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domingo, 19 de abril de 2020

CORDEL PEDRO CEM


PEDRO CEM
Vou narrar agora um fato
Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu
Fortuna como aquela
Ainda não apareceu
Pedro Cem era o mais rico
Que nasceu em Portugal
Sua fama enchia o mundo
Seu nome andava em geral
Não casou-se com rainha
Por não ter sangue real
Em prédios, dinheiro e bens
Era o mais rico que havia
Nunca deveu a ninguém
Todo mundo lhe devia
Balanço em sua fortuna
Querendo dar não podia
Em cada rua ele tinha
Cem casas para alugar
Tinha cem botes no porto
E cem navios no mar
Cem lanchas e cem barcaças
Tudo isso a navegar
Tinha cem fábricas de vinho
E cem alfaiatarias
Cem depósitos de fazenda
Cem moinhos, cem padarias
E tinha dentro do mar
Cem currais de pescaria
Em cada país do mundo
Possuía cem sobrados
Em cada banco ele tinha
Cem contos depositados
Ocupavam mensalmente
Dezesseis mil empregados


Diz a história onde li
O todo desse passado
Que Pedro Cem nunca deu
Uma esmola a um desgraçado
Não olhava para um pobre
Nem falava com criado
Uma noite ele sonhou
Que um rapaz lhe avisava
Que aquele orgulho dele
Era quem o castigava
Aquela grande fortuna
Assim como veio, voltava
Ele acordou agitado
Pelo sonho que tinha tido,
Que rapaz seria aquele
Que lhe tinha aparecido?
Depois pensou: — Ora, sonho
É ilusão do sentido!
Um dia no meio da praça
Ele uma moça encontrou
Essa vinha quase nua
Nos seus pés se ajoelhou
Dizendo: — Senhor, olhai
O estado em que estou…
Ele torceu para um lado
E disse: — Minha senhora,
Olhe a sua posição
E veja o que fez agora.
Reconheça o seu lugar,
Levante-se e vá embora!
— Oh! Senhor! Por este sol,
Que de tão alto flutua,
Lembrai-vos que tenho fome
Estou aqui quase nua
Sou obrigada a passar
Nesse estado em plena rua!
Ele repleto de orgulho
Nem deu ouvido, saiu
E a pobre ergueu-se chorando
Chegou adiante, caiu
Vinha passando uma dama
Que com seu mato a cobriu
Era a marquesa de Évora
Uma alma lapidada.
Tirando seu rico manto
Cobriu essa desgraçada
Ela conheceu que a pobre,
Foi pela fome prostrada.
Levante-se, minha filha!
E pegou-lhe pela mão,
Dizendo à criada dela:
— Vá ali comprar um pão
Que a essa pobre infeliz,
Faltou-lhe alimentação.
Entregando-lhe uma bolsa
Com 42 mil réis,
Apenas tirou dali
Um diploma e uns papéis,
Não consentindo que a moça
Se ajoelhasse a seus pés.
E com aquela quantia
Ela comprou um tear
Tinha mais duas irmãs
Foram as três trabalhar
Dali em diante mais nunca
Faltou-lhe com que passar.
Vamos agora tratar
Pedro Cem como ficou
E o nervoso que sentia
Uma noite em que sonhou
Que um homem lhe apareceu
Disse: — Olhe bem quem sou!
— Que tens feito do dinheiro,
Que me tomaste emprestado?
Meu senhor manda saber
Em que o tens empregado
E por qual razão não cumpre
As ordens que ele tem dado…
Ele perguntou no sono:
Mas que dinheiro tomei?
Até aos próprios monarcas
Dinheiro muito emprestei;
O vulto zombando dele
Disse: Que tu és eu sei.
— Que capital tinha tu
Quando chegaste ao mundo?
Chegaste nu e descalço
Como o bicho mais imundo
Hoje queres ser tão nobre
Sendo um simples vagabundo.
E metendo a mão no bolso
Tirou dele uma mochila
Dizendo: é essa a fortuna
Que tu hás de possuí-la
Farás dela profissão
Pedindo de vila em vila.
Pedro Cem zombando disse:
— Vai agoureira, te some
Tua presença me perturba,
Tua frase me consome,
De qual mundo tu vieste?
Diz-me por favor teu nome?!
— Meu nome, disse-lhe o vulto,
És indigno de saber,
Meu grande superior
Proibiu-me de dizer
Apenas faço o serviço
Que ele mandou fazer.
Despertando Pedro Cem
Daquilo contrariado;
Ter dois sonhos quase iguais
Ficou impressionado,
Resolveu contrafazer
E ficar reconcentrado.
Pensou em tirar por ano
Daquela grande riqueza
Sessenta contos de réis
E dar de esmola a pobreza
Depois, refletindo, disse:
Não se dá maior fraqueza.
Porque ainda que Deus
Querendo me castigar
Não afundará num dia
Meus cem navios no mar
As cem fazendas de gado
Custarão a se acabar
As cem fábricas de tecidos
Que tenho funcionando,
E os parreirais de uvas
Que estão todos safrejando,
Cem botes que tenho no porto
Todo dia trabalhando.
Cem armazéns de fazenda,
As cem alfaiatarias,
As cem fundições de ferro,
Cem currais de pescarias,
As cem casas alugadas,
Cem moinhos, cem padarias.
E as centenas de contos
Nos bancos depositados,
E tudo isso em poder
De homens acreditados,
Ainda Deus querendo isso
Seus planos serão errados.
Pedro Cem naquela hora
Estava impressionado
Quando aproximou-se dele
O seu primeiro criado
E disse: — Aí tem um homem
Diz vos trazer um recado.
— Mande que entre a pessoa!
(Ele ao criado ordenou)
era um marinheiro velho,
chegando ali o saudou.
— Que nova traz, meu amigo?
Pedro Cem lhe perguntou.
Disse o velho marinheiro:
— Venho vos participar,
Que dez navios dos vossos
Ontem afundaram no mar
Morreram as tripulações
Só eu pude me salvar.
— Que navios foram esses?
Perguntou-lhe Pedro Cem.
Respondeu-lhe o marinheiro:
— Foi “Tejo” e “Jerusalém”,
O “Douro” e o “Penafiel”
E os outros eu não sei bem.
Aquele ainda estava ali
Outro portador bateu
O empregado das vacas
Contou o que sucedeu
Incendiaram o mercado
E todo gado morreu
Pedro Cem nada dizia
Ficando silencioso.
Apenas disse: — Na terra
Não há homem venturoso,
Quem se julgar mais feliz,
É pior que cão leproso.
Chegou outro portador
O empregado da vinha,
Disse: — O depósito estourou
Vazou o vinho que tinha
Pedro Cem disse: Meu Deus,
Que sorte triste esta minha!
Saiu aquele entrou outro,
Um cônsul norueguês
Disse: — Nos mares do norte
Andava um pirata inglês,
Noventa navios vossos
Tomou ele de uma vez!
Meu Deus! Meu Deus! O que fiz?
Exclamava Pedro Cem,
Não há homem nesse mundo
Que possa dizer: — Vou bem,
Quando menos ele espera
A negra desgraça vem!
Dos cem navios que tinha
Alguns foram afundados
E outros pelos piratas
Nos mares foram tomados!
Acrescentou a pessoa:
Vinham todos carregados.
Ali mesmo vinha o mestre
Do navio “Flor do Mundo”
Esse fitou Pedro Cem
Com um silêncio profundo
Depois disse: Sr. Marquês,
Dez barcaças foram ao fundo.
Quatro vinham carregadas
Com bacalhau e azeite,
Duas vinham da Suécia
Com queijo, manteiga e leite,
De todas mercadorias
Não tem uma que aproveite.
Quatro dos dez que afundaram
Traziam pérolas e metal
Só da Ilha da Madeira
Vinha um milhão de coral
Topázio, rubi, brilhante,
Ouro, esmeralda e cristal.
Pedro Cem baixou a vista
Nada pôde refletir
Exclamou: Que faço eu?
Devo deixar de existir,
Mas matando-me não vejo
Isso onde pode ir!
Chegou o moço do campo
Tremendo muito assustado
E disse: Senhor Marquês,
Venho aqui horrorizado,
Deu morrinha nas ovelhas
E mal triste em todo gado
Naquele momento entrou
Um rapaz auxiliar
Esse puxando um papel
Disse: — Venho reclamar
Tudo quanto se perdeu
Na barca “Ares do Mar”
Pedro Cem perguntou: Quanto?
Tirou o moço uns papéis
Que se lia, entre brilhantes
Pulseiras, colares, anéis
Um milhão e quatrocentos
E vinte e contos de réis.
Entrou outro auxiliar
Disse: Eu quero o pagamento,
Por tudo que se perdeu
No navio “Chave do Vento”
Que vinha da América do Norte
Com grande carregamento.
Chegou um tabelião
— Dá licença, senhor Marquês?
Venho lhe participar
Que o grande banco francês
Dois alemães e três suíços
Quebraram todos de vez.
— Lá se foi minha fortuna!
(exclamava Pedro Cem)
Ontem fui milionário
Hoje não tenho um vintém
Só mesmo na campa fria
Eu hoje estaria bem!
Dando balanço nos bens
Quis até desesperar
Tudo quanto possuía
Não dava para pagar
Nem pela décima parte
Os prejuízos do mar.
Exclamava: Oh! Pedro Cem,
Que será de ti agora?!
O pouco que me restava
A justiça fez penhora!
Pedro Cem de agora em diante
Vai errar de mundo a fora!
Cumprir esta sorte dura
Que a desventura me deu
Talvez muitas vezes vendo
Aquilo que já foi meu
Em lugar que não se saiba
Quem neste mundo fui eu.
Ali no terraço mesmo
Forrando o chão se deitou
Às onze e meia da noite,
No sono conciliou,
No sono sonhando viu
O rapaz que lhe falou.
Aquele perguntou: Pedro,
Como se foi na empresa?
Já estais conhecendo agora
Quanto é grande a natureza?
Conheceste que teu orgulho
Foi quem te fez a surpresa?
Metendo a mão na algibeira
Dali um quadro tirou
Onde havia dois retratos
Que a Pedro Cem mostrou
— Conheces estes retratos?
O rapaz lhe perguntou.
Via-se naquele quadro
Uma dama bem vestida
Pedro Cem disse no sonho:
Esta é minha conhecida,
A outra uma pobre moça,
Como fome, no chão caída?
Perguntou-lhe o rapaz:
Quem é essa conhecida?
— É a marquesa de Évora,
E esta, que está caída?
— Essa é uma miserável,
Dessa classe desvalida.
O rapaz puxou outro quadro
Verde da cor da esperança
Onde se via um monarca
Suspendendo uma balança
Estava pesando nela
Caridade e confiança.
Mostrou-lhe mais 4 quadros
Que Pedro Cem conheceu,
Tinha a marquesa de Évora
Quando a bolsa a pobre deu,
Que estirou a mão dizendo:
— Toma o dinheiro que é teu.
No quadro via-se um anjo
Assim nos diz a história,
Com uma flor onde lia-se:
“Jardim da Eterna Glória”
presenteada por Deus
esta palma da vitória.
Quem planta flores, tem flores
Quem planta espinho tem espinho
Deus mostra ao espírito fraco
O que nega ao mesquinho
A virtude é um negócio
Boa ação um pergaminho
Depois que ele acordou
Triste e impressionado
Interrogava a si próprio:
— Porque sou tão desgraçado?
Achou de lado a mochila,
A que ele havia sonhado.
— Será esta a tal mochila
Que o fantasma me mostrou?
É esse o homem que em sonho
Em desespero exclamou,
Na noite que a cruel sina,
Em sonho me visitou?
De tudo restava apenas
A casa de moradia
Essa mesma embargaram
Antes de findar-se o dia,
Então disse Pedro Cem:
— Cumpriu-se a tal profecia!
Lançando mão da mochila
Saiu no mundo a vagar
Implorando a caridade,
Sem alguém nada lhe dar
Por umas 5 ou 6 vezes
Tentou se suicidar.
Ele dizia nas portas:
Uma esmola a Pedro Cem
Que já foi capitalista
Ontem teve, hoje não tem
A quem já neguei esmola
Hoje a mim nega também.
Foi ele cair com fome,
Na casa daquela moça
Quando foi a porta dele
Com fome, fria e sem força
Que ele não quis olhá-la
E a marquesa deu-lhe a bolsa.
A criada o viu cair,
Exclamou: — Minha senhora,
Anda ver um miserável,
Que caiu de fome agora!
— Onde? Perguntou a moça,
Ana lhe disse: ali fora!
A moça disse à criada
Que trouxesse leite e pão
Aproximou-se dele
Disse: O que tens, meu irmão?
Bateste em todas as portas,
Não encontraste um cristão?
Senhora! Se vós soubesse
Quem é este desgraçado,
Não abriria a porta
Nem dava esse bocado,
Respondeu ela: O conheço,
Porém esqueço o passado.
Recordo-me que a marquesa
Fez minha felicidade,
Viu-me caída, com fome,
Teve de mim piedade,
Deu-me com que comprar pão
E esta propriedade.
Pedro Cem se levantou,
Disse: Obrigado, e saiu
Andando duzentos passos
Tombou em terra e caiu
E umas frases tocantes
Em alta voz proferiu:
Vai unir-se a terra fria
O que não soube viver,
Soube ganhar a fortuna
Mas não a soube perder,
Se tenho estudado a vida
Tinha aprendido a viver.
Foi como a corrente d’água,
Que pela serra desceu
Chegou o verão secou
Ela desapareceu
Ficando só os escombros
Por onde a água correu!
Eu tive tanta fortuna,
Não socorri a ninguém,
E todos que me pediram
Eu nunca dei um vintém,
Hoje eu preciso pedir,
Não há quem me dê também!
Não desespero, pois sei
Que grande crime expio
Nasci em berço dourado
Dormi em colchão macio
Hoje morro como os brutos,
Neste chão sujo e frio…
Foram as últimas palavras
Que ele ali pronunciou
Margarida, aquela moça
Que a marquesa embrulhou
Botou-lhe a vela na mão
Ali mesmo ele expirou.
A Justiça examinando
Os bolsos de Pedro Cem
Encontrou uma mochila
E dentro dela um vintém
E um letreiro que dizia:
“Ontem teve, hoje não tem.”
por Leandro Gomes de Barros.


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