Começar de novo
São muito raros os escritores que
se arriscam num estilo diferente do que os consagrou
Vivi em Berlim durante um ano,
beneficiando de uma bolsa de criação literária. Atrás do apartamento que nos fora
atribuído havia um jardim enorme, com um lago. Meses antes eu comprara em Goa,
na Índia, uns barquinhos de lata. Acendia-se uma vela no interior e, através de
um qualquer mecanismo rudimentar, os barquinhos punham-se em movimento,
produzindo um convincente ruído de motor. Paguei uns cinco reais, no máximo,
por cada um deles. Costumava levar o meu filho a brincar no lago. Ou talvez
fosse o meu filho que me levasse a mim, para o caso tanto faz, o certo é que
aqueles brinquedos faziam imenso sucesso entre os meninos alemães, muito mais
do que as luxuosas lanchas de controle remoto que alguns exibiam. A enorme
vantagem dos nossos barquinhos era não serem controláveis remotamente. O
destino deles dependia de um simples golpe de vento. Podiam levar meia hora até
retornarem à margem. Ou podiam naufragar no meio do lago — o que, aliás,
sucedeu a todos — e por isso, porque nunca sabíamos o que iria acontecer, era
tão emocionante lançá-los à água.
Aventura implica o imprevisto, o
que não tem horário, um certo risco, inclusive físico — mas sem um pouco de
aventura, a que sabe a vida?
Quando comparo a minha infância
com a dos meus filhos surpreende-me sempre perceber o quanto a deles ganhou em
segurança, mas perdeu em emoção. Entre os 7 e os 15 anos, abri a cabeça umas
quatro vezes, cortei o tendão de Aquiles ao quebrar uma porta de vidro num
golpe mal calculado de karatê, e creio que numa ou noutra ocasião cheguei mesmo
a colocar a vida em risco, enquanto nadava entre tubarões ou deslizava por
ladeiras de terra batida em carrinhos de rolimã. Ficaria aterrorizado se visse
os meus filhos repetindo as muitas loucuras que cometi, mas não me arrependo de
quase nenhuma. Vá lá, arrependo-me daquele instante em que o Karatê Kid baixou
em mim diante de uma porta de vidro. Não havia necessidade.
Com a passagem dos anos a maioria
das pessoas troca o risco pelo conforto. Conformam-se — e assim envelhecem.
Envelhecer é desistir da aventura. Pessoas que mantêm a curiosidade acesa ao
longo dos anos, que continuam a arriscar e a surpreender-se, essas são sempre
jovens.
“Todo o processo criativo é um
ato de coragem”, dizia Picasso, e dizia-o com propriedade, pois por várias
vezes teve a ousadia de abandonar um caminho de sucesso, para se aventurar por
trilhos ainda inexplorados. Já com muita idade e mais jovem do que nunca, terá
dito, olhando para trás: “Quando tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas
levei a vida inteira para aprender a desenhar como uma criança.”
Penso em Picasso enquanto leio o
novo romance do moçambicano Mia Couto, “Mulheres de cinza”, primeiro volume de
uma trilogia intitulada “As areias do imperador”. Nas artes plásticas há
bastantes exemplos semelhantes ao de Picasso. Na música popular também. Basta
pensar em Caetano Veloso, que volta e meia se reinventa e ao fim de tantos anos
ainda é capaz de surpreender os seus ouvintes mais fieis. Na literatura, porém,
são raros os autores que se atreveram a trocar um estilo já consolidado, algo
tão difícil de conseguir, por outras propostas. Mia Couto fez isso. Começou a
afastar-se do estilo que o consagrou, assente numa invenção vocabular lírica,
onírica e intensamente lúdica, quase barroca, a partir do romance “Antes de
nascer o mundo”. Creio que este “Mulheres de cinza” completa esse processo de
afastamento. Contribui para isso o fato de se tratar de um romance histórico,
ambientado nos últimos anos do século XIX, primeiros anos do século XX, a
exigir uma linguagem mais depurada. O romance organiza-se em redor da figura
mítica do último imperador de Gaza, Ngungunyane, o qual foi preso pelas tropas
portuguesas em 1895, exibido pelas ruas de Lisboa como uma curiosidade de
circo, e finalmente desterrado para os Açores, onde veio a falecer em 1906.
Ngungunyane seguiu para o exílio na companhia de sete das suas esposas, além de
três outros altos dignitários do derrotado império. Os quatro refizeram a vida
nos Açores. Três dos africanos casaram com açorianas e deixaram descendência
nas ilhas. Assim, de certa forma, também eles se reinventaram, e, ao fazerem
isso, emergiram triunfantes da longa humilhação a que o colonialismo português
os sujeitou. Os descendentes portugueses dos príncipes de Ngungunyana ostentam
hoje, com orgulho, o nome africano e a tez escura. Não são descendentes de
homens derrotados, e sim de guerreiros que atravessaram o mar e numa terra
distante lutaram contra todo o tipo de preconceitos — e venceram.
1- Transcreva, do segundo
parágrafo, um pequeno trecho que contenha
a) uma indicação de tempo:
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b) um espaço definido:
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c) uma ação habitual:
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d) uma alternativa:
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2 – Segundo o cronista, de que a
vida precisa?
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3- Transcreva o trecho do texto
em que o cronista compara sua infância à de seus filhos.
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4- O que significa dizer a
respeito de Picasso “Já com muita idade e mais jovem do que nunca”?
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5- Que trecho do texto retoma a
ideia do primeiro parágrafo?
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6- No trecho “ Os quatro
refizeram a vida nos Açores”, no último parágrafo, a quem se referem os termos
destacados?
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7- Qual a tese defendida no
texto? Transcreva dois argumentos que a sustentam.
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