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quarta-feira, 19 de junho de 2024

PRIMO BITÚ - CONTO AFRICANO - ATIVIDADES

 

PRIMO BITÚ - Fátima Bettencourt

https://core.ac.uk/download/pdf/38680768.pdf

 

        No dia de Ano Novo, mais fatal que o destino, chegava todos os anos Primo Bitú à nossa casa, bem de manhãzinha.

        Ainda no rescaldo do Natal, nós, os meninos da casa também madrugávamos, agarrados às cometas, bolas e bonecas de farrapos no limite do transitório encanto. Já não causavam o deslumbramento de uma semana atrás, mas havia sempre e possibilidade de se recriar a beleza perdida da boneca acoplando-lhe uma cabeleira com bonitas e frescas barbas de milho, que a nossa horta do Mato Inglês produzia praticamente todo o ano. Umas havia da cor de ouro velho, brilhantes e sedosas que logo transformavam a feia boneca de feições espalmadas numa linda vampe. Mal imaginava eu na minha infância tão simples, que tinha nas mãos e percursora da sofisticada Barbie que muitos anos mais tarde viria a encantar a meninice das minhas filhas e atrapalhar os meus orçamentos sempre deficitários de jovem mãe, as toiletes e adornos da Barbie não mais colhidos da natureza, adquiridas a peso de ouro.  

         Os meninos macho da casa, esses rapidamente descobriam que a flauta de cana com os buraquinhos vedados por finíssimas teias de aranha tinha possibilidades melódicas de longe superiores às da cometa do Pai natal. Esta então era utilizada como moeda de troca e ia deslumbrar os meninos de nhô Brás, do outro lado do pequeno vale, que em contrapartida esvaziavam os bolos de piões, guitas e botões.

        Por aí se vê que a nossa manhã do dia de Janeiro era ocupadíssima, sem espaços mortos. Como então arranjar tempo e paciência para Primo Bitú com a sua cara bexiguenta, os seus olhos aguados e nebulosos e as enormes orelhas que no ultimo Janeiro descobríramos serem transparentes?

        Primo Bitú usava sempre casaco e bengala. O seu olhar soturno condizia com a fala pousada e grave. Parecia estar sempre triste. Estendia às pessoas uma mão fria e frouxa como se estivesse apresentado condolências. Tinha a mania de nos abençoar com aquela mesma mãe de casa de morto inspirando-nos mais medo que qualquer outro sentimento.

        Meu pai então para evitar que passássemos do medo ao gozo, falava do primo com grande entusiasmo e mostrava-nos que ela era pessoa muito direita a que devíamos respeitar.

        Naquela manhã, primo Bitú chegara mais cedo que de costume. Ainda se ouvia o pilão na preparação da farinha para cuscus. Meu pai, mais madrugador, fora à fora buscar um cachinho de banana prata especialmente guardado para aquele dia de festa.

        Na verdade trata-se apenas de um subterfúgio para encobrir o seu principal objectivo que era matar um cabrito para o almoço mas isso podia dizer.

        Havia muita criação em nossa casa, e a nossa relação com os filhotes era tão íntima e cheia de ternura que matar um deles, à vista dos meninos, estava totalmente fora de questão. Cabrito, franguinha, leitão, burrinho, cada um tinha um nome próprio e era o bichinho de estimação de alguém da casa e o companheiro de brincadeira dos garotos.

        É certo que víamos a carne aparecer à nossa mesa mas sempre surgia alguma história que justificava a sua origem ou o desaparecimento de um bichinho mais querido. Só as mortes por doença eram declaradas e choradas como daquela vez que o nosso burrinho “Crêtcheu” apareceu morto e não queríamos enterrá-lo. Por fim lá assistimos ao enterro empunhando ramos de flores bravias que íamos orvalhando com as nossas lágrimas. Durante o dia ficamos meio macambúzios, aquele bichinho que parecia um boneco de pelúcia e saltava conosco pelos pilares da horta não estava mais ali e isso nos causava uma dor enorme. Foi nesse dia que a nossa galinha “dourada”, sumida havia dias, surgiu no terreiro com um bando de pintainhos felpudos atrás. Esquecemos “Crêtcheu” temporariamente e só à tarde deparamos coma mãe do burrinho, nessa manhã enterrado, de orelhas murchas, a ração intacta, toda desconsolada. Então, ocorreu-nos que se ela sentisse alguém a mamar o leite pensaria que era o filho e se sentiria melhor. Sem mais delongas passámos à acção e quando a minha mãe descobriu estávamos a mamar o leite da besta havia dias. Salvou-nos Nhô Cirilo, um dos empregados, que garantiu que o leite de burra era excelente para os pulmões e que muita doença era curada com ele.

        Salvo o devido respeito por Primo Bitú, o burrinho “Crêtcheu” tem um cantinho muito especial nas minhas recordações. Daí o parêntesis e a inesperada homenagem. Fomos logo avisar a minha mãe que achou que o melhor era oferecer-lhe uma cadeira ali mesmo no terreiro, a casa não estava ainda devidamente arrumada para a gente de fora. Era dia e os preparativos muito mais complicados.

        Da enorme mala de madeira a minha mãe já retirara uma colcha de seda quase branca e uma toalha com renda à volta e ia começar a arranjar tudo, mas essa visita tão matinal era quase um contratempo. Se bem que ela nunca tivesse falhado não anos anteriores, nos alimentávamos a esperança de poder um dia sentar-nos à mesa do café sem aquela figura sinistra mastigando lentamente e sorvendo o café com ruídos. Não era ainda dessa vez que o nosso desejo se realizava.

        A minha mãe, decidida, colocou ela própria a cadeira no terreiro com um pedido de desculpas “sabe, primo, você é de casa, eu estou a dar um jeitinho lá dentro… é um dia especial, o primo não leva a mal”. Lá se foi a minha mãe às suas tarefas deixandonos ali para fazer”sala” ao primo, eu com a minha boneca de cabeleira acobreada bem presa ao peito, os meus irmãos cochichando coisas, o mais novinho cheio de medo não conseguia parar de fitar o olho aguado e mortiço do primo, um olhar de réptil hipnotizando um passarinho.  

        Fomos salvos por meu pai que regressou da horta com um cabritinho a que já tirara a pele, não fôssemos nós reconhecer o “pintadinho” tão nosso conhecido. Como sempre meu pai recebeu primo Bitú com exageradas demonstrações de alegria completamente incompreensíveis para nós. Como poderia aquela aparição causar alegria a alguém? Meu pai, porém, não entendia isso. Primo Bitú largara de sua casa de Monte Sossego, galgara a pé os oito quilómetros até Mato Inglês para dar as Boas Festas a uns parentes muito estimados e tínhamos que o receber engalanados em arco e ser amáveis durante o tempo que ele ali estivesse.

        Quanto mais crescidos ficávamos, menos paciência tínhamos para aquele visitante, de pedra e cal na nossa mesa todo o dia de Janeiro que Deus punho no mundo, desde que a minha memoria se lembrava. Sentíamos roubados das atenções dos mais velhos, das brincadeiras habituais, a minha mãe atenta ao codé e sua preferência por catchupa guisado dentro do café, procurando conter a minha obsessão pelas boas maneiras, capaz era eu de chamar a atenção de um visitante que cometesse alguma gafe enfim um clima diferente, quase tenso, todos preocupados com o primo “esta linguiça está muito saborosa, eu mesa fiz, coma um bocadinho”, “mais café, está quentinho!” a minha mãe sempre apaparicando o primo, os três filhos ali, ao Deus dará, nem isso talvez, pois qualquer deslize era prontamente anotado e silenciosamente reprovado com uma mirada certeira. Mas que café mais comprido! E que visitante mais indesejável! Acontecimentos posteriores viriam a mostrar como estávamos enganados.

       Naquela manhã, a conversa tombou para novidades da morada. Primo Bitú animou-se. Uma centelha pareceu soltar dos seus olhos pois ele trazia uma grande novidade. Tinham desencadeado uma grande campanha de vacina. A varíola que grassava pela costa africana ameaçava atingir-nos. Tudo inútil, dizia ele, aqueles doutores, todos uns ignorante nada entendiam daquela doença.

       – Imagine – dizia desdenhoso – querem curar bexiga com uma canetinha de arranhar nos braços das pessoas. Eles deviam era vir ter comigo porque eu já tive bexiga em Santo Antão, até que já ninguém contava que eu conseguisse sobreviver. Basta dizer que me puseram num casinhoto para morrer e até os pássaros brancos já andavam por ali a rondar. Estão a ver que eu conheço esta doença. Os doutores se quiserem saber alguma coisa sobre bexigas, eu vou ditando e eles vão escrevendo – aí meu pai não se conteve e caiu no riso. Mais impressionados estávamos nós com o calor e a animação que de repente se revelara naquele homem via de regra tão circunspecto. Aquele que estava ali explanando originais teorias sobre varíola era certamente alguém que não conhecíamos. A sua supremacia sobre a ciência médica nos animava a dar largas a nossa curiosidade. Acabámos descobrindo que o Primo Bitú era um falador interessantíssimo com resposta pronta para tudo e mil teorias pessoais elaborados numa vida longa e próxima e cheia de peripécias. Afinal ele não era soturno nem triste. Não era pois necessário programar a próxima visita para dali a um ano. Podia ser já no próximo Domingo. Insistimos até arrancar-lhe a promessa de passar a visitar-nos semanalmente. Aceitou logo e foi acrescentando que apesar de estarmos a crescer no campo éramos uns meninos espertos e sobretudo muito educados.

        O sol começava a descer para o Monte Cara quando o primo Bitú deixou o Mato inglês em direcção à cidade depois de um lanchinho de chá de cidreira, batata assada, queijo e doce caseiro. Despediu-se com muitos abraços e vénias, a mão um pouco mais quente, o coração também. Partiu segurando a bengala, pela vereda que ligava a nossa casa à estrada. Ficámos no terreiro vendo a sua pontinha de saudade. Felizmente só faltavam quatro dias para ele voltar.

        À noite, à volta da mesa, olhando a chama trémula do candeeiro a petróleo, o nosso silêncio era cheio de subentendidos e uma compreensão nascente das coisas da vida. Naquele dia crescêramos um pouco mais.

 

1. Qual o assunto principal do texto?

Visita do Primo Bitú à casa dos pais da narradora.

 

2. Quais são as personagens do texto?

Primo Bitú, a narradora, os dois irmãos, a mãe e o pai da narradora, Nhô Cirilo e Nho Brás (personagem figurante).

 

3. Onde se passou esta história?

Em Cabo Verde, Mato Inglês.

 

4. Quando aconteceu esta história?

1º de Janeiro – Dia do Ano Novo.

 

5. Qual foi a alternativa que a narradora encontrou para restaurar a boneca?

 A narradora fez uma cabeleira com bonitas e frescas barbas de milho.

 

6. As crianças não suportavam o primo Bitú. Retire do texto uma frase que justifique essa afirmação.

Não tinham tempo e nem paciência.

 

7. Por que as crianças mamaram o leite da burra?

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8. Por que motivo o pai trouxe o cabrito já sem a pele?

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9. No final os meninos acabam gostando do primo, por quê?

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10. Qual o nome do conto e o nome da autora?

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