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domingo, 23 de junho de 2024

O MENINO MARROM - ATIVIDADES

 

O  MENINO MARROM

          Era uma vez um menino marrom. Ele era um menino muito bonito. Acho que dá para se ter uma ideia pelo desenho (que está logo aí, na virada da página). Caprichei no desenho do menino, mas acho que ele era muito mais bonito pessoalmente. Vou ter até que ajudar com algumas informações, que é para a descrição do menino marrom ficar mais completa.

        Sua pele era cor de chocolate. Chocolate puro, não aqueles misturados com leite (não gosto de chocolate com leite, daí achar a cor do chocolate puro mais bonita).

        Os olhos dele eram muito vivos, grandes. As bolinhas dos olhos pareciam duas jabuticabas: pretinhas. Aliás, pretinhas, não, Jabuticabas não são pretas. Para falar a verdade, tem muita pouca coisa, realmente preta na Natureza.

        Se você for examinar bem a jabuticaba, descobrira que ela é roxa muito preta. Preta mesmo, não é. Mas deve ter coisas pretas muito pretas na Natureza. Que tal cabelo de gente? Olha, dizem os estudiosos e especialistas que não existe cabelo humano absolutamente preto. Você sabia?

         Ah tem pelo de animal! A pantera é preta, as manchas do couro de boi são pretas, o gato preto é preto. E pretas são as asas da graúna, como são as do urubu, as do  anum, as do condor e as do assum preto.

        E no Reino Vegetal, o que é que tem que é preto mesmo, absoluto? Aquele olhinho  do fruto do guaraná, acho que é preto de verdade. E tem o azeviche. Vocês conhecem aquela canção que diz “Boneca de Piche, da  jabuticaba, cor do azeviche..?"

        Pois é, azeviche deve ser preto mesmo pois o Lamartine Babo — autor da música — não iria mentir pra gente. Mas... espera aí: azeviche não é vegetal. Ou é: Bom: o que parece preto mesmo, preto definitiva na Natureza, é o carvão. Fica assim: o carvão é o preto absoluto, pronto.   

        E vamos deixar de ficar falando neste negócio de preto, pois a nossa história é do menino marrom.

        Entrei nessa do preto, de repente, porque este assunto vai rolar daqui a pouco. Só que é um assunto do menino marrom e não meu.

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        Como diria o riacho imitando o espelho: "Que menino é esse aí?' Pois é o menino marrom. E vamos tratar de terminar sua descrição para que vocês o conheçam melhor. Já falei dos seus dentes? Ihhh, vai começar outra longa conversa para explicar que não existem dentes absolutamente brancos. E realmente, não existem. Se você ficasse com a boca cheia de dentes brancos como a neve, você iria ficar ridículo, parecendo um vampiro sem presas.

        Quando os dentes são o mais próximo do branco, a gente diz que eles são clarinhos. Aliás, até repete: "Clarinhos, clarinhos!"

        Pois o menino marrom tinha os dentes claros, certinhos, certinhos. Pareciam as teclas de um piano, sem as cáries (vocês sabem: os bemóis e os sustenidos são as cáries do piano).

        Quando o menino ria, era aquela luz no meio do seu rosto marrom. O branco dos olhos diminuía, ficavam aqueles dois tracinhos assim, no lugar dos olhos: um traço de cada lado do nariz. Mas o brilho das duas jabuticabas permanecia.

        Os cabelos eram enroladinhos e fofos. Pareciam uma esponja. Logo depois do banho, quando seus cabelos secavam, era um prazer ficar fazendo assim, com os dedos em gancho, fofando a cabecinha do menino marrom. Sempre achei que seus cabelos eram pretíssimos. Mas, um dia, um amigo, especialista em identificação do Instituto Félix Pacheco, me disse "Não existem  cabelos humanos absolutamente pretos, você sabia?"

        Falta descrever as bochechas do menino marrom, seu queixinho pontudo, sua testa alta, bem redonda, tudo harmoniosamente organizado no seu rosto. E, finalmente, falta descrever seu nariz. Nariz de menino marrom nunca é pontudinho. Ele cresce mais para os lados do que para a frente. O do menino marrom era feito de três bolinhas surgidas assim, de repente, no meio do rosto. Uma bolinha maiorzinha no meio e duas menorzinhas, uma de cada lado, em volta das narinas. Um desenho perfeito.

        Deixei o nariz para o final   porque o nariz do menino marrom tinha uma qualidade especial. Tem gente que exprime suas emoções através dos olhos. Outros se revelam nos movimentos dos lábios. Tem pessoas até que ficam mexendo com a boca, sem perceber, fazendo todos os movimentos dos lábios de quem está contando um caso emocionante para elas; se espantam, sorriem, xingam, choram, sem fazer qualquer barulhinho. Tem outras que se emocionam só com os músculos do rosto. Vocês já notaram? O olho fica parado, a boca também, tudo no seu lugar, imóvel, só os músculos da face é que se movem, o maxilar fica se mexendo Como água de piscina, comprimido pelos dentes (morro de medo de gente assim). E tem ás pessoas que se, emocionam com o nariz. Levam um susto, prestam atenção ou ficam ansiosas e só movimentam as abichas das ventas. Se ficam muito alegres, as narinas se dilatam sem a pessoa perceber, como se pedissem mais ar, mais alegria.

        Pois é: o menino marrom tinha um nariz muito expressivo.

        No mais, ele era magrinho, de joelhos redondos e perninhas finas – as perninhas dele pareciam aquelas pilastras antigas, o peito era quadradinho

 

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e os ombros, também: um corpo muito bonito de atleta futuro; os pés eram grandes grandes mesmo! — para o tamanho dele. E viviam metidos num velho par de sandálias de dedo. O menino marrom estava tão acostumado com aquelas sandálias que era capaz de jogar futebol com elas, apostar corridas, saltar obstáculos sem que as sandálias desgrudassem de seus pés. Vai ver, elas já faziam parte dele...

 

          Agora, falta falar se ele era alegre ou se era triste, se era um boa praça ou se era  um chatinho. Não, chatinho ele não era. Era, isto sim, muito curioso (e se existe gente grande que não tem paciência com menino perguntador, não é o menino que é o chatinho).

        Confesso que, às vezes, ele exagerava.

        Um dia, na beira da praia, olhou o mar — longamente... — pensou um pouquinho, olhou para a tia que o havia levado à praia e perguntou: "Tia, quando você nasceu já tinha mar?" Esta a tia respondeu na hora, bem zangada. Afinal, ela estava levando o sobrinho à praia porque não tinha filhos nem marido, mas também não era tão velha assim que tivesse visto Deus fazer o mar ou não pudesse mais se casar.

        Todo mundo sabe a hora a em que a criança vira um perguntador permanente. Dizem que ela chegou à idade do por que. Por que a água escorrega? Por que o fogo é quente? Por que eu tenho que ir dormir? Por que eu não tenho irmão? Mãe, por que a sua barriga ficou grande? Pois todas essas perguntas, o menino marrom fez ou fazia. E fazia outras mais complicadas ainda. Um dia ele se chegou para o pai e perguntou: "Pai, quem nasceu primeiro o ovo ou o índio?"

        Se as perguntas do menino marrom eram complicadas, precisava ver as respostas. "Por que você quebrou todas as coisas da mamãe?" E ele: 'E que a senhora deixou o tio tomando conta de mim e ele não tomou direito."

        O menino marrom morria de medo de cachorro. Certa vez, ele vinha passeando na pracinha pela mão de uma prima mais velha, quando viu um cachorrinho vindo em sua direção. Ele segurou a mão da prima e gritou: "Me protege, que eu estou com um medo!!! "Assim mesmo: "Me protege! " Era destamaninho e já falava essas palavras difíceis. A prima, muito pacientemente, explicou para ele que não tinha perigo, que era apenas um cachorrinho indefeso. Aí, apareceu outro cachorro na história. E mais que depressa o menino gritou para a prima: "Socorro, porque agora eu estou com dois medos!"

        E o que o menino marrom inventava em casa? Nem sabia ler ainda e já jogava damas com o pai, às vezes comia quatro pedras em carreirinha.

       Além disso, ele inventava seus próprios jogos, cada um mais maluco do que o outro. E nos jogos que ele inventava, só quem ganhava era ele. Não que os jogos fossem uma grande invenção, nada disso. É que, qualquer resultado que desse, a vitória era dele, pois a regra dos jogos mudavam, sempre, de acordo com a vontade do inventor. Era um prazer prestar atenção nas invenções do menino marrom. Sabe? Eu acho que ele era um menino muito inteligente.

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          Não fique triste aí não, você que está me lendo, achando que o menino marrom era mais inteligente e mais vivo do que você. Não era.

         Sabe como é: vai ver, eu estou exagerando.

         Os autores têm mania de ficar valorizando os seus personagens, falando que eles são os mais valentes, os mais brilhantes, os mais inteligentes, os mais corajosos, os mais nobres e leais.

         Personagens levam muita vantagem sobre as pessoas da vida real. É que o autor pode inventar sempre mil mentiras sobre eles, só para valorizar.

        Todo menino da idade do menino marrom é assim: se ele é feliz, se as pessoas gostam dele e se têm paciência para ouvir suas histórias, ele solta toda a sua vivacidade.

        Menino é mais criativo do que adulto, sabe por quê? Porque adulto já viveu muito e já aprendeu dos outros. Menino tem que inventar, enquanto não aprende.

        Lembro-me de uma vez que minha, filha mais velha tinha assim a idade do menino marrom —ainda não sabia ler, mas já frequentava o jardim — e eu estava passeando com da e a irmãzinha mais nova pela Zona Sul do Rio de janeiro. Aí, ela ia explicando para a irmãzinha — que tinha uns dois anos — tudo o que via. Passamos pela praia e ficamos olhando o mar agitado, com suas ondas quebrando na areia. E a minha filha mais velha explicou: "Isto é mar." A pequenininha entendeu e ficou repetindo: "Mar, mar, mar..."

        Saímos da praia e fomos em direção à Lagoa. Quando a irmãzinha viu a lagoa serena ali na sua frente, disse para a mais velha: "Olha: mais mar! " E ela explicou: "Isto não ê mar. Isto é lagoa. '

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        Fiquei surpreso por ela saber a diferença e perguntei: "Qual é a diferença entre mar e lagoa?" E ela explicou para mim e para a irmã: "E que mar pula e lagoa não pula. "

        Viu? Algum adulto seria capaz de inventar uma diferença dessas?

        Só criança é capaz de observar as coisas com os olhos de primeira vez.

        Você, por exemplo, que já aprendeu muitas coisas, tem que ficar atento: mesmo aprendendo muitas coisas, a gente não deve esquecer nossa capacidade de inventar. Quanto mais a gente sabe, menos moda a gente inventa. O menino marrom ainda estava na idade de inventar muita moda.

        E ninguém inventa moda sozinho.

        É preciso sempre ter um parceiro. O Tom Jobim fez uma canção linda onde ele fala que "é impossível ser feliz sozinho" . Tipo da descoberta de quem aprendeu tudo e manteve ainda a capacidade de descobrir coisas novas, não é? A gente leva um susto quando ouve uma pessoa dizer assim uma coisa que parece que todo mundo sabe mas que ninguém diz. São as pessoas que fazem essas descobertas — das coisas que estão na nossa cara — que a gente chama de poetas. Como o Tom Jobim.

        Pois é: ele sabia — e sabia dizer — que para inventar moda é preciso um parceiro, alguém para soltar aquele riso frouxo, quando só os dois sabem exatamente de que segredo estão falando.

        O menino marrom tinha um parceiro.

        Como diria o riacho, tão festeiro, tão brincante, tão espelho: 'Que menino é este aqui?" Este é um menino cor-de-rosa. Bem, as crianças não são exatamente cor-de-rosa. Elas só têm essa cor em desenhos e em livros infantis. O problema dos poetas é que a cor da pele não tem um nome exato. Quando, por exemplo, faço uma ilustração para um livro e faço o desenho com traços pretos sobre papel branco, eu indico as cores que quero para cada detalhe. E aí, anoto a lápis, do lado, para o técnico da gráfica colorir meu desenho com seu sistema de filmes coloridos.

          Um dia, mandei o desenho de um personagem para ele e marquei do lado as indicações das cores que eu queria: "Quero amarelo na camisa, verde-escuro na calça e cor de pele no menino. " a técnico da gráfica me ligou de volta: "Escuta, o senhor quer cor de pele branca ou cor de pele marrom?

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         Como este menino que entra agora na história era muito clarinho — o mesmo clarinho que serve para indicar dentes brancos serve também para indicar cor de pele — todo mundo achava que ele era cor-de-rosa. Principalmente porque ele tinha o rosto muito coradinho. Que ele era um menino muito bonito, acho que dá para ver pelo desenho, não dá? Tem algumas diferenças do menino marrom. Aliás, tem algumas muitas.

        O cabelo dele era amarelado —mais para amarelo do que para castanho — lisinho como rabo de cavalo, só que muito, muito fino. Caía na testa e dançava com o vento, de tão leve. Os lábios eram fininhos, como um risco debaixo do nariz. O nariz era pontudinho e os olhos eram meio azuis, meio verdes, meio castanhos, dependia do dia. Sua cor mudava da luz da manhã para a tarde, mudava se ele estava na serra, no meio do mato ou na beira da praia, se era dia de chuva ou se era noite de lua. Toda a expressão do menino cor-de-rosa estava nos olhos. Que brilhavam de alegria, quando ele via chegar o menino marrom com as ventinhas do seu nariz se movimentando também, pedindo mais ar.

        Depois da escola — eles estavam numa escola pública, no pré-primário ou no Jardim, não sei bem — os dois voltavam para casa e brincavam o dia inteiro.

        E como inventavam moda!

        Vou contar uma história dos dois, de quando eles ainda estavam aprendendo as primeiras letras. Uma história ótima! Eles já sabiam que A era a, que B era b, que C era c e assim por D, ou melhor, por diante. Nas páginas do livro dos dois tinha lá os desenhos das letras grandes com as pequenininhas do lado. Um dia, o menino cor-de-rosa viu o menino marrom chegar seguro pela mão do pai e, vendo-o assim ao lado dele, disse: "Ei, você é o minúsculo do seu pai!"

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        Quando as mães dos dois contavam as gracinhas dos seus filhos para as vizinhas, a gente nem sabia qual a história que era de um, qual a história que era do outro. Também, não faria diferença: os dois eram parceiros e, numa boa parceirada, tudo é feito junto.

        Aí vocês vão me perguntar: "Mas eles não brigavam nunca?"

        Ah, isto, brigavam. Claro! Imagina os dois juntos o dia inteiro, a cabecinha de cada um funcionando por conta própria, vê se era possível concordarem em tudo?

        Grandes brigas!

        Muito olho roxo, muita unhada, muito soco no peito. E muito cabelo puxado (modalidade em que só o menino marrom levava vantagem).

        A briga mais famosa dos dois — que os deixou separados e de mal por um tempo enorme — foi a histórica briga do "sou mais eu". Toda a. dupla briga esta briga, um dia. Tem sempre a hora da disputa e esta hora pinta assim, sem nenhuma explicação.

         Pois, os dois estavam ali, numa boa, destruindo as peças de um jogo de armar, quando se desentenderam. Acho que isto foi antes de os dois entrarem para o jardim. Deixa ver... Foi, sim. Eles eram bem pequenininhos. De repente, um deles já meio zangado, falou: "Minha camiseta é vermelha e a sua não é!"

        Ah, pra que? Foi um desafio inaceitável. O outro respondeu, na bucha:

        "Meu short é azul, o seu não é. Aí, o caldo entornou:

        "Minha mãe usa óculos, a sua não usa!"

        "Eu tenho um irmãozinho, você não tem!"

        "Eu tenho duas primas, você não tem! "

        "Minha tia é velha, a sua não é!"

        "Eu tenho uma bicicleta, você não tem!"

        "Eu sei assoviar, você não sabe"

         Vocês vêem: a coisa foi ficando da maior gravidade, quase insuportável. A cada provocação, a resposta do outro vinha mais perigosa. Até que um deles bradou a vantagem maior, insuperável:

        "Minha avó morreu, a sua não morreu!"

        Ah, meus filhos, depois desta, só a agressão física! Quando as mães entraram no quarto, os dois rolavam pelo chão, aos berros, fazendo mais barulho que gatos em noite de lua. Pelo menos, os mesmos sons.

        Foram separados, aos prantos, e afastados definitivamente um do outro.

        Foi urna longa separação. Longa e dolorosa. Durou toda uma noite de cansaço dos dois e mais seis horas. No dia seguinte, um apareceu na frente do outro e ficaram só olhando, paradinhos, sem saber o que dizer para a vida recomeçar. Até que o que tinha perdido a parada no dia anterior, se explicou:

        "Mamãe me falou que a minha avó tá: muito doente...”

        E tudo voltou ao que era antes.

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        Eis que estava contando a história desta parceirada para um menino amigo meu, _ antes de completar o livro —, e ele estranhou uma coisa: se a história é dos dois meninos, por que o livro se chama só "O Menino Marrom?"

        Aí, embatuquei. Não tinha percebido que estava contando a história de dois meninos e colocado um só no título do livro.

        Então, pensei: deve ter sido por causa do telefonema do técnico da gráfica. A gente escreve cor-de-pele na indicação e quer que as pessoas adivinhem que cor de pele que é. Como se todos os meninos do mundo, de todas as histórias, tivessem uma cor só.

        Quando me sentei à máquina para contar essa história, tinha decidido que ia escrever a história de um menino marrom. Depois é que o menino cor-de-rosa entrou.

        Vou contar um segredo de autor para vocês. Quando se começa a contar uma história, não fiquem achando que a história vai acabar igualzinho a gente quer. Não vai. Por mais que você invente, de repente, um personagem entra pela página adentro toma o seu lugar e, ó, cadê que você tira de da história?

        Mesmo inventada, a história é que dirige o autor.

        Vê? Agora a história ficou sendo dos dois. Como, porém, a intenção inicial era contar só o lado do menino marrom, deixa o título como está.

        Estava pensando: acho que queria mesmo era contar a história de um menino que fosse muito feliz.

        Não acho graça em infelicidade, embora seja com ela que se faz a melhor literatura. Azar, vou ter que tentar com meninos felizes mesmo!

        Vocês se lembram que citei o verso do Tom Jobim — não é? — quando ele diz que é impossível ser feliz sozinho. Então? O menino cor-de-rosa entra nesta história com a maior naturalidade.

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        Os dois brincavam juntos o dia inteiro, já contei. Muito mais do que brigavam, é claro. Inventavam os brinquedos mais malucos do mundo, as indagações mais inquietantes. Epa!

        Você sabe o que é uma indagação* inquietante?

        Pois é: eles ficavam inventando essas coisas difíceis de explicar. E outras menos complicadas, se bem que muito interessantes.

        Um dia, os dois resolveram descobrir como é que os personagens entravam dentro do vídeo de televisão. Pensam que eles desmontaram o aparelho para descobrir? Tinha graça! Essa seria uma história muito antiga, tipo Wilhelm Busch, um famoso contador de histórias infantis  da Alemanha do século passado. Nada disso. Os dois foram ao Manual de Instruções e à Enciclopédia para entender o problema da transmissão da imagem: a captação pela câmera e a recepção feita pela amplificação da frequência super-heteródina.

         Vocês aguentam?

        É isso: ouvindo conversa de adulto, vendo televisão todo dia, participando da guerra nas estrelas, os meninos de hoje estão sabendo mais do que todo mundo. Para a geração do autor desta história aqui, por exemplo, vocês já estão para lá do Flash Gordon.

        Querem ver? Outro dia mesmo, os dois amigos estavam vendo um filme inter-planetário e apareceu um desses heróis intergaláctico aí, descendo com sua nave num planeta qualquer. O menino marrom então, perguntou iro menino cor-de-rosa: "O homem vai, de verdade, à Lua?"

        E o menino cor-de-rosa respondeu: "Atualmente, não! "

        Assim mesmo: "atualmente, não." E completou: "Eles iam, antigamente."

        E é verdade: antigamente!

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Foi em 1969 — olha quanto tempo faz! — que os homens foram à Lua pela primeira vez e nunca mais ninguém voltou lá.

        Eles — os meninos — viam velozes naves cruzando o espaço sideral, viam brigas intermináveis de gato e rato, viam super-heróis voadores e cheios de superpoderes, viam beijos, abraços e muita paixão na mágica tela da televisão ligada o dia inteiro. Mas, mesmo assim, e por um mistério qualquer/achavam tempo para ficar, horas e horas, folheando os livros de história que ganhavam e mesmo os velhos livros que seus pais tinham — esquecidos — na estante.

        As vezes, quando fazia muito silêncio no quarto, mamãe ia ver, olha os dois deitados no chão entretidos e silenciosos, lendo até mesmo livro sem figuras, só com emoção. Como a história do Robinson Crusoé, por exemplo, comprida história que não acabava mais. E a história ficava mais comprida ainda pois o Sexta-Feira custava a aparecer e eles não podiam imaginar coma é que o Robinson Crusoé aguentava ficar tanto tempo sem um amigo.

        Não sei se eles liam muito porque prestavam atenção em tudo ou se prestavam atenção em tudo porque liam muito...

        Neste tempo aí das leituras, o menino cor-de-rosa já não tinha mais babá, estava crescidinho e ninguém precisa a ficar tornando conta dele. A velha mulher que vivia em sua casa desde os ternpos da mamãe menina tinha 'ido embora e, no lugar dela, havia deixado uma sobrinha que não tinha muito o que fazer. Ela ficava o dia inteiro lendo os velhos livros da coleção "Menina e Moça" e suspirando.

        O namorado dela era o carteiro e este tinha outra mania: a de colecionar o folhetos coloridos do "Círculo do Livro".

        Na casa do menino cor-de-rasa, logo depois da cozinha nos fundos, tinha urna, varanda que dava para um pequeno quintal. Ali, havia uma grande mesa de fórmica, onde os dois amigos passavam boa parte da tarde, lendo, jogando ou fazendo os deveres. De vez em quando os dois soltavam uma ,gargalhada, explodida de repente, como se um maestro dirigisse um afinado coral de apenas dois cantores. E que, na verdade, eles nem sempre estavam prestando atenção nos deveres. Estavam era ouvindo, caladinhos, a conversa pedante e rebuscada da babá com a cozinheira, as duas sentadas na cozinha, naquelas tardes compridas.

         A mocinha, talvez por suas românticas leituras, adorava falar palavras difíceis. E, muitas- vezes, palavras completamente desajeitadas no meio das frases. Os dois, muito debochados, caíam na gargalhada.

        Paravam de rir, fazia-se o maior silêncio na varanda e na cozinha, a conversa das moças recomeçava. Aí, na hora certa, outra risada.

        Aquilo era toda t: um verdadeiro ritual.

        Teve um dia que os dois não riram, quando a moça falou a palavra difícil. Ela estava doidinha pra se casar com o carteiro e, muito pedantezinha, explicou para a cozinheira: "Ele tem todos os ingredientes para ser um bom marido! "

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        Não dá para esquecer a palavra ingredientes no plural, quando se ouve esta palavra pela primeira vez. Ingrediente: grande mistério!

        Os dois largaram o que estavam fazendo — com a gargalhada parada no ar — e correram para o quarto, atrás do dicionário.

        Abrem o dicionário, que aflição! Letra A, não é aqui não, passa, passa, passa o B; não passa esse tanto não, letra M, já passou. L é antes, muito antes; M, L, j, I: aqui. LI, IM, IN, Incêndio, incendioso, é mais pra frente, Incenso, Indagador, o que será? o que será que este noivo tem? Inocência, já passou, volta, volta, é nesta página, inglesia, vira outra, Inglesice, Ingremidade, aqui está: INGREDIENTE.

        Leram o verbete.

        Leram várias vezes.

        E o mistério continuou. Voltaram para a varanda sem saber — e por muito, muito tempo — qual era o mistério do carteiro-noivo da sobrinha da babá. Eles ainda teriam pela frente muitos mistérios pra poder desvendar.

        Agora, preciso saber quando é que foi essa história...

        Não é difícil descobrir. Pelo tipo de coisa que aconteceu aquele dia tia escola, eles já estavam no primeiro grau. Sem dúvida: estavam. Foi uma tarde, os dois brincavam com suas cores, quando o menino marrom misturou todas as tintas que tinha na caixinha de aquarela, todas as cores do arco-íris.

       E ai, sabe o resultado que deu?

       A mistura das cores todas deu um marrom. Um marrom forte como o do chocolate puro. O menino marrom olhou para aquela cor que ele tinha inventado e falou: "Olha aí, é a minha cor!"

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        Os olhinhos do menino cor-de-rosa brilharam como eles brilha suas descobertas. E ele disse: "Sua cor é a soma de todas as cores!"

        O menino marrom ficou todo feliz. Criou sua cor e achou que era bom.

        Justo no dia seguinte, na escola, a tia levou toda a turma para o laboratório do colégio para dar algumas explicações sobre cores. Quando os dois souberam que o assunto era cor, ficaram muito excitados. E que eles iam revelar aos coleguinhas sua grande descoberta.

        "Eu chego e conto?" perguntou o menino cor-de-rosa.

        "Não' disse o menino marrom. "Deixa a professora falar primeiro, depois nós damos o nosso show."

        Eles estavam convencidos de que iriam brilhar na visita ao laboratório da escola. E, enquanto todo mundo ria, falava, mexia nas cores, acendia luzes, desligava projetores, eles estavam caladinhos num canto para fazer a grande revelação na hora exata.

        Aí, chegou a hora.

        A professora resolveu mostrar para eles o Disco de Newton.

        Toda mundo conhece o Disco de Newton, não é verdade?

        Todo mundo já foi ao laboratório da escola, certo? Ou sua escola não tem laboratório?

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        Bem, essa é urna outra história e é o Ministro da Educação que tem que resolver. Deixa a gente contar a nossa, que felizmente tem um laboratório instalado na escola.

        E ali tinha o Disco de Newton.

        O Disco de Newton é o seguinte: um pequeno circulo de metal, plano como um disco comum, dividido em raios (como uma roda de bicicleta). São sete espaços entre os raios, cada espaço com urna das cores do arco-íris. O disco gira em pé, como urna pequena roda-gigante, tocado por uma manivela. Você toca a manivela bem depressa, o disco vai girando, girando e ai, o que é que acontece com as sete cores? O quê?

        Isto é o que os meninos iam descobrir naquela manhã, na escola.

        A professora mostrou o disco para eles — tinha uns meninos tão pequenininhos, tão agitadinhos que nem estavam ligando para aquela história — e perguntou: “Se eu misturar todas essas cores, o que é que elas viram?"

        O menino marrom gritou, rápido: "Viram marrom! " E olhou orgulhoso para os outros. Só que ele esperava aplausos e levou foi o maior susto.

        A professora disse: "Não. " E continuou: " Vejam: eu vou rodar este disco bem depressa e vou misturar todas as cores nesta rodada»

        Prestem atenção, fiquem de olho no disco."

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        E todos prestaram atenção. O disco foi girando, girando, e, de repente, ficou to-do branco. E a professora explicou: "Viram? O branco não é uma cor. O branco é a soma de todas as cores em movimento.”

        "Com esta eu não contava" falou o menino marrom.

        "Nem eu " falou o menino cor-de-rosa.

        Os dois voltaram para casa calados, com a cabecinha fervendo. A coisa tinha ficado desse jeito: se misturar todas as cores e elas não girarem, elas ficam marrom.

        Se misturar todas as cores — em partes iguais — e botá-las para rodar, elas viram o branco.

        Estava tudo assim, quando, de repente, o menino marrom falou para o menino cor-de-rosa:

        "Quer dizer que eu sou todas as cores paradas e você é todas as cores em movimento?"

        O menino cor-de-rosa pensou um pouco e respondeu: "Só tem um detalhe: eu não sou branco!"

        Pronto. Agora, é que as coisas complicaram de vez...

        E voltou aquela discussão: o que é realmente branco na Natureza?

        O tipo da pergunta de menino curioso!

        O técnico do Instituto Félix Pacheco que me desculpe, mas tem cabelo de velhinho que é branco mesmo, branco-omo-total!

        Tem muito pelo de animal: o pelo do urso, o pelo do coelhinho de páscoa, o pelo do porquinho-da-índia. E tem o cálice os lírios e tem as pétalas das rosas — quando as rosas são brancas — e tem as penas do cisne branco, que em noites de lua, vai navegando no lago azul. E, embora nem o menino marrom nem o menino cor-de-rosa jamais tivessem visto — eles sabiam! — tem a neve que é branca, branca.

        Aí, os dois chegaram a uma boa conclusão: a coisa mais preta da Natureza é o carvão e a mais branca é a neve. Se isto não for cientificamente certo, quando vocês crescerem, por favor, façam aí umas pesquisas e me desmintam, está bem?

        Como, porém, os dois acharam que assim estava bom, fica assim.

        E ficou também acenado que gente branca, branca mesmo, também não existe. A não ser em histórias para crianças, como aquela dos sete anões.

        E quando os dois chegaram em casa, estavam encantados com uma nova descoberta: o mundo não é dividido entre pessoas brancas e pretas.

        Mesmo porque, elas não existem.

        O que existe — que boa descoberta! — é gente marrom, marrom-escuro, marrom-claro, avermelhada, cor•de-cobre, cor-de-mel, charuto, parda, castanha, bege, flicts, esverdeada, creme, marfim, amarelada, ocre, café-com-leite, bronze, rosada, cor-de-rosa e todos esses nomes aproximados e compostos das cores e suas variações.

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        Aquela visita ao laboratório deixou os dois, sem dormir por vários dias de tanto que eles matutaram sobre suas descobertas.

        O mais engraçado é que eles não  estavam preocupados com o mistério das misturas, com o fato da mesma mistura dar o branco e dar o marrom.

        Eles estavam despertados para outras coisas.

        Tipo de coisa que acontece, não é? As vezes a gente vê um fato impressionante pela primeira vez e em vez de ficar marcado pelo fato propriamente dito, fica preocupado com outra coisa completamente diferente que nasceu daquele fato.

       Deu pra entender? Vou tentar explicar com uma história que a minha mãe contava.  Ela era menina e a estrada de ferro chegou à cidade onde ela vivia. Meu avô, então, resolveu levar um empregado dele muito bonzinho para ver a locomotiva. Meu avô amava aquele empregado meio simplório! E queria ver sua reação, quando ele visse,

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pela primeira vez, uma máquina andando sozinha, sem cavalo nenhum para puxar. Vovô ficava imaginando como ia ser a reação de espanto do seu empregado.

        Lá se foram os dois para a estação. E veio a locomotiva andando sozinha, aquela„ coisa mágica se aproximando, vupt, vupt, vupt.

        Meu avô ali, de olho, pronto para saborear a emoção do rapaz.

        E a máquina passou por eles, os dois parados, sem dizer palavra, vapt, vupt, vupt, vupt, vupt.

        Ai, meu avô falou: "Então, Zé? O que foi que você achou deste milagre?"

        E o Zé respondeu: "Puxa, seu Hortêncio, como faz fumaça, fiem!?"

        Pois é isto: o que impressionou os meninos também, não foi a roda rodando e fazendo as cores sumirem no disco. O que os deixou inquietos foi a fumaça que a experiência fez na cabecinha deles...

        Puxa vida! Se um era marrom e o outro era — digamos — cor-de-rosa, por que é que todo mundo dizia que um era preto e o outro era branco?

        Imagina: eles nunca haviam se preocupado com isto. Mesmo marrom, o menino marrom achava normal ser chamado de preto. Mesmo cor-de-rosa, o menino cor-de-rosa achava normal ser chamado de branco.

        Agora, como na caixa de aquarelas  estava tudo misturado na cabeça deles.

        Eles tinham estado juntos, praticamente, desde o dia que nasceram, brincando, conversando, inventando coisas,   brigando, rolando na grama, dando socos um na cara do outro, fazendo pazes, brigando de novo, passeando na praça, jogando na escola, sempre juntos, sempre às gargalhadas, sempre inventando moda.

        E nunca tinham se reocupado com o fato de um ser de uma cor e o outro ser de outra.

        Agora, eles queriam saber o que que era branco e o que que era preto e se isto fazia os dois diferentes. P.20

        Uma vez me aconteceu uma história que — me parece dá pra ajudar a gente a entender o novo problema dos dois amigos.

        Eu era bem pequenininho e já sabia fazer bolinhos de fritar. Quer dizer: devia fazer a maior bagunça na cozinha mas mamãe me deixava ficar lá, quebrando ovos, derramando farinha de trigo pelo chão, me lambuzando todo, mas fazendo a massa, rodando a massa nas mãos, fazendo as bolinhas — como se fossem sonhos — e jogando tudo na gordura quente para fritar. Vai ver, mamãe ficava por ali, tomando conta. Na minha memória, porém, me vejo o rei absoluto da cozinha.

        E estava lá, fazendo os meus sonhos — ou meus bolinhos de fritar — e queria que eles ficassem prontos para o café da manhã. Tantas fiz que a massa dos bolinhos não ficou pronta a tempo. Aí, já era hora do almoço e me lembro de ouvir a voz do papai chegando do escritório e me dizendo: "O meu filho está fazendo bolinhos pa-ra o almoço?'

       Eu disse que estava sim e tomei uma decisão: "Bolinhos para o café são doces; bolinhos para o almoço devem ser salgados."

        Na minha cabeça, o que eu tinha que fazer era simples: tirar o doce da massa e fazê-la ficar salgada. Simples! Simplíssimo: como eu havia botado um copo de açúcar para adoçar os bolinhos, bastava agora botar um copo de sal em cima, que tudo ficava empatado.

        Não pensei duas vezes, virei um copo de sal na massa e ainda botei mais,uma pitadinha de sal extra, para — aí, sim — temperar o bolinho para u almoço.

        Juro que não me lembro do que aconteceu depois. Só sei que foi nesta manhã que elaborei a minha Teoria dos Contrários: "Uma coisa só é o contrário da outra, quando toma o seu lugar. Logo, salgado não é o contrário de doce."

        Não lhes parece uma boa teoria?

        Vamos à prova: tome-se um arame e ponha-o no fogo. Ele fica quente. Tire o arame do fogo e bote-o na água gelada. Ele fica frio. O frio toma o lugar do quente. logo, o frio é o contrário do quente. C. Q. D. (Vê ai se a sua professora ainda sabe o que quer dizer C. Q. D. Depois, você me conta.)

        Bem, não creio que esta história tenha ajudado o tanto que eu esperava. Vocês vêem ai. Tenho o maior medo de explicações cientificas, sabem? , Mesmo porque, não sou nada bom nisso. O que estou tentando é ajudar os dois meninos na sua dúvida, pois — me prece — o que eles estavam querendo era saber se o branco é o contrário do preto. É? Será?

 

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        Eles ficaram por muito, muito tempo sofrendo esta dúvida.

        Mas menina tem essa coisa de bom: logo esqueceram aquela história e já entraram de novo em outras invenções.

        Menino nunca sabe a hora exata em que essas coisas acontecem, os dois descobriram  juntos: a moça na janela da casa ao lado!

        Era a filha mais nova da vizinha, meu Deus, a coisa mais bonita que jamais houve neste mundo desde que Deus criou o mar.

        Mas, ela era uma menina, outro dia mesmo!

        E aí, numa tarde na janela, surgiu como uma princesa!

        De repente, como se uma fada tivesse tocado seu corpo com uma varinha de condão, a menina virou uma princesa e apareceu na janela.

        Numa tarde assim, daquelas bem quietinhas.

        A partir desse dia, era aquela febre e aquela aflição na escola, a vontade imensa de voltar para casa, de ver a tarde chegar e ir olhar a princesa na janela do seu castelo, a pequena casa verde ao lado.

        Lá vinha ela, das sombras do quarto e chegava à janela, toda cheia de luz; e entrava e saía e seus braços tão brancos dançavam no espaço, ajeitando os cabelos, jogando a cabeça, de leve para trás; e teus olhos brilhavam, olhando pra longe e seu rosto girava, de leve, de leve, sobre os ombros redondos — que ombros, meu Deus! ---- que curva tão linda, a corrente de ouro, e a medalha onde está?

        Não estou bem certo se aquela era a hora exata da chegada dos dois à janela para olhar a moça ou se era a exata hora da chegada da moça para que os dois olhassem para ela.

        Depende de quem conta a história.

        "Como é, meu Deus, que nós vamos afastar esta paixão que vai fazer a gente brigar no beco, longe dos pais e dos tios, uma briga de decidir? Tira essa moça da nossa cabeça! Xõ, xô mosquitinho, xô xô mosquitinho a moça da casa verde, xô xô mosquitinho, xô xô mosquitinho, vou ardendo, vou morrendo, xô xô mosquitinho xô, xô... mosquitinho. Ai!"

        Há certas manhãs em que a cama deixa de ser boa companhia e, quando a gente dá pela coisa, já está de pé, no meio da rua, no meio do quintal ou na área, longe do quarto.

        Nem acabou de amanhecer ainda e ficamos sem saber o que fazer com aquele pedaço de dia que ganhamos, de repente. Pois numa manhã dessas, o menino marrom enjoou cedo da cama. Acho que estou contando essa história, indo e vindo no tempo, sem botar as coisas em ordem. Vai ver que estou.

        Esta manhã de que falo agora, por exemplo, é uma manhã muito mais antiga, muito anterior aos sonhos com a menina da casa verde, eles eram bem pequenininhos ainda.

        Pois o menino marrom — daquele tamaniaho se viu sozinho no meio da rua,

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antes que o dia acabasse de amanhecer, antes que a primeira loja da rua abrisse para, a luz do dia suas barulhentas portas de aço.

        Tudo vazio, só ele sozinho no meio da ma como menino perdido. De repente, ele vê a velhinha atravessando a rua a caminho da missa das seis Agora, meu deus, me digam: onde foi que aquele tico de gente tinha ouvido falar em boa ação? Pois não é que ele tomou a decisão, como se fosse um experimentado  escoteiro' Correu e pegou a mão da velhinha para guiá-la na travessia da rua:

        "Não careço de ajuda. Me larga, menino, por amor de Deus!"

        Deu um tapa na mão do menino marrom, e atravessou a rua sozinha.

        O menino ficou estático no meio-fio, com a mãozinha no ar, parado como uma estátua desapontada, olhando para a velhinha com a maior de todas as incompreensões.

        Na manhã seguinte, a cama incômoda de novo, antes dás seis hora.

        E ele estava ali, no mesmo lugar, sentadinho na calçada. Só que desta vez em companhia do menino cor-de-rosa, que foi acordado por ele sem qualquer explicação, só “Vem!”

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        E lá apareceu a velhinha, de novo, indo para a missa. Os dois não diziam nada. Só ficaram olhando a velhinha atravessar a rua que levava à praça e depois à igreja. A velhinha sumiu no meio da vegetação da pracinha e os dois voltaram para casa. No dia seguinte, olha os dois lá, de novo, sentadinhos na calçada, esperando a velhinha passar.

        No final de algumas manhãs, já que o menino marrom não dizia nada, o menino cor-de-rosa resolveu perguntar:

        "Por que você vem todo dia ver a velhinha atravessar a rua?" E o menino marrom respondeu:

        "Eu quero ver ela ser atropelada.

        Como pode durar este jogo de deus e de diabo em peito de menino?

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        Menino tem muitos defeitos. Por exemplo: menino cresce. E os dois amigos não tiveram como se livrar deste dever. De repente, começaram a crescer mais depressa, a voz começou a engrossar aqui, a esganiçar ali, até que chegou a hora do menino cor-de-rosa ter que ir embora. Primeiro foi comprar umas cuecas, alguns pares de meia, pregar uns botões nas camisas, descer a bainha de uma ou outra calça e juntar os amigos para o bota-fora.

        Os amigos todos apareceram para a festa de despedida do menino cor-de-rosa que, àquela altura, já não era tão menino nem tão cor-de-rosa. Foi uma farra: muitos abraços, muitas palmadinhas nas costas — teve um que vomitou com sua primeira cerveja — e muitas piadas de bom e de mau gosto.

        Muito bem: agora, o menino, ainda que não queira, vai ter que ser ele mesmo e não mais um objeto de família, agasalhado na voz musical da mamãe, protegido na força de bronze que menino enxerga no pai, que vence o medo, que afasta os raios. Os olhos se desprendem da paisagem, a própria casa ignora que ele vai partir, nenhuma xícara, nenhuma porta lhe deseja boa viagem. Lá vai ele para o mundo, deixar seu quarto infinito.

        O pai chama-o num canto e desfila os conselhos. O menino ouve com a maior atenção, como se aquela história já tivesse acontecido ele alguma vez em algum lugar.

        Quando mamãe veio com a bolsa de mão toda arrumadinha e com os olhos cheios de lágrimas dizer: juízo, meu filho, vai com Deus e... o menino cor-de-rosa só faltou repetir cada palavra da mãe, de tanto que ele sabia que ia ser assim. Ele sabia também que ia ficar com os olhos cheios d'água, não ia conseguir dizer nada e aconteceu tudo direitinho: ele não conseguiu dizer nada e ficou com os olhos cheios d'água.

         Mamãe veio até a porta, papai veio até a rua e ele seguiu para a estação em companhia do menino marrom, que lhe carregava a mala.

        Os dois foram andando devagarinho para a estação. Naquele instante eles estavam certos — sem que nenhum dos dois falasse isto para o outro — de que não iriam nunca se esquecer daquele momento e se perguntando, sem fazer a pergunta: "Quem é o dono da história? Aquele que parte ou aquele que fica?"

         De repente, o menino marrom deu uma gargalhada dessas que não acabam mais, dessas de perder o fôlego.

        O menino cor-de-rosa espantou-se, sem entender nada. Esperou que a gargalhada terminasse e aí perguntou: "Tá rindo de quê?" O menino marrom olhou para ele, todo solene, e disse:

        "Espero que você tenha todos os ingredientes para vencer na vida!"

        "Você se lembra?" falou o menino cor-de-rosa, pegando carona na risada que não acabava.

 

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        A sobrinha da babá, que falava difícil, havia se casado com o carteiro e já estava esperando o terceiro filho.

        A gargalhada acabou e eles voltaram a caminhar em silêncio, agora que o mistério estava desfeito.

        Às vezes, os silêncios ficam muito compridos e você não sabe como diminuir seu tamanho, a não ser com uma pergunta boba.

        "E o nosso pacto de sangue, como é que fica?"

        "Amigos para sempre!

        "Temos que selar nosso pacto com sangue!"

        "Com sangue!"

        Eles eram tão pequenininhos naquela época que nem se lembravam onde tinham visto este negócio de pacto de sangue. Vai ver, um deles tinha ficado sem dormir até mais tarde e pegado um filme de espadachim na televisão, no fim da noite. Sei lá, às vezes, o que a gente aprende vem no vento, sem qualquer explicação.

        O pacto! "Temos que fazer um pacto de sangue!"

        Um deles foi até a cozinha buscar uma faca de ponta para furar os pulsos e misturar o sangue dos amigos eternos.

         Ficaram os dois, os bracinhos espichados, as mãozinhas fechadas para cima, os pulsos à mostra, latejando. A faquinha na mão de um, esperando o pacto. Os dois ali, parados, sem um sorriso sequer, só o ruído das suas respirações ofegantes, olhando firmes um no olho do outro, sem piscar: pacto é pacto. E a faquinha parada no ar. Até que um deles resolveu a questão: "Não tem um alfinete?"

        O outro nem respondeu, foi correndo ao estojo de costura da mãe, estojo de costura, tesouro da vista, linhas, carretéis, fitas, cor o quarto reino natural — não apenas alfinetes de bolinhas coloridas nas pontas.

        "Pego este, da bolinha vermelha!"

        "A gente fura o dedo."

        "Qual dedo?"

        "O fura-bolos. Que é pra gente assinar o nome com sangue."

        "Isto! O dedo vira uma caneta-tinteiro."

        Agora pausa para uma gargalhada dupla de se ouvir na rua inteira, riso bobo, exclusivo.

           "Quem foi que inventou essa do dedinho, soltando sangue pela ponta, virar caneta-tinteiro, foi eu ou você?"

        Muito bem: os dois dedinhos fura-golos ali, esticadinhos, e cadê coragem para furar a ponta de cada um? Nova pausa e um deles resolve sair da pose. Sai e vai tranqüilamente até a gaveta onde guarda as coisas da escola.

        "Que ê que você está procurando?"

        "Tinta vermelha. "

        O outro correu para ajudar. Pacto de sangue de menino pode ser com tinta ver-

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        melha, claro. Depois de assinado e sacramentado, quem vai desconfiar de que não é sangue verdadeiro?

        Não tinha tinta vermelha.

        Foi o menino marrom que achou o vidro de tinta azul. Abriu, enfiou o dedo no vidro e mandou o outro fazer o mesmo. Ficaram os dois com as pontas do fura bolos cheias de tinta azul. Esfregaram os dedos um no outro, pegar uma folha de papel e, juntos, assinaram seus nomes. Aliás, assinaram, não: escreveram com a dificuldade com que escreviam seus nomes naquela época. E tiveram que enfiar o dedo várias vezes no tinteiro, que a tinta secava rápido.

        A maior lambança. Ao final, orgulhosos, os dois esconderam o documento em lugar secretíssimo, certos de que tinham feito um pacto indestrutível. Pacto de reis é pacto de reis!

        Aí, eles pararam mais uma vez no caminho da  estação para reforçar suas lembranças.

         'Quem é que tinha falado pra gente este negócio de sangue real?'

        "Será que a gente sabia mesmo?"

        "Tenho certeza absoluta. Estávamos fazendo um pacto de sangue azul.”

        'Amigos eternos, Milord!"

        "Fiéis para sempre, Alteza!

        "E onde foi que a ente escondeu documento?"

        "Não tenho a menor ideia!"

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        Ai, já tinham chegado à estação. Não era uma estação com sua bufante locomotiva, seus estertores, seus rangidos, angustiante ou festiva mensagem de seu apito; era uma estação rodoviária de luzes frias e o ônibus enorme não era nada romântico, todo colorido, ar refrigerado, rodomoça, carteira de identidade, autorização dos pais para viajar desacompanhado. Quando o chofer entrou para assumir seu lugar e' a porta automática do ônibus fez aquele barulhinho de ar comprimido, informando que estava na hora de ser fechada, o menino cor-de-rosa descobriu que só faltava ele para entrar no ônibus. Aí, foi aquece abraço muito forte, muito apertada mesmo e ele disse, sem nunca ter programado:

       "Não me esqueça amigo, eu vou voltar.

        Falou assim, sem sentir, aquela frase que lhe saiu com a música que ela contém. E estava certo, também, de que não tinha programado aqueles olhos úmidos. Da janela, o ônibus saindo, ele pôde ver que o menino marrom estava com as ventas do nariz mexendo mais do que asa de borboleta. Quando o ônibus ia sumir no fim da pista, ele olhou para trás e viu todas luzes da rodoviária brilhando nos olhos de jabuticaba do menino marrom.

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        Era chegada a hora de deixar de ser corgo, brincar de ser rio. o menino marrom foi crescendo, ganhando corpo, tudo muito devagarinho, ele foi ficando um rapazinho quieto, caladinho, lendo muito, estudando, fazendo experiências, fazendo versos, inventando coisas só para ele e, de repente, abandonando tudo, fazendo uma manhã toda diferente da outra ou repetindo aquelas manhãs em que ele acordava muito cedo e ia sentar-se na calçada para ver a velhinha morrer atropelada.

        Um dia, aquela história do preto e do branco voltou-lhe à cabeça. "Se o azul é uma cor fria e o vermelho é uma cor quente, por que é que, na cabeça de ninguém, uma é o contrário da outra? Quem foi que inventou que o preto é o contrário do branco? Se eu sou marrom e se meu melhor amigo não é exatamente branco, por que é que nos chamam de preto e de branco? Será que é para que fiquemos um contra o outro?"

        Ele já sabia uma porção de coisas, já tinha estudado direitinho o Disco de Newton, já sabia o que era luz, o que era a decomposição da luz, o que era prisma, essas coisas que vocês vão saber daqui a pouco e das quais já me esqueci...

        Ficar sozinho, às vezes, é bom: você começa a refletir, a pensar muito e consegue descobrir coisas lindas.

        Nessa de saber de cor e de luz — matérias que passaram a interessá-lo profun-damente — o menino marrom começou a entender por que é que o branco dava uma ideia de paz, de pureza e de alegria. E por que razão o preto simbolizava a angústia, a solidão, a tristeza. Ele pensava: o preto é a escuridão, o olho fechado; você não vê nada. O branco é o olho aberto, é a luz!

        Santa mãe, a cabeça do rapazinho fervia. Aí, ele concluía: para o Homem, tudo vira símbolo! É verdade: o Homem foi sempre um grande inventador de moda.

        Sua cabecinha de adolescente chegava a ranger, crec, crec, crec, ele N. ia a hora que eia ia derreter.

        Vocês já ouviram falar num sábio brasileiro chamado Silva Melo?

        Ele era médico, escritor-e foi da Academia Brasileira de Letras.

        Um dia, ele estava voltando para o Brasil de navio, o navio afundou e ele nadou — que nem o Camões — com os orig;riais do seu livro numa das mãos, até ser salvo. Isto, porém, é outra história que um dia vocês vão conhecer melhor. Uma vez, fiz uma entrevista com o Professor Silva Melo sobre uma porção de coisas e, entre as muitas que ele contou, uma não deu para esquecer.

        Ele disse lá, a um certo ponto da entrevista: "Eu não consigo descobrir em que altura da História do Homem, ele decidiu que o branco simbolizava pureza."

        Aí, eu disse: "Deve ser. desde quIndo abriu os olhos pela primeira vez."

        Ele nem mc ouviu. E continuou:

        "As coisas puras da Natureza não são, exatamente, brancas!" Falou e disse, Professor! O branco do lírio, por exemplo — agora sou eu que

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estou repetindo — tem uma química complicadíssima, uma mistura incrível para dar aquele branco. Um pelo de gato preto é tão puro quanto um pelo de gato branco. As coisas puras da Natureza estão muito mais para os tons ocres e pardos. Como o açúcar mascavo, por exemplo, que é muito mais puro do que o açúcar refinado.

        O Professor falava coisas assim. Acho que o menino marrom andou lendo a en-trevista que fiz com o Professor e começou a entender esse negócio do valor dos sím-bolos. Sabe por que eu acho isto? Porque, um dia, ele — que também tinha pensado na minha Teoria dos Contrários — fez uma bela constatação de adolescente.

        Foi assim: ele estava muito triste e achou que as coisas estavam pretas para ele. Ai, não gostou do próprio símbolo que criou:

        "Pretas, porrrrrrrrquê?"

        Ele estava no seu guano, estudando, e ficou olhando urna folha de papel bran-quinha sobre a mesa, onde ele ia escrever uma carta. De repente, a luz do quarto apagou. E a folha branca sumiu. Ele botava a folha de papel perto dos olhos e via tudo preto. Mas ele sabia que a folha de papel estava ali e continuava branca.

        Então, ele deu um sorriso lindo, todo branco que ----- no escuro ninguém viu.

        Ele havia descoberto que o preto não era o contrário do branco!

        A luz acendeu de novo. E a folha branca apareceu diante de seus olhos.

        Ele pegou a caneta e começou a carta que ia escrever:

MEU QUERIDO AMIGO

EU ANDAVA MUITO TRITE ULTIMAMENTE , POIS

POIS ESTAVA SENTINDO MUITO MA SUA FALTA

AGORA ESTOU MAIS CONTENTE PORQUE ACABO

DE DESCOBRIR UMA COISA IMPORTANTE: PRETO É

APENAS A AUSENCIA DO BRANCO

 

 

        Algum tempo depois aconteceu tudo igualzinho como na canção do Milton Nascimento: o menino — que agora já era doutor — voltou com sinhazinha  para apresentar. A moça não era bem urna sinhazinha como as de antigamente. Era uma bela estudante de sociologia e vinha fazer urnas pesquisas na cidade dos dois meninos. A sobrinha da babá já tinha seis filhos e o amigo deles que não sabia beber cerveja na festa de despedida já bebia feito um craque.

        A vida continuou.

        A partir daí, porém, a história já não é mais nem do menino cor-de-rosa nem do menino marrom. Menino. é como certos rios misteriosos da Amazônia que, de repente, desaparecem no meio da mata ---- ou no meio do mapa e vão aparecer lá na frente, um rio muito maior, um outro rio.

 

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        Que os dois continuam os maiores amigos, isto eu sei, tenho sempre notícias deles embora não os veja há muito tempo.

        Só sei que os dois continuam fazendo das suas. Um é craque de basquete e o outro, de voleibol; um já está quase formado e o outro não estuda mais — ou os dois já se formaram, todos dois já são doutores — já nem posso precisar. Só sei que um desistiu de tocar a bateria e o outro fez um samba e gravou uma canção; um está tocando flauta e o outro, violão. Um deles já se casou — se casou, eu não sei bem —e o outro perdeu a conta das namoradas que tem. Um quer conhecer o mundo e o outro a Patagônia, um é o rei da Informática e o outro do vídeo-clip; um andou fazendo cursos de teatro e literatura e o outro já fez figura num festival da canção. Um já conseguiu emprego; o outro foi despedido do quinto que conseguiu. Um passa seus dias lendo — ou não sei se são os dois — um não lê coisa nenhuma, deixa tudo pra depois. Mas, faz cada verso lindo, que ainda vai virar canção. Um pode ser diplomata. Ou chofer de caminhão. O outro vai ser poeta ou viver na contramão. Um é louco por sorvete de chocolate e o outro detesta o gosto de chocolate com leite; prefere, pro seu deleite, cerveja com tira-gosto. Um adora um som moderno e o outro — como é que pode? — se amarra é num pagode. Um dos dois é muito alegre e o outro mais quietinho; um faz piadas com tudo e os dois riem sozinhos. Um é um cara ótimo e o outro, sem qualquer dúvida, é um sujeito muito bom. Um já não é mais rosado e o outro está mais marrom.

        Aqui acaba a história. Por que dar fim a histórias? Quando Robinson Crusoé deixou a ilha, que tristeza... Ainda bem que os dois meninos — não tão meninos mais — continuam por aí, sem saber que, neste momento, estamos lendo quase tudo sobre eles.

        Até que se eles descobrissem isto, não ia ser nada mau.

        Não por causa do contador desta história, mas por causa deles rnesmos, eles iam fazer mais uma bela descoberta. E cada um ia poder dizer pra gente: "Eu não sabia que a minha história era mais bonita que a do Robinson Crusoé. "

 

 

Série

MUNDO COLORIDO

 

Esta é a história de três meninos

Em primeiro lugar, é a história

de um menino marrom.

E é também a historia do seu amigo,

o menino cor-de-rosa.

Mas, principalmente , é urna história

do menino que mora no coração do Ziraldo,

e que é um menino poeta, contador de caso,

inventador de moda, sempre sonhando,

imagïnando, juntando amigos,

e, com eles, fazendo outras histórias,

e com as histórias, outros amigos,

e, com os amigos,

novas histórias...

Ciça

 

1. Em certo momento da história o menino de onze anos deseja que uma velhinha morra, pois havia rejeitado a sua ajuda para atravessar a rua. Você acha que esse comportamento?

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2. Os dois amigos planejam fazer um pacto de sangue para selar a amizade. Acabam fazendo com tinta azul. Você acha que isso incentiva as crianças a fazerem pacto de sangue de verdade?

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3. Quais as partes do corpo do menino são descritas pelo narrador? P3,4,.

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4. Com o que o narrador compara os olhos, os dentes e as pernas do menino?

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5. Do que o Menino Marrom tinha medo?p.6

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6. O narrador do texto é o próprio autor? Justifique com um fragmento do texto. P.7.

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7. De acordo com a filha do narrador, qual a diferença entre mar e lagoa?. P8.

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8. Como era a aparência do menino cor–de–rosa? p.10.

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9. Em que escola os meninos estavam estudando, provavelmente? P.10.

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10. Os amigos partiram para a agressão física após um insulto. Qual foi esse insulto? P.11

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11. Qual foi o motivo do insulto ter provocado a briga?p.11.

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12. Quem passou a tomar conda do menino depois que a babá foi embora?p.14

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13. Qual a cor que resultou da mistura de todas as cores do arco-íris no experimento do menino marrom? p. 15.

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14. Por que o menino ficou feliz com a descoberta? P.16.

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15. De acordo com o experimento do disco de Newton a mistura de todas as cores cria qual cor?

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16.Qual foi a descoberta feita pelos meninos sobre as pessoas brancas e as pessoas pretas?p.18

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17.Os amigos nunca haviam se preocupado com que fato? P.20

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18. Qual o nome da teoria criada pelo narrador quando era criança? p. 21.

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19.Que novo acontecimento os dois amigos descobrirem? P. 22.

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20. Por que o menino resolveu ajudar a velhinha a atravessar a rua? P. 23

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21. Por que ele ficou com raiva da velhinha?

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22.  De acordo com o narrador um dos defeitos dos meninos e o quê? P.25

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23. Qual idade aproximada os amigos tinham quando fizeram o pacto de sangue? P.26

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24. Como foi o pacto de sangue dos amigos?p.26

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25. Qual dos amigos partiu no ônibus? Justifique com um fragmento do texto.

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26. De acordo com o menino marrom o que é o preto? P. 30

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27. O menino marrom e o menino cor-de-rosa representa quem? P. 31.

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28. Quais os três meninos dessa história? P.32

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quarta-feira, 19 de junho de 2024

PRIMO BITÚ - CONTO AFRICANO - ATIVIDADES

 

PRIMO BITÚ - Fátima Bettencourt

https://core.ac.uk/download/pdf/38680768.pdf

 

        No dia de Ano Novo, mais fatal que o destino, chegava todos os anos Primo Bitú à nossa casa, bem de manhãzinha.

        Ainda no rescaldo do Natal, nós, os meninos da casa também madrugávamos, agarrados às cometas, bolas e bonecas de farrapos no limite do transitório encanto. Já não causavam o deslumbramento de uma semana atrás, mas havia sempre e possibilidade de se recriar a beleza perdida da boneca acoplando-lhe uma cabeleira com bonitas e frescas barbas de milho, que a nossa horta do Mato Inglês produzia praticamente todo o ano. Umas havia da cor de ouro velho, brilhantes e sedosas que logo transformavam a feia boneca de feições espalmadas numa linda vampe. Mal imaginava eu na minha infância tão simples, que tinha nas mãos e percursora da sofisticada Barbie que muitos anos mais tarde viria a encantar a meninice das minhas filhas e atrapalhar os meus orçamentos sempre deficitários de jovem mãe, as toiletes e adornos da Barbie não mais colhidos da natureza, adquiridas a peso de ouro.  

         Os meninos macho da casa, esses rapidamente descobriam que a flauta de cana com os buraquinhos vedados por finíssimas teias de aranha tinha possibilidades melódicas de longe superiores às da cometa do Pai natal. Esta então era utilizada como moeda de troca e ia deslumbrar os meninos de nhô Brás, do outro lado do pequeno vale, que em contrapartida esvaziavam os bolos de piões, guitas e botões.

        Por aí se vê que a nossa manhã do dia de Janeiro era ocupadíssima, sem espaços mortos. Como então arranjar tempo e paciência para Primo Bitú com a sua cara bexiguenta, os seus olhos aguados e nebulosos e as enormes orelhas que no ultimo Janeiro descobríramos serem transparentes?

        Primo Bitú usava sempre casaco e bengala. O seu olhar soturno condizia com a fala pousada e grave. Parecia estar sempre triste. Estendia às pessoas uma mão fria e frouxa como se estivesse apresentado condolências. Tinha a mania de nos abençoar com aquela mesma mãe de casa de morto inspirando-nos mais medo que qualquer outro sentimento.

        Meu pai então para evitar que passássemos do medo ao gozo, falava do primo com grande entusiasmo e mostrava-nos que ela era pessoa muito direita a que devíamos respeitar.

        Naquela manhã, primo Bitú chegara mais cedo que de costume. Ainda se ouvia o pilão na preparação da farinha para cuscus. Meu pai, mais madrugador, fora à fora buscar um cachinho de banana prata especialmente guardado para aquele dia de festa.

        Na verdade trata-se apenas de um subterfúgio para encobrir o seu principal objectivo que era matar um cabrito para o almoço mas isso podia dizer.

        Havia muita criação em nossa casa, e a nossa relação com os filhotes era tão íntima e cheia de ternura que matar um deles, à vista dos meninos, estava totalmente fora de questão. Cabrito, franguinha, leitão, burrinho, cada um tinha um nome próprio e era o bichinho de estimação de alguém da casa e o companheiro de brincadeira dos garotos.

        É certo que víamos a carne aparecer à nossa mesa mas sempre surgia alguma história que justificava a sua origem ou o desaparecimento de um bichinho mais querido. Só as mortes por doença eram declaradas e choradas como daquela vez que o nosso burrinho “Crêtcheu” apareceu morto e não queríamos enterrá-lo. Por fim lá assistimos ao enterro empunhando ramos de flores bravias que íamos orvalhando com as nossas lágrimas. Durante o dia ficamos meio macambúzios, aquele bichinho que parecia um boneco de pelúcia e saltava conosco pelos pilares da horta não estava mais ali e isso nos causava uma dor enorme. Foi nesse dia que a nossa galinha “dourada”, sumida havia dias, surgiu no terreiro com um bando de pintainhos felpudos atrás. Esquecemos “Crêtcheu” temporariamente e só à tarde deparamos coma mãe do burrinho, nessa manhã enterrado, de orelhas murchas, a ração intacta, toda desconsolada. Então, ocorreu-nos que se ela sentisse alguém a mamar o leite pensaria que era o filho e se sentiria melhor. Sem mais delongas passámos à acção e quando a minha mãe descobriu estávamos a mamar o leite da besta havia dias. Salvou-nos Nhô Cirilo, um dos empregados, que garantiu que o leite de burra era excelente para os pulmões e que muita doença era curada com ele.

        Salvo o devido respeito por Primo Bitú, o burrinho “Crêtcheu” tem um cantinho muito especial nas minhas recordações. Daí o parêntesis e a inesperada homenagem. Fomos logo avisar a minha mãe que achou que o melhor era oferecer-lhe uma cadeira ali mesmo no terreiro, a casa não estava ainda devidamente arrumada para a gente de fora. Era dia e os preparativos muito mais complicados.

        Da enorme mala de madeira a minha mãe já retirara uma colcha de seda quase branca e uma toalha com renda à volta e ia começar a arranjar tudo, mas essa visita tão matinal era quase um contratempo. Se bem que ela nunca tivesse falhado não anos anteriores, nos alimentávamos a esperança de poder um dia sentar-nos à mesa do café sem aquela figura sinistra mastigando lentamente e sorvendo o café com ruídos. Não era ainda dessa vez que o nosso desejo se realizava.

        A minha mãe, decidida, colocou ela própria a cadeira no terreiro com um pedido de desculpas “sabe, primo, você é de casa, eu estou a dar um jeitinho lá dentro… é um dia especial, o primo não leva a mal”. Lá se foi a minha mãe às suas tarefas deixandonos ali para fazer”sala” ao primo, eu com a minha boneca de cabeleira acobreada bem presa ao peito, os meus irmãos cochichando coisas, o mais novinho cheio de medo não conseguia parar de fitar o olho aguado e mortiço do primo, um olhar de réptil hipnotizando um passarinho.  

        Fomos salvos por meu pai que regressou da horta com um cabritinho a que já tirara a pele, não fôssemos nós reconhecer o “pintadinho” tão nosso conhecido. Como sempre meu pai recebeu primo Bitú com exageradas demonstrações de alegria completamente incompreensíveis para nós. Como poderia aquela aparição causar alegria a alguém? Meu pai, porém, não entendia isso. Primo Bitú largara de sua casa de Monte Sossego, galgara a pé os oito quilómetros até Mato Inglês para dar as Boas Festas a uns parentes muito estimados e tínhamos que o receber engalanados em arco e ser amáveis durante o tempo que ele ali estivesse.

        Quanto mais crescidos ficávamos, menos paciência tínhamos para aquele visitante, de pedra e cal na nossa mesa todo o dia de Janeiro que Deus punho no mundo, desde que a minha memoria se lembrava. Sentíamos roubados das atenções dos mais velhos, das brincadeiras habituais, a minha mãe atenta ao codé e sua preferência por catchupa guisado dentro do café, procurando conter a minha obsessão pelas boas maneiras, capaz era eu de chamar a atenção de um visitante que cometesse alguma gafe enfim um clima diferente, quase tenso, todos preocupados com o primo “esta linguiça está muito saborosa, eu mesa fiz, coma um bocadinho”, “mais café, está quentinho!” a minha mãe sempre apaparicando o primo, os três filhos ali, ao Deus dará, nem isso talvez, pois qualquer deslize era prontamente anotado e silenciosamente reprovado com uma mirada certeira. Mas que café mais comprido! E que visitante mais indesejável! Acontecimentos posteriores viriam a mostrar como estávamos enganados.

       Naquela manhã, a conversa tombou para novidades da morada. Primo Bitú animou-se. Uma centelha pareceu soltar dos seus olhos pois ele trazia uma grande novidade. Tinham desencadeado uma grande campanha de vacina. A varíola que grassava pela costa africana ameaçava atingir-nos. Tudo inútil, dizia ele, aqueles doutores, todos uns ignorante nada entendiam daquela doença.

       – Imagine – dizia desdenhoso – querem curar bexiga com uma canetinha de arranhar nos braços das pessoas. Eles deviam era vir ter comigo porque eu já tive bexiga em Santo Antão, até que já ninguém contava que eu conseguisse sobreviver. Basta dizer que me puseram num casinhoto para morrer e até os pássaros brancos já andavam por ali a rondar. Estão a ver que eu conheço esta doença. Os doutores se quiserem saber alguma coisa sobre bexigas, eu vou ditando e eles vão escrevendo – aí meu pai não se conteve e caiu no riso. Mais impressionados estávamos nós com o calor e a animação que de repente se revelara naquele homem via de regra tão circunspecto. Aquele que estava ali explanando originais teorias sobre varíola era certamente alguém que não conhecíamos. A sua supremacia sobre a ciência médica nos animava a dar largas a nossa curiosidade. Acabámos descobrindo que o Primo Bitú era um falador interessantíssimo com resposta pronta para tudo e mil teorias pessoais elaborados numa vida longa e próxima e cheia de peripécias. Afinal ele não era soturno nem triste. Não era pois necessário programar a próxima visita para dali a um ano. Podia ser já no próximo Domingo. Insistimos até arrancar-lhe a promessa de passar a visitar-nos semanalmente. Aceitou logo e foi acrescentando que apesar de estarmos a crescer no campo éramos uns meninos espertos e sobretudo muito educados.

        O sol começava a descer para o Monte Cara quando o primo Bitú deixou o Mato inglês em direcção à cidade depois de um lanchinho de chá de cidreira, batata assada, queijo e doce caseiro. Despediu-se com muitos abraços e vénias, a mão um pouco mais quente, o coração também. Partiu segurando a bengala, pela vereda que ligava a nossa casa à estrada. Ficámos no terreiro vendo a sua pontinha de saudade. Felizmente só faltavam quatro dias para ele voltar.

        À noite, à volta da mesa, olhando a chama trémula do candeeiro a petróleo, o nosso silêncio era cheio de subentendidos e uma compreensão nascente das coisas da vida. Naquele dia crescêramos um pouco mais.

 

1. Qual o assunto principal do texto?

Visita do Primo Bitú à casa dos pais da narradora.

 

2. Quais são as personagens do texto?

Primo Bitú, a narradora, os dois irmãos, a mãe e o pai da narradora, Nhô Cirilo e Nho Brás (personagem figurante).

 

3. Onde se passou esta história?

Em Cabo Verde, Mato Inglês.

 

4. Quando aconteceu esta história?

1º de Janeiro – Dia do Ano Novo.

 

5. Qual foi a alternativa que a narradora encontrou para restaurar a boneca?

 A narradora fez uma cabeleira com bonitas e frescas barbas de milho.

 

6. As crianças não suportavam o primo Bitú. Retire do texto uma frase que justifique essa afirmação.

Não tinham tempo e nem paciência.

 

7. Por que as crianças mamaram o leite da burra?

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8. Por que motivo o pai trouxe o cabrito já sem a pele?

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9. No final os meninos acabam gostando do primo, por quê?

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10. Qual o nome do conto e o nome da autora?

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O ENTERRO DA BICICLETA - CONTO AFRICANO - ATIVIDADES

 

O enterro da bicicleta

Nelson Saúte

 

        A aldeia foi sacudida com a notícia da morte do deputado. Todas as mortes são notícia em nossa terra, mas aquela foi invulgar. A consternação colheu também as aldeias mais próximas. Sem dúvida que aquele era um acontecimento para se escrever nos armoriais da povoação em que ele era a única personalidade carismática. Não era a primeira vez que empreendia aquela viagem de bicicleta até à vila, onde apanhava o machimbombo[1] que o levava ao distrito e, de lá, para a capital da província, de onde se situava o parlamento. Nenhum dos habitantes daquelas terras alguma vez ouvira falar de leões. Falava-se, sim, de crocodilos que, não raro, devoravam crianças desprevenidas que tentavam atravessar para a margem adversa do rio. Contava-se inclusive a história de uma mãe que velou a cabeça do filho, dado que o corpo fora engolido por um crocodilo no rio. Aquele leão foi o primeiro de que se ouviu falar e, provavelmente, ouvir-se-á falar por muitos anos. Parece que o deputado ainda revelou alguma bravura quando se confrontou com a situação. Não fugiu, olhou frontalmente o animal, sem medo da sua juba e dos seus rugidos. Mas não estavam em igualdade de circunstâncias: as forças e armas eram tremendamente desiguais. O leão levou a melhor, tanto mais que do homem apenas restou uma bicicleta retorcida e alguns farrapos da sua roupa. A aldeia parou durante dias para os seus funerais.

        Quando deputado seguia para a capital, a aldeia parava para saudá-lo. A cerimônia decorria nas primeiras horas da manhã. Os habitantes da aldeia eram formalmente convidados para dele se despedirem na véspera. Havia aqueles que mesmo assim madrugavam para ir à machamba[2], mas à hora dos cumprimentos estavam na fila. Formavam-se duas longas filas por onde ele passava saudando os seus eleitores. Ninguém poderia duvidar: estava ali uma figura da aldeia, talvez a maior. Via-se na forma como o homem era celebrado, com cantos corais, coreografias populares, batuque e dança que levanta poeira.

        O homem era conhecido por possuir uma extensa biografia, mas sobretudo sublinhava-se a sua passagem heroica pela luta armada. Aliás, o momento fundador da nacionalidade tinha sido esse para os seus exaltadores. Era um homem predestinado, indubitavelmente: não teve uma infância como as outras, cedo os seus ombros carregaram a pátria. Não se falava, como os outros meninos, de uma pueril passagem pela profissão de pastor de gado. Fora professor, isso sim, dizia-se com ênfase, uma profissão nobre. Cedo havia de se envolver em atividades políticas. Teve que abandonar a sua aldeia e rumar a Norte, para juntar-se à luta. Regressou com a independência e não quis experimentar a vida da grande cidade, não que temesse seus perigos, as tentações que devoraram os revolucionários, a miragem que viu soçobrar muitos dos seus companheiros. Retornou à sua aldeia porque acreditava que era um homem do campo e lá tinha uma missão. Na verdade, aquela já não era a aldeia que deixara, mas muitos dos habitantes eram ainda do seu tempo. Vivia agora numa aldeia comunal e destacava-se nas atividades políticas.

        Caserna e os sonhos. Agora estavam distantes. Olhava e sorria. Tinha uma corrosiva ironia no olhar, mas não perdia a modéstia nem a fleuma nas longas reuniões do partido, no parlamento ou na aldeia.

        Muito se dizia também do deputado. Não foi ele que escolheu a mulher, foi-lhe atribuída pelo chefe. Isso lá no mato.

        "Queres chegar à independência? Não vês que estão ali muitas camaradas?"

        A pontaram para uma solteira. Assim desposara a mulher com quem vivia e partilhava sua vida. Acontece que o homem vivia alheio a esses boatos e prosseguia animado com a sua atividade. Frequentemente descia para a capital, hospedava-se no hotel do partido. Ali não faltava nada, mesmo quando lá fora tudo escasseava. Era o tempo das bichas[3] e do cartão do racionamento. O prato de que mais gostava no hotel era caldeirada de cabrito. Um Lada[4] vinha apanhá-lo e dirigia-se ao parlamento.

        Na aldeia onde vivia o deputado não havia um único automóvel. Por aquela rua, a única, de poeira e sem árvores, por vezes passavam bicicletas. Era uma rua sem o sobressalto dos motores, apenas com crianças que brincavam debaixo do sol quando não tinham aulas. Nos dias em que o deputado regressava da capital, a rua enganalava-se. Duas crianças eram preparadas para oferecer uma coroa de flores, que lhe era colocada sobre o pescoço. Muito gostava de vê-las a marchar, com passos sincronizados, como se fazia nos dias festivos da capital. O deputado cumprimentava toda a gente com delicadeza. O seu regresso era não só motivo de festa na aldeia, mas também de frenesim.

        O homem, depois dos cumprimentos da aldeia, dirigia-se à casa, onde lhe esperavam um balde de água quente para se banhar e comida diligentemente preparada pela mulher. Enquanto isso, os seus inúmeros filhos não o largavam, tentando saber que prensas o pai trouxera da grande cidade. mais tarde reunia-se com as personalidades da aldeia e fazia uma longa banja[5], contando episódios das viagens, as pessoas com quem falara, o contato com os altos dirigentes do partido e da Nação. O deputado repetia fielmente os discursos proferidos na tribuna do parlamento, argumentando sobre as vitórias da revolução, vituperando o inimigo. Os seus olhos cresciam, os gestos eram largos, a sua eloquência transformava-o numa figura mítica. Quem o ouvisse apenas poderia convencer-se de que estava ali o presidente, fazendo um daqueles seus discursos.

        O homem era o orgulho daquela remota aldeia, que vivia das machambas, de algum gado, mais do que nada. A água escasseava, mas havia um rio não muito longe, pelo qual as mulheres percorriam aqueles quilómetros com bidões à cabeça. As casas de adobe[6], muitas delas caiadas, hieráticas. Na varanda uma cama feita de palha, onde os homens se deitavam na modorra das tardes do tempo de calor. Havia ali um posto sanitário, muito precário, onde a velha parteira atendia a todo tipo de doentes. A árvore mais frondosa tinha uma gigantesca copa que fazia uma sombra enorme, capaz de albergar todas as crianças que aprendiam acocoradas. Era uma aldeia pobre, mas os seus habitantes eram felizes. O deputado gostava de o referir nos encontros em que participava quando relatava os progressos da sua terra.

        No dia em que foi conhecida a notícia da morte do deputado, os miúdos não tiveram aulas, as mamanas[7] regressaram cedo da machamba, os homens se reuniram na casa do mais velho dos aldeões. O deputado era um homem de uma certa idade, mas havia anciãos na aldeia, que tinham outra autoridade. A rua de poeira, onde perfilavam os habitantes da aldeia para receber a figura singular da terra, era um horizonte de tristeza e desolação. Os meninos recolheram-se. Não se ouviam as gargalhadas que atravessavam os dias, nem os gritos dos que chamavam pelos seus, apenas um ou outro galo cacarejava extemporâneo. Um profundo silêncio baixara com a poeira da rua.

        A velha parteira fechara o posto sanitário. Não tinha muitos doentes. Era uma situação de emergência. Foi encarregue de acompanhar e amparar a viúva. Outras mamanas também assomaram à porta da casa do deputado com a mesma missão, enquanto os homens tentavam uma saída para aquele imbróglio. Os filhos do falecido foram distribuídos pelas famílias mais próximas para brincarem com outras crianças.

        Os madodas[8] foram unânimes: um funeral condigno impunha-se. Mas antes de tudo era preciso resgatar o que sobrara do infausto encontro entre o homem e o animal naquela viagem fatídica do deputado. As notícias não eram animadoras. Só havia a bicicleta para testemunhar a violência da refrega. Mesmo a bicicleta, havia quem asseverasse, já vinha muito desfigurada. A peleja tinha sido de meter medo. Mas tinha que haver um funeral. Porém, não havia corpo para enterrar. O mais-velho por vezes rompia o seu silêncio proverbial e falava olhando para a imensidão do céu:

        "A alma do morto só descansa quando enterramos o seu corpo."

        Um outro, do grupo, interrogou-se:

        "Como havemos de vestir o luto se não enterrarmos o homem?

        A despeito formaram-se várias comissões. As reuniões e a azáfama se haviam apoderado de todos. A aldeia preparava-se para se curvar à memória e em homenagem ao seu mais ilustre filho, o deputado da Nação.

        "Ele merece um funeral de Estado!"

        Quase ninguém entendeu aquela frase desabrida, aquela enfática proclamação. As ideias sucediam-se:

        "Temos que construir um mausoléu."

        Também ninguém sabia o que significava aquela palavra que encerrava uma evidente grandiloquência. Apenas o professor, que era uma lenda da aldeia, se recordava do significado daquela estranha coisa que tinha sido invocada. Ele explicaria complicando:

        "Mausoléu é um sepulcro suntuoso."

        Mais confusão. O homem do partido, que fizera aquela eloquente proposta, encheu os pulmões de orgulho e rematou:

        "Mausoléu é um lugar onde se enterram os grandes. Enterram é um força de expressão. Na verdade, eles são depositados em gavetas."

        Sem discordar, houve quem atalhasse:

        "Os grandes, afinal, não estão depositados numa cripta?"

        "Sim, os nossos grandes descansam na cripta, mas esses são os grandes nacionais, outros assim como o deputado merecem também o nosso respeito, mas é um exagero fazer uma estrela como aquela construída na praça dos heróis à entrada da capital. Por isso, a ideia do mausoléu. podíamos propor às autoridades que se fizesse um mausoléu para a ilustre figura da nossa aldeia."

        O proponente di-lo com tamanho entusiasmo que ficara depois a olhar em volta à espera da anuência dos outros. O mais-velho, dono da casa, confirmou que era um homem sensato, coisa que se atinge também com a idade. Interrogou, derrubando os argumentos do homem que representava o partido:

        "Essa coisa de cripta faz-se com adobe e se cobre com capim?"

 

        A ideia de construir seja o que fosse estava deitada por terra. Foram discutidas outras hipóteses. A verdade é que toda a gente estava de acordo: o deputado teria umas exéquias fúnebres à sua altura, uma homenagem sentida de toda a população, mais nada de ideias estapafúrdias, nada de proselitismos.

        Depois, viriam certamente representantes de outras povoações, até da vila e da cidade, quem sabe um representante da própria Nação? Afinal, tratava-se de um eleito do povo. Era preciso providenciar alojamento para essas visitas insignes e seu respectivo acompanhamento. foram organizadas casas para os receber e uma comissão dos madodas avançou para recuperar a bicicleta ou aquilo que dela sobrava: os despojos da guerra.

        Estava decidido: seria sepultada a bicicleta, far-se-ia uma urna, que seria velada e enterrada como se o próprio dono se tratasse.

        "Só assim a alma do homem descansará."

        Ninguém se opôs e pareceu que a ideia era mesmo brilhante. A comissão das exéquias já estava no terreno, a comissão da logística e responsável por visitas desdobrava-se. Começaram os ensaios dos cânticos pela comissão das atividades culturais que funcionava na aldeia nos dias festivos como a data da independência e outras ocasiões. Sempre que uma figura importante desembarcava naquele lugar, mesmo o próprio deputado tinha sido agraciado inúmeras vezes com aqueles cânticos. Era uma mamana da OMM[9] que cuidava do assunto e, ao que parece, mostrava uma indubitável competência. A comissão da ornamentação tratou de colher flores silvestres das mais variadas. À entrada da casa do deputado havia uma coroa enorme e o percurso que foi traçado do lugar onde sairia a urna até ao cemitério foi igualmente enganalado.

        Nenhum pormenor escapou. Havia duas bandeiras apenas na aldeia. Uma por estrear, que viera com o administrador do distrito e fora guardada para ocasiões solenes; a outra estava rota. Ambas foram postas a meia haste. Os miúdos desenharam bandeiras nas folhas centrais dos cadernos e prenderam-nas com paus de caniço à entrada das casas. Vieram visitas de longe: o administrador, representantes de outras aldeias, uma alta figura que ninguém sabia identificar. A aldeia toda compareceu na manhã do funeral e concentrou-se junto do palanque que ficava num descampado que servia de campo de futebol para os miúdos. Quase todos envergavam roupa que denunciava o luto e tinham os rostos compungidos de dor e tristeza.

        A urna impunha num pequeno estrado. Foi coberta por capulanas[10], as bandeiras, as duas únicas que existiam não eram suficientes para todo o féretro. Os convidados tinham lugares sentados, assim como as autoridades locais e aqueles que se haviam deslocado para a cerimônia. A viúva e os nove filhos do deputado estavam sentados na primeira fila, do lado esquerdo, num banco sem costas, por onde passaria a enorme fila dos que lhes prestavam homenagem.

        O velório tinha sido marcado para as primeiras horas, o sol foi célere a atingir o rosto dos presentes. As mulheres cantavam. O chefe da célula do partido fez o elogio fúnebre, seguiram-se mensagens, antes de os homens da aldeia carregarem, compungidos, aquela enorme e disforme urna. O cortejo percorreu o trajeto indicado, os cantos e os acenos dos que se despediam do deputado são insequecíveis. Chegados ao cemitério houve mais elogios antes de a urna descer à terra.

 

        No final, houve lavagem de mão, em casa do defunto. A cerimônia do chá tinha muita gente e aí as conversas, nos círculos dos homens, já denunciavam que havia alguma descontração. os forasteiros começaram a despedir-se a meio da tarde para empreenderem a viagem de regresso. De repente, surgiu um burburinho e começaram a juntar-se pessoas. Chegara, não muito tempo antes, um mensageiro. O homem fizera tudo para chegar antes dos funerais da defunta bicicleta. Poré, houve percalços que o atrasaram pelo caminho. À sua volta estavam apenas os homens que haviam comparecido àquele último ritual de despedida do deputado. As mulheres mantinham-se num grupo à parte. O mensageiro caiu fatigado, sempre com a língua de fora. Ainda tentaram reanimá-lo. Estava morto antes de revelar o que lhe trouxera de tão longe.

 

 

1. Onde se passa a história?

A história inteira se passa em uma aldeia (sem localização especifica no livro.)

 

2. Em que tempo se passa o conto?

O tempo do é: passado. O tempo passado é retratado quando o narrador conta a história do falecido deputado e o que ele fez.

 

3. Clímax

 

O clímax do conto acontece quando os moradores da aldeia descobrem que no lugar do corpo do falecido deputado há uma bicicleta, item que retratava muito bem o mesmo.

 

4. Como o deputado morreu?

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5. Qual grande feito tornou o deputado muito conhecido?

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6. O que era oferecido ao deputado quando ele voltava à vila?

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7. O que sobrou da luta do deputado com o leão?

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8. Retire do texto uma frase que comprove a pobreza da vila.

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9. Quais eram as características do deputado.

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10. O mensageiro morre de exaustão sem dar a mensagem que trazia. Qual seria a notícia?

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A TERRA DOS MENINOS PELADOS - ATIVIDADES - PAGINA 07 A 27

FONTE:

https://armazemdetexto.blogspot.com/2021/05/conto-terra-dos-meninos-peldos.html#google_vignette

UM

         HAVIA UM MENINO diferente dos outros meninos. Tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Os vizinhos mangavam dele e gritavam:

         — Ó pelado!

        Tanto gritaram que ele se acostumou, achou o apelido certo, deu para se assinar a carvão, nas paredes: Dr. Raimundo Pelado. Era de bom gênio e não se zangava; mas os garotos dos arredores fugiam ao vê-lo, escondiam-se por detrás das árvores da rua, mudavam a voz e perguntavam que fim tinham levado os cabelos dele. Raimundo entristecia e fechava o olho direito. Quando o aperreavam demais, aborrecia-se, fechava o olho esquerdo. E a cara ficava toda escura.

P.7 

        Não tendo com quem entender-se, Raimundo Pelado falava só, e os outros pensavam que ele estava malucando.

        Estava nada! Conversava sozinho e desenhava na calçada coisas maravilhosas do país de Tatipirun, onde não há cabelos e as pessoas têm um olho preto e outro azul.

P.8         

DOIS

         UM DIA EM QUE ele preparava, com areia molhada, a serra de Taquaritu e o rio das Sete Cabeças, ouviu os gritos dos meninos escondidos por detrás das árvores e sentiu um baque no coração.

        — Quem raspou a cabeça dele? perguntou o moleque do tabuleiro.

        — Como botaram os olhos de duas criaturas numa cara? berrou o italianinho da esquina.

        — Era melhor que me deixassem quieto, disse Raimundo baixinho. Encolheu-se e fechou o olho direito. Em seguida, foi fechando o olho esquerdo, não enxergou mais a rua. As vozes dos moleques desapareceram, só se ouvia a cantiga das cigarras. Afinal as cigarras se calaram.

P.9

        Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tatipirun, coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto. Sentiu uma grande surpresa ao notar que Tatipirun ficava ali perto de casa. Foi andando na ladeira, mas não precisava subir: enquanto caminhava, o monte ia baixando, baixando, aplanava-se como uma folha de papel. E o caminho, cheio de curvas, estirava-se como uma linha. Depois que ele passava, a ladeira tornava a empinar-se e a estrada se enchia de voltas novamente.

P.10

    TRÊS

    — QUEREM VER que isto por aqui já é a serra de Taquaritu? pensou Raimundo.

    — Como é que você sabe? roncou um automóvel perto dele.

        O pequeno voltou-se assustado e quis desviar-se, mas não teve tempo. O automóvel estava ali em cima, pega não pega. Era um carro esquisito: em vez de faróis, tinha dois olhos grandes, um azul, outro preto.

        — Estou frito, suspirou o viajante esmorecendo.

        Mas o automóvel piscou o olho preto e animou-o com um riso grosso de buzina:

        — Deixe de besteira, seu Raimundo. Em Tatipirun nós não atropelamos ninguém.

        Levantou as rodas da frente, armou um salto, passou por cima da cabeça do

P.11 

menino, foi cair cinquenta metros adiante e continuou a rodar fonfonando. Uma laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:

        — Faz favor.

        — Não se incomode, agradeceu o pequeno. A senhora é muito educada.

        — Tudo aqui é assim, respondeu a laranjeira.

        — Está se vendo. A propósito, por que é que a senhora não tem espinhos?

        — Em Tatipirun ninguém usa espinhos, bradou a laranjeira ofendida. Como se faz semelhante pergunta a uma planta decente?

        — É que sou de fora, gemeu Raimundo envergonhado. Nunca andei por estas bandas. A senhora me desculpe. Na minha terra os indivíduos de sua família têm espinhos.

        — Aqui era assim antigamente, explicou a árvore. Agora os costumes são outros. Hoje em dia, o único sujeito que ainda conserva esses instrumentos per-

P.12 

-furantes é o espinheiro-bravo, um tipo selvagem, de maus bofes. Conhece-o?

        — Eu não senhora. Não conheço ninguém por esta zona.

        — É bom não conhecer. Aceita uma laranja?

        — Se a senhora quiser dar, eu aceito.

        A árvore baixou um ramo e entregou ao pirralho uma laranja madura e grande.

        — Muito agradecido, dona Laranjeira. A senhora é uma pessoa direita. Adeus! Tem a bondade de me ensinar o caminho?

        — É esse mesmo. Vá seguindo sempre. Todos os caminhos são certos.

        — Eu queria ver se encontrava os meninos pelados.

        — Encontra. Vá seguindo. Andam por aí.

        — Uns que têm um olho azul e outro preto?

        — Sem dúvida. Toda gente tem um olho azul e outro preto.

        — Pois até logo, dona Laranjeira. Passe bem.

        — Divirta-se.

P.13,

Imagem

p.14

     QUATRO

        RAIMUNDO CONTINUOU a caminhada, chupando a laranja e escutando as cigarras, umas cigarras graúdas que passeavam sobre discos de vitrola enormes. Os discos giravam, soltos no ar, as cigarras não descansavam — e havia em toda a parte músicas estranhas, como nunca ninguém ouviu. Aranhas vermelhas balançavam-se em teias que se estendiam entre os galhos, teias brancas, azuis, ama-relas, verdes, roxas, cor das nuvens do céu e cor do fundo do mar. Aranhas em quantidade. Os discos moviam-se, sombras redondas   projetavam-se no chão, as teias agitavam-se como redes. Raimundo deixou a serra de Taquaritu e chegou à beira do rio das Sete Cabeças,

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        onde se reuniam os meninos pelados, bem uns quinhentos, alvos e escuros, grandes e pequenos, muito diferentes uns dos outros. Mas todos eram absolutamente calvos, tinham um olho preto e outro azul.

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CINCO

        O VIAJANTE RONDOU por ali uns minutos, receoso de puxar conversa, pensando nos garotos que zombavam dele na rua. Foi-se chegando e sentou-se numa pedra, que se endireitou para recebe-lo. Um rapazinho aproximou-se, examinando-lhe, admirado, a roupa e os sapatos. Todos ali estavam descalços e cobertos de panos brancos, azuis, amarelos, verdes, roxos, cor das nuvens do céu e cor do fundo do mar, inteiramente iguais às teias que as aranhas vermelhas fabricavam.

        — Eu queria saber se isto aqui é o país de Tatipirun, começou Raimundo.

        — Naturalmente, respondeu o outro. Donde vem você?

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        Raimundo inventou um nome atrapalhado para a cidade dele que ficou importante:

        — Venho de Cambacará. Muito longe.

        — Já ouvimos falar, declarou o rapaz. Fica além da serra, não é isto?

        — É isso mesmo. Uma terra de gente feia, cabeluda, com olhos de uma cor só. Fiz boa viagem e tive algumas aventuras.

        _ Encontrou  a Caralâmpia?

        É uma laranjeira?

        Que laranjeira! É menina.

        _ Como ele é bobo! Gritaram todos rindo e dançando. Pensa que Caralâmpia é laranjeira.

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SEIS

        RAIMUNDO LEVANTOU-SE  trombudo e saiu à pressa, tão encabulado que não enxergou o rio. Ia caindo dentro dele, mas as duas margens se aproximaram, a água desapareceu, e o menino com um passo chegou ao outro lado, onde se escondeu por detrás dum tronco. A terra se abriu de novo, a correnteza tornou a aparecer, fazendo um barulho grande.

        — Por que é que você se esconde? perguntou o tronco baixinho. Está com medo?

        — Não senhor. É que eles caçoaram de mim porque eu não conheço a Caralâmpia.

        O tronco soltou uma risada e pilheriou:

         — Deixe de tolice, criatura. Você se afogando em pouca água! As crianças estavam brincando. É urna gente boa.

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        — Sempre ouvi dizer isso. Mas debicaram comigo porque eu não conheço a Caralâmpia.

        — Bobagem. Deixe de melindres.

        — É mesmo, concordou Raimundo. Eu pensava nos moleques que faziam tro-ça de mim, em Cambacará. O senhor está descansando, heim?

        — É. Estou aposentado, já vivi demais.

        Raimundo levantou-se:

        — Bem, seu Tronco. Eu vou chegando.

        — Espera aí. Um instante. Quero apresentá-lo à aranha vermelha, amiga velha que me visita sempre. Está aqui, vizinha. Este rapaz é nosso hóspede.

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SETE

        A ARANHA VERMELHA balançou-se no fio, espiando o menino por todos os lados. O fio se estirou até que o bichinho alcançou o chão. Raimundo fez um cumprimento:

        — Boa tarde, dona Aranha. Como vai a senhora?

        — Assim, assim, respondeu a visitante. Perdoe a curiosidade. Por que é que você põe esses troços em cima do corpo?

        — Que troços? A roupa? Pois eu havia de andar nu, dona Aranha? A senhora não está vendo que é impossível?

        — Não é isso, filho de Deus. Esses arreios que você usa são medonhos. Tenho ali umas túnicas no galho onde moro. Muito bonitas. Escolha uma.

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        Raimundo chegou-se à árvore próxima e examinou desconfiado uns vestidos feitos daquele tecido que as aranhas vermelhas preparam. Apalpou a fazenda, tentou rasgá-la, chegou-a ao rosto para ver se era transparente. Não era.

        — Eu nem sei se poderei vestir isto, começou hesitando. Não acredito.

        — Que é que você não acredita? perguntou a proprietária da alfaiataria.

        — A senhora me desculpa, cochichou Raimundo. Não acredito que a gente possa vestir roupa de teia de aranha.

        — Que teia de aranha! rosnou o tronco. Isso é seda e da boa. Aceite o presente da moça.

        — Então muito obrigado, gaguejou o pirralho. Vou experimentar.

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OITO

        ESCOLHEU UMA TÚNICA AZUL, escondeu-se no mato e, passados minutos, tornou a mostrar-se vestido como os habitantes de Tatipirun. Descalçou-se e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva. Lá em cima os discos enormes das vitrolas giravam; as cigarras chiavam músicas em cima deles, músicas como ninguém ouviu; sombras redondas espalhavam-se no chão.

        — Este lugar é ótimo, suspirou Raimundo. Mas acho que preciso voltar. Preciso estudar a minha lição de geografia.

        Nisto ouviu uma algazarra e viu através dos ramos a população de Tatipirun correndo para ele:

        — Cadê o menino que veio de Cambacará?

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RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. São Paulo: Record, 1991.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 133-7.

 Entendendo o conto:

01 – Como eram fisicamente as pessoas e seres de Tatipirun?

      A maioria dos habitantes se assemelhava ao menino, pois tinha a cabeça pelada e um olho preto e outro azul. Até mesmo o automóvel tinha, no lugar dos faróis, dois olhos parecidos com os do menino e a laranjeira não tinha espinhos.

 

02 – Identifique e copie o trecho em que Raimundo passa de seu lugar de origem para a terra de Tatipirun.

     “Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tatipirun, coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto.”

 

03 – Ao chegar àquele novo mundo, Raimundo conhece várias personagens. Como elas agem com o menino? Transcreva um trecho do texto que possa ter como tema uma atitude de gentileza.

      Elas eram dóceis, compreensivas e gentis, ofereciam a ele todo tipo de assistência que contribuísse para o seu bem-estar. Um exemplo disso está no seguinte trecho:

        “[...] Uma laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:

        — Faz favor.

        — Não se incomode, agradeceu o pequeno. A senhora é muito educada.”

04 – Releia o que diz a aranha a respeito das roupas de Raimundo:

        “[...] Esses arreios que você usa são medonhos. [...]”.

a)   O que a aranha quis dizer com essa frase?

 Que as roupas eram desagradáveis, não eram nada confortáveis; impediam os movimentos do menino e não o deixavam à vontade.

 b)   O que a frase revela sobre a maneira como viviam os habitantes da terra visitada pelo menino?

 Revela que os habitantes de Tatipirun viviam mais confortavelmente e com maior liberdade e harmonia do que os do lugar de origem de Raimundo.

 c)   Raimundo gostou do estilo de vida daquele lugar? Como você chegou a essa resposta?

 Sim, ele manifestou várias vezes seu encantamento enquanto ia conversando com os habitantes que encontrava. Exemplo possível: “Este lugar é ótimo, suspirou Raimundo.”

 

05 – Releia o diálogo a seguir, retirado do texto:

        “[...] Uma laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:

        — Faz favor.

        — Não se incomode, agradeceu o pequeno. A senhora é muito educada.

         — Tudo aqui é assim, respondeu a laranjeira.

        — Está se vendo. A propósito, por que é que a senhora não tem espinhos?

        — Em Tatipirun ninguém usa espinhos, bradou a laranjeira ofendida. Como se faz semelhante pergunta a uma planta decente?”

·        Releia a última frase do diálogo e identifique o trecho em que há emprego de linguagem metafórica. Em seguida, explique a metáfora.

A linguagem metafórica é usada no trecho “ninguém usa espinhos”. A metáfora se dá pela comparação entre o espinho, que é algo que machuca, fere, e as atitudes agressivas dos meninos de onde Raimundo morava. Em Tatipirun as pessoas não eram indelicadas umas com as outras, não havia troca de ofensas.

 06 – Quais eram as reações dos meninos da rua onde Raimundo morava diante da aparência do garoto? Em sua opinião, por que isso ocorria?

      A aparência de Raimundo gerava discriminação, gozarão e maus-tratos por parte dos outros meninos. Provavelmente, isso acontecia porque eles não aceitavam o fato de Raimundo ser diferente deles.

 07 – E em Tatipirun? De que modo a aparência de Raimundo era encarada pelos habitantes desse lugar?

      Em Tatipirun, a aparência de Raimundo era o motivo de sua identificação com os habitantes do lugar, já que os meninos de lá tinham as mesmas características e ele se sentia acolhido por todos.

 08 – Identifique no texto quais personagens estão relacionadas aos universos indicados a seguir:

 a)   Ao mundos dos humanos. 

Os outros meninos.

 b)   Ao universo dos objetos materiais (inanimados que se tornaram animados na história).

 O automóvel.

 c)   Ao mundo animal.

 A aranha.

 d)   Ao mundo vegetal.

 A laranjeira e o tronco.

 09 – De que forma os elementos mágicos estão presentes na terra dos meninos pelados?

      Seres do mundo animal e vegetal e objetos inanimados que adquirem características humanas (agem e conversam com o menino); automóvel, aranha, laranjeira, ladeira; havia discos e vitrolas que giravam no ar, músicas estranhas, túnicas feitas de teia de aranha, cigarras chiando músicas que nunca ninguém ouviu, sombras redondas espalhadas no chão.

10 – Localize no texto e copie um trecho que você considere belo e poético, que lhe chame a atenção pela maneira como o autor seleciona e combina as palavras. Explique por que escolheu esse trecho.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: “Descalçou-se e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva. Lá em cima os discos enormes das vitrolas giravam; as cigarras chiavam músicas em cima deles, músicas como ninguém ouviu; sombras redondas espalhavam-se no chão.”.


ALUNO:____________________________________________________Turma:_____Data:____

A TERRA DOS MENINOS PELADOS – SALA DE LEITURA- Prof:_________________________

RESPONDA:

 

1. Como eram as pessoas em Tatipirun? p.8

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2. Por que as crianças faziam Bullying com Raimundo?

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3. Por que não era preciso subir as ladeiras em Tatipirun? P.10

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4. O que havia no lugar dos faróis nos carros em Tatipirun? P.11

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5. “Em Tatipirun ninguém usa espinhos” Qual o significado da expressão usar espinhos?p.12

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6. Aproximadamente quantos meninos Raimundo encontrou Na beira do Rio das Sete Cabeças? P.16

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7. Qual o nome da cidade em que Raimundo disse que morava? P.17

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8. Por que os meninos de Tatipirun riram de Raimundo? P.19

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9. O que os moradores de Tatipirun achava da aparência das pessoas de Cambacará? P.p.20

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10. Do que a Aranha chamou as roupas de Raimundo?

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11. Por que Raimundo precisava voltar?

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12. Retire do texto uma frase em que se utilizou a linguagem FICCIONAL, fantasiosa.

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13. Qual o significado das palavras presentes no texto?

a) alvos p.16 _____________________________________

b) calvos p.16  ______________________________________

c) trombudo p.21 __________________________________

d) fazenda p.26 _____________________________________

e) berrou  p.9 _____________________________________

 

13. Qual o título do livro?

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