CENA 17 Mato O TESTAMENTO DO CANGACEIRO
(Cearim vem vindo. Ouve um ruído e logo vem uma figura impressionante,
com as roupas arrebentadas e ramos de flores na cabeça.)
SACRISTÃO – Os anjos, todos os
anjos... Anjo, você é anjo?
CEARIM – Que é isso... Ah! É a
alma do sacristão vagando nas trevas.
SACRISTÃO – Os anjos, todos os
anjos.
CEARIM – Pera aí, não é alma
não... O sacristão está vivo, as balas pegaram na cabeça só de raspão e ele
ficou bobo... Veja só que sorte a sua, Seu Sacristão. Agora não posso deixar
você só no mato. Vem comigo, vamos procurar comida. Afinal, levou os tiros no
meu lugar.
(Cearim abre o baú, tira dois hábitos de capuchinho, veste um e dá o
outro ao Sacristão.)
CEARIM – Pra quem anda fugido da
polícia, nada melhor que andar de frade. Vamos logo, que meu estômago está
grudando de fome.
NARRADOR – E Cearim mais o
Sacristão desmemorizado seguiram a passo lento pela estrada, em busca de alguma
boa alma que lhes desse o que comer. Chegaram a uma roça, onde alguns
camponeses trabalhavam.
CEARIM – Bons dias, meus irmãos.
CAMPONÊS – Bom-dia, santo frade.
CEARIM – Estamos passando para
encontrar uma boa alma que nos dê o que comer. CAMPONÊS – Ih, seu frade, comida
aqui não tem não. O Coronel fechou o armazém e só vai dar comida se a gente der
metade da colheita e o Vigário faz a mesma coisa.
CEARIM – Pra nós não precisa ser
muita coisa... uma carninha com farinha já dava pra quebrar o galho.
CAMPONÊS – Não temos nem pra nós,
seu frade.
CEARIM – Estava pensando...
SACRISTÃO – Os anjos...
CEARIM – Cala a boca... Vede,
irmãos, ele está variando de fome... Estava pensando que se nos désseis um de
comer, eu ia fazer uma reza das boas pro Coronel e o Vigário abrirem o armazém.
CAMPONÊS – O que tem é só esta
cuia de farinha...
CEARIM – Já serve, irmão, já
serve... ( Cearim come e dá um pouco ao
Sacristão. )
CAMPONÊS – Tá bom de gosto, seu
frade?
CEARIM – Está um pouco mofada.
Mas pra quem ama, fedor de bode é perfume.
CAMPONÊS – Passou a fome, seu
frade?
CEARIM – Aliviou.
CAMPONÊS – E a reza que o santo
frade vai fazer pra o Vigário mais o Coronel abrirem o armazém?
CEARIM – É pra já... Atenção!
CEARIM E SACRISTÃO – (Cantam)
Os anjos, todos os anjos
Os anjos, tão bonitinhos
Os anjos, tão gorduchinhos
Os anjos, tão peladinhos
Os anjos, tão bundudinhos
CEARIM – Que é isso, dizer uma
coisa destas dos santos anjinhos. Olha aqui minha gente, reza só não vai
adiantar não.
CAMPONÊS – O que é que adianta,
então?
CEARIM – O causo é o seguinte...
As terras aqui só tem dois donos. As terras do Coronel e as terras do fazendão
do Padre. Pois se são só os dois que tem terra é porque o resto não tem terra
nenhuma. Então, o negócio é dar um jeito na esperteza e levar as terras do
Coronel e do Vigário.
CAMPONÊS – Fazer uma coisa destas
com o Vigário. Deus manda castigo.
CEARIM – Olha, ô berro de meia
guela: Deus está de férias. O que tem de fazer é despachar logo o Coronel e o
Vigário. Sei que vigário é ministro de Deus na terra, mas também é dono de
terras. Então, passa a vara nos donos da terra e o Vigário também vai no
embrulho. CAMPONÊS – Heresia... Mandado do diabo.
CEARIM – Olha aqui o insosso. O
diabo renunciou...
CAMPONÊS – Acho que ele está
falando certo...
CEARIM – Tem muitas coisas que
vocês não sabem... Olha aqui gente, vem pra cá que eu quero contar uma história
pra vocês, uma história que aconteceu comigo... Era uma vez um lugar muito
triste, perdido nos longes do sertão. Nos meses de verão...
NARRADOR – (Continuando) A chuva
deixava de cair, os rios secavam e a terra rachava... E Cearim começou, ponto
por ponto, a recontar sua história desde o dia em que tinha partido de sua terra,
cantando em busca de felicidade... Contou tudo... O aparecimento da madrinha, o
testamento do cangaceiro, o cego, a noite com Ercília, o irmão do cangaceiro, o
vigário, o truque do saco, o disfarce do bispo... Enfim, contou, ponto por
ponto, tudo o que havia vivido desde o dia em que começara a grande caminhada
em busca da felicidade. No seu recontar, os ouvintes foram entendendo que a
bondade e a maldade não resolvem, que não é porque o homem é bom ou mau que as
coisas acontecem, mas apenas porque o homem é como é. Foram entendendo que a
terra devia ser de quem trabalhava nela. E Cearim, no recontar da história,
estava com eles. Quando Cearim acabou, um brilho novo e diferente dançava nos
olhos dos lavradores e em seus cora- ções uma vontade de vida nova começava a
tomar forma. E, ao compreender a história, a raiva mais linda do mundo brilhava
nos olhos dos lavradores.
CEARIM – Estou certo?
TODOS – Certo.
TEXTO DRAMÁTICO
O trecho que você leu faz parte da última cena de uma peça teatral. É uma
comédia em que a personagem principal, um nordestino que sai em busca da
felicidade, passa por uma série de aventuras, envolvendo-se com o bem e o mal.
Chegou a ser preso, sem ter culpa, por lhe armarem uma cilada.
O nome da peça é “O Testamento do Cangaceiro” e foi escrita por Chico de
Assis. Ela foi montada pela primeira vez no Teatro de Arena de São Paulo em
1961. Augusto Boal foi o responsável pela direção e Lima Duarte fez o papel de
Cearim. Você notou como o texto dramático tem algumas características diferentes
dos outros textos estudados?
Observe:
• a fala das personagens vem introduzida pelo nome de cada um;
• os trechos entre parênteses, chamados de rubricas, indicam como o texto
deve ser representado e a movimentação das personagens em cena;
• esse texto tem um narrador mas, geralmente, o texto teatral não tem narrador
porque a narração é a própria representação dos diálogos;
• quase sempre as frases são curtas porque são características da fala. Na
verdade, o texto dramático tem como finalidade ser representado por artistas que
o decoraram tão bem que dão a impressão de estarem conversando naturalmente.
Interpretação do texto
Releia o texto e responda:
1- Cearim enganara o Sacristão,
mas agora parece arrependido e decide ajudá-lo. Copie o trecho que prova isso.
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2- Qual é a estratégia que Cearim
usou para ele e o Sacristão não serem descobertos? Isso aparece na fala ou na
rubrica?
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3- Quantas rubricas aparecem
nesse trecho? Por que os verbos estão sempre no presente?
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4- Por que os camponeses não tinham
comida? Você acha certo ou errado isso? Por quê?
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5- O que Cearim prometeu ao camponês
em troca de um pouco de comida?
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6- Em vez de reza, Cearim mostrou
a real situação dos camponeses para que eles se conscientizassem dela e usou
sua história para ilustrar. O que os camponeses entenderam? Você concorda ou
não com eles? Explique.
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7- Como se trata de um texto
teatral, a linguagem é próxima da fala, portanto, mais informal. Logo no
início, Cearim diz “pera aí” em vez de usar o mais formal que é “espere aí”.
Encontre uma outra construção informal e passe-a para um nível mais formal.
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8- Agora você fará uma paráfrase,
isto é, transformará o trecho do texto dramático em um texto narrativo em
prosa. Você escreverá o texto contando a mesma história. Não se esqueça de usar
o discurso direto ao abrir espaço para os personagens falarem.
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