PáginasDESCRITOR

domingo, 19 de abril de 2020

CORDEL O CACHORRO DOS MORTOS


O cachorro dos mortos
Leandro Gomes de Barros

Os nossos antepassados
Eram muito prevenidos
Diziam: matos têm olhos
E paredes tem ouvidos
Os crimes são descobertos
Por mais que sejam escondidos

Em oitocentos e seis
Na província da Bahia
Distante da capital
três léguas ou menos seria
Sebastião de Oliveira
ali num canto vivia

Ele, a mulher e duas filhas
E um filho já homem feito
O rapaz era empregado
E estudava direito
O velho não era rico
Mas vivia satisfeito

As duas filhas eram moças
Bonitas e encantadoras
Logravam na capital
O nome de sedutoras
Chamavam atenção de todos
As grandes tranças tão louras

Esse velho era ferreiro
E ferreiro habilitado
Vivia ali do ofício
Plantando e criando gado
Por três vezes enjeitou
O cargo de delegado

Havia um vizinho dele
Eliaziário Amorim
Esse tinha um filho único
Da espécie de Caim
Enquanto o espanhol velho
Até não era ruim

O filho deste espanhol
Era uma fera carniceira
Veio provocar namoro
Com as filhas de Oliveira
Uma delas disse a ele:
De nós não há quem o queira

Ele disse: Tu não sabes
Que meu pai possui dinheiro
Em terras e criações
É o maior fazendeiro?
Ela disse: O meu pai é pobre
Planta, cria e é ferreiro

Minha mãe tece de ganho
Nós vivemos de costura
Meu pai vive de sua arte
E de sua agricultura
Meu irmão é empregado
Para que maior ventura?

O sedutor conheceu
Seus planos serem debalde
E só podia vencê-la
Por meio de falsidade
Que é a arma mais própria
Aonde existe a maldade

Saiu dali Valdivino
Fedendo a chifre queimado
E Angelita ficou
Com o coração descansado
Nem disse aos outros de casa
O que tinha passado

Ele pensou em forçá-la
Mas pensou no resultado
Devido o pai de Angelita
Ser muito considerado
O filho pelo governo
Era tão conceituado

Exclamou ele consigo:
oO! Angelita és tão bela
Eu não sossegarei mais
E nem me esquecerei dela
Farei tudo para vencê-la
Porém não caso com ela

Mas Valdivino temia
O pai dela e o irmão
Que o governo da província
Tinha-lhe muito atenção
O rapaz era empregado
E tinha consideração

Valdivino inda pensou
Que matando Floriano
Podia calçar com ouro
Todo governo bahiano
Ainda que entrasse em júri
Não passava nem um ano

Ou poderia matá-lo
Oculto numa emboscada
Porque ninguém vendo o crime
Ele não sofria nada
Defunto não conta história
Estava a questão acabada

Havia ali um engano
Entre Vitória e Bahia
A divisão das províncias
Ali ninguém conhecia
Sebastião de Oliveira
Era o único que sabia

O governo da província
Tendo aquela precisão
Disse um dia a Floriano
Você vá em comissão
Chamar seu pai para vir
Mostrar a demarcação

Valdivino de Amorim
Viu Floriano passar
Escolheu o lugar próprio
Onde pudesse emboscar
Dizendo dentro de si:
Ele não pode escapar

A fera foi emboscá-lo
Onde havia uma capoeira
Carregou um bacamarte
Fez duma árvore trincheira
Distante um quarto de légua
Da fazenda de Oliveira

O rapaz chegou em casa
O velho tinha saído
Foi ver se achava um jumento
Que havia se sumido
Um amigo lhe escreveu
Que lá tinha aparecido

O Floriano chegou
Depois que o velho saiu
Nessa tarde não voltou
Com a família dormiu
Deu o recado à mãe dele
De madrugada seguiu

Calar um cachorro velho
Que Sebastião criou
Quando Floriano saiu
Calar o acompanhou
Floriano quis voltar
Porém Calar não voltou

Passava ali Floriano
A fera então enfrentou-o
Disparou o bacamarte
Sem vida em terra lançou-o
Calar partiu ao sicário
O assassino amarrou-o

As moças lá da fazenda
Ouviram o grande estampido
Angelita se assustou
Dizendo: O que terá sido?
O tiro foi para o lado
Que seu irmão tinha ido

Angelita convidou
A sua irmã Esmeralda
Dizendo: Vamos aqui
A passeio pela estrada
Aquele tiro que deram
Deixou-me sobressaltada

No sertão naquele tempo
Podia uma moça andar
Passava dois ou três meses
Sem nem um homem passar
Por isso foram elas duas
Não tinha o que recear

Iam ali conversando
Sobre a aragem matutina
Disse Esmeralda à irmã:
Olha para o céu, menina
Estás vendo aquelas estrelas
Como têm a luz tão fina?

Chegaram aonde o irmão
Estava morto na estrada
O criminoso no mato
Atirou em Esmeralda
E enfrentou Angelita
Dizendo: Não diga nada

Angelita muito pálida
Sem estar esmorecida
Vendo os dois irmãos já mortos
Por uma mão homicida
Lhe disse: Monstro tirano
Eu morro e não sou vencida

Ele disse: Angelita
Com tudo isso sou teu
Foi dar-lhe um beijo nos lábios
E Angelita mordeu
Ele cravou-lhe o punhal
Ela ali esmoreceu

Pondo a mão na punhalada
Disse: Monstro desgraçado
Aquele velho cachorro
Que está ali amarrado
Descobrirá este crime
E tu serás enforcado

Olhou para o gameleiro
Que tinha junto a estrada
Dizendo: Tu gameleiro
Viste esta cena passada?
És uma das testemunhas
Quando a hora for chegada

Na última agonia
Exclamou: Monstro assassino
Tirastes agora três vidas
E não sacias o destino?
Isso hei de te lembrar
Perante o juiz divino!

Não julgue que fique impune
Este sangue no deserto
Tu não vês três testemunhas
Que estão aqui muito perto
Estás perante ao público
Irão depor muito certo

Disse Valdivino: És louca
Quem viu o que foi passado?
Disse Angelita: Este cão
Que está ali amarrado
A gameleira e as flores
Dirão no dia chegado

Olhou para o cão e disse:
Olha, meu velho Calar
Tu dirá tudo ao juiz
Se ele te perguntar
Essa velha gameleira
Fica para te ajudar

Essa flor que por ela
Há festa aqui todo ano
Há de tirar a justiça
De uma suspeita ou engano
Dirá ao juiz: Venha ver
Quem matou o Floriano!

As três vidas que roubaste
Pagarás com sua vida
Tu hás de te arrepender
Depois da causa perdida
Uma lágrima vertida
Será por teu pai vertida

Contudo monstro, perdôo-te
Porque fui e sou cristã
A morte do meu irmão
A minha e de minha irmã
Tu hoje matas a mim
Outro te mata amanhã

E pondo a mão sobre uma
Das punhaladas que tinha
Disse a Calar: Se fugires
Consola a minha mãezinha
E diga-lhe que abençoe
Os pobres filhos que tinha

Embora que tu não fales
Pois não te foi concedido
Mas um olhar bem lançado
Dá idéia dum sentido
Um uivo e um olhar
Pode ser compreendido

E ali cerrando os olhos
Quase sorrindo expirou
O assassino olhando
Chorando se retirou
Depois pensou: Isto é nada!...
Com toda calma voltou

Já estava frio o cadáver
Porém nas faces mimosas
Via-se perfeitamente
Desenho de duas rosas
Como se fossem pintadas
Por mãos das mais curiosas

Em Esmeralda se via
O sangue ainda saindo
Vestígio de zombaria
Como quem morre sorrindo
Como criança que brinca
Finge que está dormindo

O rapaz banhado em sangue
Bem no meio da estrada
À esquerda de Angelita
À direita de Esmeralda
Com uma mão na ferida
E a outra mão estirada

Valdivino tinha à noite
Escrito numa carteira:
"Eu hoje hei de matar
Floriano de Oliveira
Se não matá-lo me mato
Será a minha derradeira"

Datou-a e assinou o nome
Pegou a arma e saiu
Se encostou num gameleiro
A carteira escapuliu
Havia um oco da árvore
Nele a carteira caiu

A fera não se lembrou
Da testemunha ocular
Perdendo aquela carteira
Alguém a podia achar
Ela na mão da justiça
Quem poderia o soltar?

Porém uma força oculta
Permitiu que ele perdesse
E a mesma força impôs
Que dela se esquecesse
Para dizer a seu tempo:
O assassino foi esse!

Calar, o velho cachorro
Que aquele espetáculo via
Soltando uivos enormes
Que muito longe se ouvia
Rosnava, fitava os olhos
Debalde a corda mordia

Valdivino ali puxando
Um facão muito afiado
Descarregou no cachorro
Um golpe encolerizado
Errou e cortou a corda
Com que estava amarrado

Valdivino ficou triste
Vendo o cachorro correr
Lembrou-se o que Angelita
Disse antes de morrer
Porém disse: Ele não fala
Como poderá dizer?

Calar chegou na fazenda
Uivando desesperado
Dona Maria da Glória
Já tinha levantado
Quando viu o cão uivando
Aí cresceu-lhe o cuidado

E foi procurar os filhos
Onde ouviu os estampidos
Calar foi adiante uivando
Com enormes alaridos
Dona Maria da Glória
Ia aguçando os ouvidos

Como não foi seu espanto
Quando chegou no lugar
Onde achou os filhos mortos
Sem nada ali atinar
Calar sabia de tudo
Mas não podia falar

Voltou Maria da Glória
Num triste e penoso estado
Já Sebastião em casa
A esperava sentado
Não sabia da desgraça
Que a pouco tinha se dado

Perguntou pela família
Ela não pôde contar
Disse apenas: Morreu tudo
E apontou o lugar
Estendeu-se para um lado
Sem mais nada atinar

Sebastião de Oliveira
Foi por onde a mulher veio
Achou a poça de sangue
Os filhos mortos no meio
Olhou para o céu e disse:
Oh! Meu Deus que quadro feio

Foi perguntar à mulher
Como aquilo foi se dado
Ela apenas lhe contou
O que tinha passado
Deixando o ancião
Aflito e impressionado

Montou num burro e saiu
Dali para a capital
Quando chegou na cidade
Foi ao quartel general
Lá falou mais duma hora
E nada disse afinal

Depois de muita insistência
O presidente entendeu
Perguntou por Floriano
Ele lhe disse: Morreu..
Ele e a família toda!...
E contou o que se deu

A justiça foi atrás
Ver o que tinha se dado
Encontrou os três cadáveres
No chão em sangue banhado
Calar inda estava uivando
Junto dos mortos deitado

Foram à casa de Oliveira
Ver se Maria da Glória
Dava um roteiro que ao menos
Se calculasse uma história
Ela contou essa mesma
Que eles guardam na memória

Dona Maria da Glória
Dois dias depois morreu
Sebastião de Oliveira
Com três dias enlouqueceu
Dentro de duas semanas
Tudo desapareceu

A justiça da Bahia
Não cessou de procurar
Espalhou por toda parte
Secretos a indagar
Não havia uma pessoa
Que dissesse: Eu vi matar

Dava dez contos de réis
Na moeda que quisesse
À pessoa que chegasse
E seriamente dissesse
Teria mais um terreno
A pessoa que soubesse

Porém o crime se deu
Quando ali ninguém passava
Calar sabia tudo
Porque no crime ele estava
Se falasse descobria
Desejo não lhe faltava

Impressionava a todos
Habitantes da cidade
Como deu-se aquele crime
Naquela localidade
Floriano de Oliveira
Todo lhe tinha amizade

Atribuiu-se a um roubo
Por algum aventureiro
Mas o rapaz costumava
A não andar com dinheiro
Questão de moça não era
Ele era justiceiro

Os moradores de perto
Eram todos conhecidos
Compadres dele e do pai
E por eles protegidos
Tanto que se dando o crime
Todos ficaram sentidos

Eliziário era um desses
Abortos que tem havido
Desses que o pão que come
Considera estruído
Fazer-lhe o mal é pecado
Fazer-lhe o bem é perdido

Esse era fazendeiro
Porém dali não saía
Nem era bem conhecido
No comércio da Bahia
Só onde vendia lã
Alguém lá o conhecia

E o dono do açougue
Onde ele vendia gado
O banco onde ele tinha
Dinheiro depositado
Tanto que deu-se esse crime
E dele não foi lembrado

Sentiu e chorou bastante
A morte do camarada
E não foi à missa dele
Por não ser de madrugada
Pois só tinha uma camisa
E essa estava rasgada

Também procurou saber
Qual seria o assassino
Não sei se pelo dinheiro
Ou pelo próprio destino
Mas nunca lhe veio na mente
Ser seu filho Valdivino

Onde deu-se o crime havia
Duas estradas em cruz
Diziam que ali se achavam
Umas flores muito azuis
Formando uma lapa igual
À do menino Jesus

Os baianos costumavam
Desde da antigüidade
Fazerem uma grande festa
Naquela localidade
Véspera e dia de ano
Ali era novidade

Na capital da Bahia
Não havia outro festim
Havia missa campal
Orquestra e botequim
Bailes naquelas latadas
Bem cobertas de capim

Em oitocentos e nove
Estava a festa a terminar
Um velho que ali passava
Passou naquele lugar
Atrás desse caçador
Vinha o cachorro Calar

Abrigou-se numa sombra
Vinha muito esbaforido
Foi cheirar o pé da cruz
Que o senhor tinha morrido
Cheirou a das duas moças
E depois soltou um gemido

Estava ali um general
O bispo e o presidente
Com o chefe da polícia
Homem muito experiente
Todos ficaram daquilo
Impressionadamente

O general perguntou
De quem era aquele cão
Respondeu o velho Pedro:
Este cachorro patrão
É do defunto Oliveira
Que Deus dê-lhe a salvação

Este cachorro é o rei
Dos cachorros caçadores
Ainda adora o lugar
Que mataram seus senhores
Se fosse de madrugada
Seus uivos faziam horrores

Disse o chefe de policia:
Inda não se descobriu
A morte de um patrício
Que tanto à pátria serviu
Foi logo nesse deserto
Em horas que ninguém viu

Disse ali o presidente:
Se ainda se descobrir
O autor dessas três mortes
Eu juro por Deus o punir
Serei o carrasco dele
Quando ele à forca subir

Sebastião de Oliveira
Era um pobre acreditado
A família deu exemplo
O filho um rapaz honrado
Era um rapaz distinto
Por todo mundo estimado

Então disse o general:
Isso ainda é descoberto
O crime foi muito oculto
Feito aqui neste deserto
Mas quando chegar o dia
Há de saber-se por certo

Se eu vivo for nesse tempo
Serei o algoz mais forte
Serei um dos que conduz
Para o teatro da morte
Com a minha própria mão
Amolo o ferro que o corte

O cachorro ouvindo aquilo
Ergueu-se muito contente
Foi aos pés do general
Festejou o presidente
Como quem dizia: O crime
É punido corretamente

Disse o bispo: Esse cachorro
É testemunha ocular
Ele viu quem fez as mortes
Só faltava é ele apontar
Se ele visse o criminoso
Podia lhe denunciar

Disse o velho: Esse cachorro
Fez uma coisa esquisita
Tinha uma cobra enroscada
Onde mataram Angelita
Ele despedaçou-a a dentes
Quase que se precipita

Disse o velho: Esse cachorro
Aos pés da cruz se lança
Solta um uivo muito triste
Como quem pede vingança
Como quem pede debalde
Sem ter daquilo esperança

Nisso chegou um cavalheiro
Valdivino de Amorim
Andava fora inda vinha
Ver se alcançava o festim
Vinha num burro possante
Alvo da cor de jasmim

Assim que o cachorro viu
Valdivino se apear
Rosnou e partiu a ele
Querendo lhe estraçalhar
Só não rasgou-lhe a garganta
Devido o velho pegar

Tremia o queixo e babava
Fitando ali Valdivino
Uivava como quem já
Tivesse perdido o tino
Só faltava era dizer
— Eis aí o assassino!

E foi para o pé da cruz
E ali pegou a uivar
Fitando os olhos no céu
Como quem quer suplicar
Como quem dizia: Oh! Deus
Vens que não posso falar!

O bispo disse: Valdivino
Você está descoberto
O senhor foi autor
Das mortes neste deserto
Aquele cachorro deu
Um depoimento certo

O monstro viu o perigo
Fez tudo para negar
O bispo disse: Meu filho
Não há mentira em olhar
Os olhos são verdadeiros
Não podem nada ocultar

Os olhos também se queixam
Um olhar diz o que sente
Ameaça ou traição
Punição severamente
Declara mágoa ou dor
Porém o olhar não mente

O olhar daquele cão
Está demonstrando a dor
O sentimento profundo
Da morte do seu senhor
Ele só falta falar
E apontar o matador

Naquilo duas crianças
Que estavam em brincadeira
Uma delas se trepou
Num galho de gameleira
Tirando um ninho de rato
Achou nele uma carteira

O leitor deve lembrar-se
De um verso que aqui já leu
Veja na véspera do crime
O que Valdivino escreveu
E que no oco da gameleira
A carteira se perdeu

Ali trouxeram a carteira
Entregaram ao general
O bispo disse: Senhor
O que lhe disse afinal
Eu não lhe disse que os olhos
Só diz o que é legal?

Valdivino descobriu tudo
Em sua interrogação
Calar ali demonstrava
Ter grande satisfação
Pulava um metro de altura
E rolava pelo chão

Corria escaramuçando
Como quem estava em folia
Festejou o general
Com demarcada alegria
Como quem dizia: Nesses
Encontrei o que queria

O povo todo da festa
Quis a Valdivino linchar
O bispo e o presidente
Tratou de acomodar
Garantindo que a justiça
Havia de o castigar

Saiu preso Valdivino
Calar o acompanhou
O velho Pedro chamava
Mas ele não escutou
Voltou quando Valdivino
Preso nos ferros deixou

O general ao sair
Ordenou ao cozinheiro
Que desse ao velho Calar
Um bom lombo de carneiro
Porque merecia muito
Aquele bom companheiro

O criado deu o lombo
Calar nem para ele olhou
Saiu o povo da festa
E o lombo lá ficou
O cachorro veio comer
À noite quando voltou

A mulher de Eliziário
Sabendo o que aconteceu
Deu-lhe um ataque tão forte
Que ela no chão se estendeu
Passou a noite sem fala
No outro dia morreu

Juvenal um espanhol
Parente de Eliziário
Chegando lá disse ao velho:
— você é milionário
Compre três ou quatro médicos
Que provem ele está vario

Porque ele estando vário
Não poderá ser julgado
O processo fica inválido
Não pode ser condenado
Aí o senhor procura
O melhor advogado

Eliziário pensou
Aquilo ser acertado
Do contrário Valdivino
Ia ser executado
E tinha toda certeza
Ele morrer enforcado

Dirigiu-se à capital
Procurou advogado
Este arrumou cinco médicos
Sendo o réu examinado
Provaram que há quatro anos
Ele era tresloucado

O bispo e o presidente
Consultaram ao general
Mandaram vir quatro médicos
No reino de Portugal
E fizeram na Bahia
Uma junta especial

Vieram de Portugal
Quatro médicos escolhidos
Que por dinheiro sem conta
Não seria iludidos
Esses homens de caráter
Jamais seriam vendidos

E examinaram o réu
Cada médico de per si
Todos disseram que nunca
Houve tal loucura ali
Nem sequer nervoso havia
Todos juraram aí

Fizeram novo processo
Depois dele examinado
E estando pronto o processo
Valdivino foi julgado
A sentença que pegou
Foi para ser enforcado

Não havia mais recurso
Estava tudo consumado
O réu dali a três dias
Ia ser executado
Não tinha mais o que apelar
Já tinha sido julgado

O velho quase sem jeito
Sem nada mais conseguir
Tentou o último meio
A fim do filho fugir
Mas só dos degraus da forca
Podia se escapulir

Então soube que o carrasco
Era um tal de Zeferino
Um calibre mais ou menos
Igual o de Valdivino
Tinha os três dons da desgraça
Covarde, vil, assassino

Era um mulato laranjo
De aspecto aborrecido
O couro da testa dele
Sempre se via franzido
Os cabelos bem vermelhos
Rosto largo e não comprido

Foi o velho Eliziário
A esse tal Zeferino
Ver se ele podia dar
Evasão a Valdivino
Dizendo: Ele pula da forca
E depois toma destino

Pegue dez contos de réis
Que lhe dou adiantado
E se tiver a fortuna
Dele não ser enforcado
Dar-lhe-ei mais vinte contos
O dinheiro está guardado

Então disse Zeferino
— Isso é difícil arranjar
Porém quando ele subir
Eu finjo me desculpar
Ele que vai prevenido
Trata logo de saltar

Disse Zeferino ao velho:
O senhor deve aprontar
Um cavalo bem ligeiro
Para quando ele saltar
Montar-se logo e correr
Antes do povo chegar

Eu hoje direi a ele
Tudo que está planejado
Que cor será o cavalo
Que há de está selado?
— Diga que é o poldro branco
Em que ele andava montando

Valdivino quando soube
Esta consulta que havia
Ficou como uma criança
Chorava ali de alegria
Jurando no mesmo instante
Que Calar lhe pagaria

Então quando chegou o dia
Estava o povo aglomerado
Valdivino de Amorim
Ia ser executado
Tudo ali estava esperando
Vê-lo morrer enforcado

Presente ao estado maior
Que vinha presenciar
Subiu Valdivino à forca
Zeferino foi laçar
Porém ele se encolhendo
Conseguiu dali saltar

E saiu como uma flecha
Entre o povo se meteu
Se montando no cavalo
Dali desapareceu
Internando-se no mato
Num instante se escondeu

O povo indignou-se
Com a fuga de Valdivino
Um deles que ali estava
Estrangulou Zeferino
Porque este tinha dado
Evasão ao assassino

Porém chegou o cachorro
Quase na ocasião
Soltou dois ou três latidos
Saiu de venta no chão
Sessenta e três praças foram
Também em perseguição

Porém Valdivino ia
Em bom cavalo montando
Tinha grande desvantagem
De não ter saído armado
E Calar no rastro dele
Gania muito vexado

Foi preso Eliziário
Como autor da evasão
O povo não o matou
Porém foi para a prisão
E o bispo que saiu
Pedindo à população

Era meia-noite em ponto
Valdivino ainda corria
O cavalo já cansado
Que nada mais resistia
E o cachorro Calar
De vez enquanto latia

Valdivino conhecendo
Que nada a ele valia
E o cachorro Calar
Seu rastro não deixaria
Pensou em suicidar-se
Só assim descansaria

Dentro do mato apoiou-se
E amarrou o cavalo
Encostou-se numa pedra
Sentiu alguém acordá-lo
Nisto o cavalo espantou-se
Ele não soube pegá-lo

Seguiu por uma vereda
Descalço e todo rompido
Ouvindo de vez enquanto
Calar soltar um ganido
Foi sair bem no lugar
Que o crime tinha havido

Ele viu a gameleira
Que sombreava a estrada
Floriano de Oliveira
Angelita e Esmeralda
Sebastião de Oliveira
E dona Maria prostrada

Viu vir uma carruagem
Nela vinha um magistrado
Que saudou os três vultos
Depois de ter se apeado
Exclamou: Sangue inocente
Breve hás de ser vingado!

Tornou a tomar o carro
Se montando foi embora
Nesse momento Calar
Vem com a língua de fora
Festejou todos os vultos
E voltou na mesma hora

Um dos vultos chamou ele
O cachorro estacou
Valdivino não ouviu
O que o fantasma falou
Só ouviu foi dizer: Volte
E o cachorro voltou

O criminoso pensou
Que ali não escaparia
Lembrou-se duma pessoa
Que morava na Bahia
Pois tinha onde ocultá-lo
Que nem o cachorro via

Era um compadre e amigo
A quem ele protegeu
Que com dinheiro do pai
Esse tal enriqueceu
E ia sempre visitá-lo
Quando a justiça o prendeu

Valdivino calculou:
Eu o que devo fazer
É ir para o quintal
Por ali me esconder
Ou ele ou a mulher dele
Um há de me aparecer

E saiu o assassino
Chegando lá se escondeu
Não houve ali quem o visse
Quando o dia amanheceu
O compadre veio fora
E ele lhe apareceu

Valdivino lhe pediu
Que não o deixasse morrer
Disse o velho Roberto:
Eu tenho onde te esconder
Porém ninguém mais daqui
Disso não pode saber

Quatros dias decorriam
E o assassino escondido
Debaixo dumas madeiras
Estava ele metido
O pai dele na cadeia
Já ia ser concluído

Num dia de quarta-feira
O velho Calar chegou
A força ainda estava armada
Calar ali a olhou
Cravando a vista no céu
Um uivo triste soltou

Veio ali o presidente
Que trouxe um pão e lhe deu
Calar olhou para ele
Cheirou-lhe os pés e gemeu
Botando o pão entre as mãos
Deitou-se e ali comeu

Chegou a força do mato
Não trazendo o criminoso
O general com aquilo
Ficou muito desgostoso
Até o governador
Ficou doente e nervoso

O povo ao redor da forca
Só fazia lamentar
Que o pai do assassino
Deverá se executar
Tudo pedia ao governo
Que o mandasse enforcar

O cachorro levantou-se
Como quem está chamando
Foi à casa de Roberto
Na porta ficou uivando
Olhava para Roberto
Partia a ele rosnando
O general com aquilo
Ficou bastante nervoso
E disse ao governador:
Estou muito receoso
Que ali naquela casa
Está oculto o criminoso
Então a força cercou
Toda casa de Roberto
O cachorro só faltava
Era dizer: Está perto
O general disse a ele:
O senhor está descoberto
Roberto ali descobriu
Onde o assassino estava
Debaixo das madeiras
O monstro se conservava
Foi levado ao pé da forca
Onde o povo lhe esperava
Contou tudo que se deu
Antes de ser enforcado
Os vultos que viu nas cruzes
A quem tinha assassinado
O segredo do cachorro
E o carro do magistrado
Às cinco horas da tarde
A justiça o enforcou
O pai dele estava preso
Assim que o sino dobrou
Ali soltando um suspiro
Na mesma hora expirou
Estando morto o assassino
O deitaram sobre o chão
O cachorro olhou-o bem
Chamando tudo atenção
Soltou dois ou três latidos
Que espantou a multidão
Quando a justiça ordenou
Pra ser o corpo inhumado
Sobre os pés do general
Calar caiu mui cansado
Talvez querendo dizer
General, muito obrigado
O general foi ver água
Ao cachorro ofereceu
Ali o velho Calar
Dois litros d'água bebeu
Trouxeram-lhe uma fritada
Porém ele não comeu
Festejando o general
As pernas dele abraçou
Dirigiu-se ao presidente
A mesma ação obrou
Depois desapareceu
Novo destino tomou
Foi direitinho ao lugar
Que o horrendo crime se deu
No pé da cruz de Angelita
Ele cavou e gemeu
O velho Pedro chamou-o
Mas ele não atendeu
Deitou-se entre as três cruzes
Sua vida liquidou
Nas condições dum guerreiro
Que da batalha voltou
Trazendo os louros de guerra
À sepultura baixou
O general quando soube
Que Calar era sumido
E que fazia três dias
Que não era aparecido
Mandou gente procurá-lo
Ficando muito sentido
Saíram cinco ou seis praças
Em procura de Calar
O general tinha dito
Não voltem sem o achar
Tragam ele direitinho
Não o façam maltratar
Os praças foram ao lugar
Onde o crime tinha havido
Onde a família Oliveira
Tinha toda sucumbido
Bem no pé duma das cruzes
Tinha o velho cão morrido
Tinha posto termo a vida
O maior dos lutadores
O que em sua existência
Viu o horror dos horrores
Que sem falar descobriu
Quem matou os seus senhores
O general quando soube
Da forma que o tinham achado
Mandou fazer uma cova
E nela foi enterrado
Um dos amigos mais firmes
Que no mundo foi criado
E nas mortes dos senhores
Ele afirmou ter ação
Provou que tinha amizade
Ao velho Sebastião
A morte só foi vingada
Por sua perseguição
Só não fez foi dizer nada
Mas provou por sua vez
Apontou só com a vista
O monstro que os crimes fez
Seus olhos diziam ao público
Esse matou todos três
Deitou-se encostado às cruzes
Que tinham edificado
Tinha morrido há três dias
E nem sequer estava inchado
Como quem dizia: Agora
Posso morrer estou vingado
Mais de duzentas pessoas
Assistiram enterrar ele
Devido à grande firmeza
Que tinha se visto nele
Muitas flores naturais
Deitaram na cova dele
Agora vejam leitores
Quem era o velho Calar
E como Sebastião
Um dia pôde o achar
Ele tinha cinco dias
O dono ia o matar
Então o velho Oliveira
Achou ser ingratidão
Matar aquele inocente
Embora fosse ele um cão
Porém disse: A caridade
Não se faz só a cristão
E levou-o para casa
Disse à mulher que criasse
Dizendo: Pode ser bom
Algum dia inda caçasse
Quando nada da fazenda
Talvez os bichos espantasse
De fato, Calar criou-se
E era um cão caçador
Maracajá e raposa
Tinha dele tal pavor
Que passava muito longe
Da fazenda do senhor
Era o vigia da noite
Um minuto não dormia
Numa coisa que guardava
O velho cão não bulia
Só quando os donos lhe davam
Era que ele se servia
A família do Oliveira
Às vezes a conversar
A velha dizia aos filhos:
Esse cachorro Calar
Tem expressões de pessoa
Que conhece seu lugar
Em casa do dono ele
De noite nada chegava
Um bacurau que voasse
Ele se erguia e ladrava
Do poleiro das galinhas
Até coruja espantava
Como era muito bom
O dono sempre caçava
Porém a vizinho algum
A noite acompanhava
E só ia para o mato
Quando o senhor lhe chamava
Depois de terem morrido
Os senhores de Calar
O pobre cão toda noite
Ia para aquele lugar
Olhava para as três cruzes
Levava a noite a uivar
Latia e fitava o céu
Que causava pena e dó
Via sangue no capim
Ele cobria com pó
Não queria ir para casa
Passava a noite ali só
O velho Pedro dos Anjos
Vizinho de Sebastião
Achou que aquele animal
Merecia compaixão
Chamou-o para não vê-lo
Morrer sem ter remissão
O velho Pedro caçava
Toda noite com Calar
Mas ele só ia à caça
Depois que ia ao lugar
Aos pés daquelas três cruzes
Não deixava de uivar
Assim morreu o Calar
Ficou também descansado
Era um cão porém deixou
O nome imortalizado
Morreu depois de livrar
Quem já o tinha livrado
Leitor não levantei falso
Escrevi o que se deu
Acreditem que este fato
Na Bahia aconteceu
Depois de lutar então
Rolou Calar sobre o chão
Onde seu senhor morreu
Juazeiro, 19 de janeiro de 1960


CORDEL PEDRO CEM


PEDRO CEM
Vou narrar agora um fato
Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu
Fortuna como aquela
Ainda não apareceu
Pedro Cem era o mais rico
Que nasceu em Portugal
Sua fama enchia o mundo
Seu nome andava em geral
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real
Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais rico que havia
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia
Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar
Cem lanchas e cem barcaças
Tudo isso a navegar
Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias
Cem depósitos de fazenda
Cem moinhos, cem padarias
E tinha dentro do mar
Cem currais de pescaria
Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados
Ocupavam mensalmente
Dezesseis mil empregados


Diz a história onde li
O todo desse passado
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado
Não olhava para um pobre
Nem falava com criado
Uma noite ele sonhou
Que um rapaz lhe avisava
Que aquele orgulho dele
Era quem o castigava
Aquela grande fortuna
Assim como veio, voltava
Ele acordou agitado
Pelo sonho que tinha tido,
Que rapaz seria aquele
Que lhe tinha aparecido?
Depois pensou: — Ora, sonho
É ilusão do sentido!
Um dia no meio da praça
Ele uma moça encontrou
Essa vinha quase nua
Nos seus pés se ajoelhou
Dizendo: — Senhor, olhai
O estado em que estou…
Ele torceu para um lado
E disse: — Minha senhora,
Olhe a sua posição
E veja o que fez agora.
Reconheça o seu lugar,
Levante-se e vá embora!
— Oh! Senhor! Por este sol,
Que de tão alto flutua,
Lembrai-vos que tenho fome
Estou aqui quase nua
Sou obrigada a passar
Nesse estado em plena rua!
Ele repleto de orgulho
Nem deu ouvido, saiu
E a pobre ergueu-se chorando
Chegou adiante, caiu
Vinha passando uma dama
Que com seu mato a cobriu
Era a marquesa de Évora
Uma alma lapidada.
Tirando seu rico manto
Cobriu essa desgraçada
Ela conheceu que a pobre,
Foi pela fome prostrada.
Levante-se, minha filha!
E pegou-lhe pela mão,
Dizendo à criada dela:
— Vá ali comprar um pão
Que a essa pobre infeliz,
Faltou-lhe alimentação.
Entregando-lhe uma bolsa
Com 42 mil réis,
Apenas tirou dali
Um diploma e uns papéis,
Não consentindo que a moça
Se ajoelhasse a seus pés.
E com aquela quantia
Ela comprou um tear
Tinha mais duas irmãs
Foram as três trabalhar
Dali em diante mais nunca
Faltou-lhe com que passar.
Vamos agora tratar
Pedro Cem como ficou
E o nervoso que sentia
Uma noite em que sonhou
Que um homem lhe apareceu
Disse: — Olhe bem quem sou!
— Que tens feito do dinheiro,
Que me tomaste emprestado?
Meu senhor manda saber
Em que o tens empregado
E por qual razão não cumpre
As ordens que ele tem dado…
Ele perguntou no sono:
Mas que dinheiro tomei?
Até aos próprios monarcas
Dinheiro muito emprestei;
O vulto zombando dele
Disse: Que tu és eu sei.
— Que capital tinha tu
Quando chegaste ao mundo?
Chegaste nu e descalço
Como o bicho mais imundo
Hoje queres ser tão nobre
Sendo um simples vagabundo.
E metendo a mão no bolso
Tirou dele uma mochila
Dizendo: é essa a fortuna
Que tu hás de possuí-la
Farás dela profissão
Pedindo de vila em vila.
Pedro Cem zombando disse:
— Vai agoureira, te some
Tua presença me perturba,
Tua frase me consome,
De qual mundo tu vieste?
Diz-me por favor teu nome?!
— Meu nome, disse-lhe o vulto,
És indigno de saber,
Meu grande superior
Proibiu-me de dizer
Apenas faço o serviço
Que ele mandou fazer.
Despertando Pedro Cem
Daquilo contrariado;
Ter dois sonhos quase iguais
Ficou impressionado,
Resolveu contrafazer
E ficar reconcentrado.
Pensou em tirar por ano
Daquela grande riqueza
Sessenta contos de réis
E dar de esmola a pobreza
Depois, refletindo, disse:
Não se dá maior fraqueza.
Porque ainda que Deus
Querendo me castigar
Não afundará num dia
Meus cem navios no mar
As cem fazendas de gado
Custarão a se acabar
As cem fábricas de tecidos
Que tenho funcionando,
E os parreirais de uvas
Que estão todos safrejando,
Cem botes que tenho no porto
Todo dia trabalhando.
Cem armazéns de fazenda,
As cem alfaiatarias,
As cem fundições de ferro,
Cem currais de pescarias,
As cem casas alugadas,
Cem moinhos, cem padarias.
E as centenas de contos
Nos bancos depositados,
E tudo isso em poder
De homens acreditados,
Ainda Deus querendo isso
Seus planos serão errados.
Pedro Cem naquela hora
Estava impressionado
Quando aproximou-se dele
O seu primeiro criado
E disse: — Aí tem um homem
Diz vos trazer um recado.
— Mande que entre a pessoa!
(Ele ao criado ordenou)
era um marinheiro velho,
chegando ali o saudou.
— Que nova traz, meu amigo?
Pedro Cem lhe perguntou.
Disse o velho marinheiro:
— Venho vos participar,
Que dez navios dos vossos
Ontem afundaram no mar
Morreram as tripulações
Só eu pude me salvar.
— Que navios foram esses?
Perguntou-lhe Pedro Cem.
Respondeu-lhe o marinheiro:
— Foi “Tejo” e “Jerusalém”,
O “Douro” e o “Penafiel”
E os outros eu não sei bem.
Aquele ainda estava ali
Outro portador bateu
O empregado das vacas
Contou o que sucedeu
Incendiaram o mercado
E todo gado morreu
Pedro Cem nada dizia
Ficando silencioso.
Apenas disse: — Na terra
Não há homem venturoso,
Quem se julgar mais feliz,
É pior que cão leproso.
Chegou outro portador
O empregado da vinha,
Disse: — O depósito estourou
Vazou o vinho que tinha
Pedro Cem disse: Meu Deus,
Que sorte triste esta minha!
Saiu aquele entrou outro,
Um cônsul norueguês
Disse: — Nos mares do norte
Andava um pirata inglês,
Noventa navios vossos
Tomou ele de uma vez!
Meu Deus! Meu Deus! O que fiz?
Exclamava Pedro Cem,
Não há homem nesse mundo
Que possa dizer: — Vou bem,
Quando menos ele espera
A negra desgraça vem!
Dos cem navios que tinha
Alguns foram afundados
E outros pelos piratas
Nos mares foram tomados!
Acrescentou a pessoa:
Vinham todos carregados.
Ali mesmo vinha o mestre
Do navio “Flor do Mundo”
Esse fitou Pedro Cem
Com um silêncio profundo
Depois disse: Sr. Marquês,
Dez barcaças foram ao fundo.
Quatro vinham carregadas
Com bacalhau e azeite,
Duas vinham da Suécia
Com queijo, manteiga e leite,
De todas mercadorias
Não tem uma que aproveite.
Quatro dos dez que afundaram
Traziam pérolas e metal
Só da Ilha da Madeira
Vinha um milhão de coral
Topázio, rubi, brilhante,
Ouro, esmeralda e cristal.
Pedro Cem baixou a vista
Nada pôde refletir
Exclamou: Que faço eu?
Devo deixar de existir,
Mas matando-me não vejo
Isso onde pode ir!
Chegou o moço do campo
Tremendo muito assustado
E disse: Senhor Marquês,
Venho aqui horrorizado,
Deu morrinha nas ovelhas
E mal triste em todo gado
Naquele momento entrou
Um rapaz auxiliar
Esse puxando um papel
Disse: — Venho reclamar
Tudo quanto se perdeu
Na barca “Ares do Mar”
Pedro Cem perguntou: Quanto?
Tirou o moço uns papéis
Que se lia, entre brilhantes
Pulseiras, colares, anéis
Um milhão e quatrocentos
E vinte e contos de réis.
Entrou outro auxiliar
Disse: Eu quero o pagamento,
Por tudo que se perdeu
No navio “Chave do Vento”
Que vinha da América do Norte
Com grande carregamento.
Chegou um tabelião
— Dá licença, senhor Marquês?
Venho lhe participar
Que o grande banco francês
Dois alemães e três suíços
Quebraram todos de vez.
— Lá se foi minha fortuna!
(exclamava Pedro Cem)
Ontem fui milionário
Hoje não tenho um vintém
Só mesmo na campa fria
Eu hoje estaria bem!
Dando balanço nos bens
Quis até desesperar
Tudo quanto possuía
Não dava para pagar
Nem pela décima parte
Os prejuízos do mar.
Exclamava: Oh! Pedro Cem,
Que será de ti agora?!
O pouco que me restava
A justiça fez penhora!
Pedro Cem de agora em diante
Vai errar de mundo a fora!
Cumprir esta sorte dura
Que a desventura me deu
Talvez muitas vezes vendo
Aquilo que já foi meu
Em lugar que não se saiba
Quem neste mundo fui eu.
Ali no terraço mesmo
Forrando o chão se deitou
Às onze e meia da noite,
No sono conciliou,
No sono sonhando viu
O rapaz que lhe falou.
Aquele perguntou: Pedro,
Como se foi na empresa?
Já estais conhecendo agora
Quanto é grande a natureza?
Conheceste que teu orgulho
Foi quem te fez a surpresa?
Metendo a mão na algibeira
Dali um quadro tirou
Onde havia dois retratos
Que a Pedro Cem mostrou
— Conheces estes retratos?
O rapaz lhe perguntou.
Via-se naquele quadro
Uma dama bem vestida
Pedro Cem disse no sonho:
Esta é minha conhecida,
A outra uma pobre moça,
Como fome, no chão caída?
Perguntou-lhe o rapaz:
Quem é essa conhecida?
— É a marquesa de Évora,
E esta, que está caída?
— Essa é uma miserável,
Dessa classe desvalida.
O rapaz puxou outro quadro
Verde da cor da esperança
Onde se via um monarca
Suspendendo uma balança
Estava pesando nela
Caridade e confiança.
Mostrou-lhe mais 4 quadros
Que Pedro Cem conheceu,
Tinha a marquesa de Évora
Quando a bolsa a pobre deu,
Que estirou a mão dizendo:
— Toma o dinheiro que é teu.
No quadro via-se um anjo
Assim nos diz a história,
Com uma flor onde lia-se:
“Jardim da Eterna Glória”
presenteada por Deus
esta palma da vitória.
Quem planta flores, tem flores
Quem planta espinho tem espinho
Deus mostra ao espírito fraco
O que nega ao mesquinho
A virtude é um negócio
Boa ação um pergaminho
Depois que ele acordou
Triste e impressionado
Interrogava a si próprio:
— Porque sou tão desgraçado?
Achou de lado a mochila,
A que ele havia sonhado.
— Será esta a tal mochila
Que o fantasma me mostrou?
É esse o homem que em sonho
Em desespero exclamou,
Na noite que a cruel sina,
Em sonho me visitou?
De tudo restava apenas
A casa de moradia
Essa mesma embargaram
Antes de findar-se o dia,
Então disse Pedro Cem:
— Cumpriu-se a tal profecia!
Lançando mão da mochila
Saiu no mundo a vagar
Implorando a caridade,
Sem alguém nada lhe dar
Por umas 5 ou 6 vezes
Tentou se suicidar.
Ele dizia nas portas:
Uma esmola a Pedro Cem
Que já foi capitalista
Ontem teve, hoje não tem
A quem já neguei esmola
Hoje a mim nega também.
Foi ele cair com fome,
Na casa daquela moça
Quando foi a porta dele
Com fome, fria e sem força
Que ele não quis olhá-la
E a marquesa deu-lhe a bolsa.
A criada o viu cair,
Exclamou: — Minha senhora,
Anda ver um miserável,
Que caiu de fome agora!
— Onde? Perguntou a moça,
Ana lhe disse: ali fora!
A moça disse à criada
Que trouxesse leite e pão
Aproximou-se dele
Disse: O que tens, meu irmão?
Bateste em todas as portas,
Não encontraste um cristão?
Senhora! Se vós soubesse
Quem é este desgraçado,
Não abriria a porta
Nem dava esse bocado,
Respondeu ela: O conheço,
Porém esqueço o passado.
Recordo-me que a marquesa
Fez minha felicidade,
Viu-me caída, com fome,
Teve de mim piedade,
Deu-me com que comprar pão
E esta propriedade.
Pedro Cem se levantou,
Disse: Obrigado, e saiu
Andando duzentos passos
Tombou em terra e caiu
E umas frases tocantes
Em alta voz proferiu:
Vai unir-se a terra fria
O que não soube viver,
Soube ganhar a fortuna
Mas não a soube perder,
Se tenho estudado a vida
Tinha aprendido a viver.
Foi como a corrente d’água,
Que pela serra desceu
Chegou o verão secou
Ela desapareceu
Ficando só os escombros
Por onde a água correu!
Eu tive tanta fortuna,
Não socorri a ninguém,
E todos que me pediram
Eu nunca dei um vintém,
Hoje eu preciso pedir,
Não há quem me dê também!
Não desespero, pois sei
Que grande crime expio
Nasci em berço dourado
Dormi em colchão macio
Hoje morro como os brutos,
Neste chão sujo e frio…
Foram as últimas palavras
Que ele ali pronunciou
Margarida, aquela moça
Que a marquesa embrulhou
Botou-lhe a vela na mão
Ali mesmo ele expirou.
A Justiça examinando
Os bolsos de Pedro Cem
Encontrou uma mochila
E dentro dela um vintém
E um letreiro que dizia:
“Ontem teve, hoje não tem.”
por Leandro Gomes de Barros.