CRÔNICA O RELÓGIO
Eu tinha medo de dormir na casa do
meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas
grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas,
pátios calçados com pedras antigas… De dia, tudo era luminoso. Mas quando vinha
a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes,
espaços. Menos o relógio… De dia, ele estava lá também. Só que era diferente.
Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas,
absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu
pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar, e suas músicas eram
seus sonhos, iguais aos de todos os outros relógios. De noite, ao contrário,
quando todos dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais
tarde vim a entender o que ele dizia: “Tempus fugit“. E eu ficava na cama,
incapaz de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do
próximo quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a
Morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia de
menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes húmidas, de
tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas chaves
enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para as
crianças estórias de além-mar “dinguele-dingue que eu vou para Angola,
dingue-ledingue que eu vou para Angola“ de grandes festas e grandes tristezas,
nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência… O relógio
batera aquelas horas – e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais
notara mudança alguma em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda
chegava ao fim e o seu carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de
socorro: “Não quero morrer…“ Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda –
(pois este não era privilégio de qualquer um. Só podia tocar no coração do
relógio aquele que já, por muito tempo, conhecesse os seus segredos) – subia
numa cadeira e, de forma segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo
continuaria a fugir… Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas.
De noite, quando todos dormiam, elas saíam. O passado só sai quando o silêncio
é grande, memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o
relógio, com seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava
naquela estória que eu não conhecia, mas só imaginava. Já havia visto alguns
dos seus sinais imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse
nos velhos álbuns de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode,
famílias paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas
de pé, ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada
mais eram que fantasmas, desaparecidos no passado, deles, não se sabendo nem
mesmo o nome. “Tempus fugit“. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora.
Mais uma hora no quarto, sem dormir… Sentia que o relógio me chamava para o seu
tempo, que era o tempo de todos aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou.
Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram os gigantescos barrotes de pau-bálsamo
fumegando por mais de uma semana, enchendo o ar com seu perfume de tristeza.
Salvaram-se algumas coisas. Entre elas, o relógio. Dali saiu para uma casa
pequena. Pelas noites adentro ele continuou a fazer a mesma coisa. E uma
vizinha que não suportou a melodia do “Tempus fugit“ pediu que ele fosse
reduzido ao silêncio. E a alma do relógio teve de ser desligada.
Tenho saudades dele. Por sua
tranqüila honestidade, repetindo sempre, incansável, “Tempus fugit“. Ainda
comprarei um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este
meu, no meu pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para
contar. Meu relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr, para não me
atrasar. Com ele, sinto-me tolo como o Coelho da estória da Alice, que olhava
para seu relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou atrasado…“
Não é curioso que o grande evento que
marca a passagem do ano seja uma corrida, corrida de São Silvestre?
Correr para chegar, aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que
toca o seu carrilhão.
O sol e as estrelas entoam a melodia
eterna: “Tempus fugit“.
E porque temos medo da verdade que só
aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e
abafamos o ruído tranqüilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música
suave da nossa verdade, o barulho dos rojões…
Pela manhã, seremos, de novo, o tolo
Coelho da Alice: “Estou atrasado, estou atrasado…“
Mas o relógio não desiste. Continuará a
nos chamar à sabedoria:
Quem sabe que o tempo está fugindo
descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será…
Rubem
Alves
1.
O narrador conta que na infância, tinha medo de dormir na casa do avô. Que
relação tinha o relógio com esse medo?
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2.
Só mais tarde o narrador entende por que o relógio lhe causava medo, na
infância. Explique as causas que ele dá para esse medo.
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a)
“Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a morte.” Por que o bater
do relógio lembrava a morte?
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b)
Identifique na crônica esta frase que introduz outra causa para o medo “ E O
MEU MEDO ERA POR ISTO” Isto o quê?
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3.
O narrador declara que só mais tarde entendeu o que o relógio dizia: “Só mais
tarde vim entender o que o relógio dia: tempus fugit.”
a)
Relógio não fala ...como o relógio dizia : “tempus fugit”?
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b)
Por que o que o relógio dizia era “ Tempus fugit”?
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4.Localize
este trecho na crônica: “ Todas aquelas horas vividas e morridas estavam
guardadas> De noite, quando todos dormia, elas saiam”.
a)
A expressão “horas vividas” se refere a que acontecimentos? E a expressão “horas
morridas”?
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b)
O que fazia que as “horas vividas e morridas” saíssem quando todos dormiam?
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5.
Localize na crônica: “Já havia visto alguns dos seus sinais imobilizados”
a)
Seus sinais – sinais de quem?
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b)
Que sinais o narrador, quando criança, já havia visto?
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c)
Por que esses sinais estavam imobilizados?
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6.
Recorde este trecho em que o narrador explica sua saudade do relógio da casa de
seu avô. “tenho saudade dele. Por sua tranquilidade honestidade, repetindo
sempre, incansável, tempus fugit” Por que o narrador considera que o relógio
era honesto?
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7.
Segundo o narrador, o relógio de pulso, ao contrario do relógio da casa de seu
avô, “ marca a hora sem dizer nada” Por que o relógio de pulso não diz nada?
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8.
Por que é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano seja a
corrida de São Silvestre?
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9.
Quando criança o narrador tinha medo – recorde as duas primeiras questões. No
final da crônica, o narrador fala de novo de medo, um medo que todos temos;
localize este trecho: “É porque temos medo da verdade que só aparece no
silêncio solitário da noite”
a)
Que verdade é essa que temos medo?
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b)
Por que esse medo aparece na noite de passagem de ano?
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c)
Segundo o narrador, o que fazemos para espantar esse medo?
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10.
Recorde este trecho no final da crônica: “Mas o relógio não desiste. Continuará
a nos chamar à sabedoria”
a)
O relógio não desiste de quê?
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b)
Que mensagem sábia nos dá o relógio?
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