leve a
mal o que digo. Falo sé o que sinto: meu coração lhe pertence!
Assim, tão de repente? Que declaração - chega a me dar palpitação!
Em Laura, não. Algo nele revela tratar-se de velho conhecido. Amigo de
longa data que volta, enfim, tão bonito.
Pronto pra longa jornada,
dividida e tão sonhada.
- Qual o seu nome, querido? -
pergunta Laura, apaixonada. - Vento é meu apelido, desde menino - ele cochicha,
ao pé do ouvido.
Sem medo, que medo também ele não
tinha. E, ousado, a enlaça. Sente o roçar da pluma? É uma asa!
- Eis meu anjo, resumo de gosto e
plano! Conquistado e bandeirante. Dos mistérios, navegante. Quem vê coração não
diz "para". Me encara esse presente, com seu ar de horizonte. Pela
escotilha, olho o mundo já distante. Cabeça leve, perco toda a gravidade. Não
me assusta a velocidade, com a qual decola o romance. Se me sinto mais alada,
se minha alma pede "avance!"... Volto aos tempos da infância.
Um beijo de balão sela tão
perfeita aliança.
Você esperava por essa? Nunca
perca a esperança! Casaram e me chamaram pro evento. Ê vento! Foi dança, um tal
de encher a pança - parecia festa de criança. Depois partiram pro mundo. Aos
quatro ventos lançados. Rodaram por todo lado. Mas enviaram lembrança:
"Passamos pelo Arco do Triunfo. Dobramos o Cabo da Boa Esperança. De
Veneza, fomos pra onde nos deu na veneta. Navegamos mares nunca dantes
navegados. Nossos sonhos são alados. Laura e Vento mandam alento. Um dia, quem
sabe, voltamos. Em câmera lenta. Quando acabar a pilha. Ou chegar ao fim da
linha".