PáginasDESCRITOR

domingo, 24 de março de 2024

CONTRA TODOS – CONTO – ELIANA MARTINS

 

CONTRA TODOS – CONTO – ELIANE MARTINS

Uma vez por semana, aquela garota, cabelos encaracolados, descia o morro em direção à zona sul. Passava pelas ruelas da favela despertando o ciúme de Munga.

— Vai aonde, rebolando desse jeito?

Ela, sem dar ouvidos, seguia em frente.

O dr. Laguna, advogado especialista em heranças, havia recebido um palacete antigo como pagamento de honorários frente a um complicado inventário.

A familia Laguna, composta apenas do advogado, sua esposa Carla e o filho Fernando, perdia-se no meio daquele lugar enorme.

A única preocupação do dr. Laguna era aumentar seu patrimônio. Para isso não media esforços.

Já Carla, mulher atraente, não dava importância a coi­sa alguma que não fosse seu bem-estar, amigos, compras, viagens.

Fernando, bonito, alto e ruivo, adolescia entre o pai atarefado e ausente e as futilidades da mãe.

Interessado em cinema, estressava o dr. Laguna, que o queria na faculdade de Direito.

Sempre que a garota vinha entregar a roupa que sua mãe passava, havia anos, para a família, Carla Laguna ad­mirava sua beleza.

   Você não tem medo de descer o morro sozinha, Lucimar?

A garota sorriu com o elogio, deixando à mostra os dentes branquinhos.

Por um motivo ou outro, Fernando nunca estava em casa quando Lucimar aparecia. Naquele dia, porém, ao sair, cruzou com ela. Parou para admirar aquela garota cor de jabuticaba e dentes de marfim.

Lucimar tinha exatamente a idade dele e parecia saí­da de um filme.

   Será que é quem eu tô pensando? — perguntou ele, reconhecendo a companheira de brincadeiras de infância, quando a mãe da garota era mensalista em sua casa. — Lu­cimar?!

   Eu mesma, Nando. — Ela o chamou pelo apelido.

   Puxa vida! Que linda você ficou!

Lucimar deu risada.

   Você também não fica atrás.

Fernando até esqueceu para onde ia. Ficou ali, ao lado dela, batendo papo e recordando a infância.

Já era quase noite quando a garota mais bonita da comunidade subiu o morro trazendo um novo pacote de roupa lavada dos Laguna para a mãe passar.


Munga e sua turma jogavam conversa fora no barzi­nho improvisado na frente de uma casa.

    Rebola, morena, mas rebola pra mim — Munga disse e, levantando-se rapidamente, enlaçou a cintura de Lucimar.

O pacote de roupa caiu no chão.

   Me larga, Munga!

   Você me deixa louco, morena!

   Me solta!

Só o dono do bar se dispôs a socorrer a garota, sob os protestos de Munga.

   Se toca, ô malandro! Se mete com a tua vida. —Largou a garota e saiu, sem pagar a conta.

Fernando não pensava em mais nada a não ser em Lu­cimar. A mãe reparou.

    O que deu em você, Nandinho? Anda mais no mundo da lua que antes.

   Mãe, onde mora agora a Regina, nossa ex-empre­gada?

   Que eu saiba, no mesmo lugar de sempre: o Morro do Bumba. Mas por que foi se lembrar dela?

Fernando não sabia se contava ou não o porquê. Mas acabou dizendo:

   É que vi a Lucimar aqui em casa outro dia. Carla lembrou-se da beleza da garota.

   Era unia pirralha magricela, mas virou uma linda garota. Porém_ não é para você, viu, Nandinho?! Foram amiguinhos de infância e basta. Pare por aí, entendeu?

Fernando nem ouviu o comentário da mãe. Pegou a mochila e foi saindo.

  Aonde vai?

  Fazer trabalho na casa de um amigo.

Quando saía, cruzou com o pai.

  Ouvi mal ou você disse que ia estudar?

  Ouviu bem.

  Que maravilha! Esse é o caminho para a faculdade de Direito: estudar.

Lucimar também não se esquecia daqueles olhos cas­tanhos e cabelos ruivos de Fernando. Como podia ter fica­do longe dele durante tantos anos?

A semana custava a passar, tanto ela ansiava pelo dia de voltar à casa dos Laguna.

Fernando, agora, esperava por ela todas as vezes. Em uma delas, beijou-a. Ela retribuiu. Uma amizade de infân­cia, aos poucos, se transformava em amor.

Carla surpreendeu os dois nesse beijo. Alertou Lu­cimar para que não misturasse amizade com outra coisa. Fernando e ela pertenciam a mundos diferentes. Melhor que não voltasse mais àquela casa. Falaria com Regina.

Fernando se revoltou. Saía de casa como se fosse ao colégio, mas ficava perambulando pelos lados do Morro do Bumba, sem coragem de subir.

Lucimar perdeu a alegria.

Regina foi dispensada do trabalho da família Laguna.

Munga continuava seguindo Lucimar quando ela ia e voltava da escola. Naquela dia, atacou de novo. Escon­dido, abordou-a no pé do morro. A garota, ao tentar se desvencilhar, derrubou a mochila mal fechada. Cadernos e outras coisas rolaram no chão, inclusive uma foto de Fer­nando. Munga pegou.

   Ah, agora descobri o culpado dessa tristeza toda! E pode crer, já vi esse enferrujado rondando o morro. Ele que me aguarde.

Lucimar se desesperou.

   Não, Munga! Não faz mal pra ele, pelo amor de Deus!

   Vai ver só o que vou fazer com garota minha nin­guém mexe.

Lucimar não disse nada. Recolheu suas coisas e saiu correndo, coração aos saltos, morro acima.

Em vão Fernando esperou por ela junto ao pé do morro. Tinha se atrasado. Queria ver Lucimar chegando da escola, fazer uma surpresa. Mas quem ele encontrou foi Munga, olhos injetados de ódio.

   Quer encrenca, ferrugem? Pois encontrou.

Foi quando um carro de polícia, que fazia a ronda noturna nas proximidades do Morro do Bumba, encon­trou Fernando desacordado.

Enquanto isso, um carro de bombeiros subia o morro para salvar o que pudesse da casa de Regina e Lucimar...

A primeira palavra que Fernando disse, quando acordou no hospital, foi "Lucimar".

O pai e a mãe, na iminência de perdê-lo, deixaram de lado o orgulho e mandaram buscar a garota; então soube­ram do incêndio da casa, provocado por Munga.

Semanas depois, com Fernando já recuperado, Re­gina e Lucimar chegaram à residência dos Laguna para ficar. Haviam perdido tudo e, afinal, aquela casa era muito grande só para os Laguna. Regina voltaria a trabalhar para Carla. A menina continuaria os estudos e ajudaria a mãe.

 Munga, sentindo-se vingado, esqueceu da existência de Lucimar e dele ninguém mais ouviu falar.

O que o futuro reservava para Fernando e Lucimar era uma incógnita. Mas de uma coisa não se podia duvidar: aquele amor juvenil, mas tão intenso, tinha vencido todos os preconceitos.

 

1. A narrativa ocorre em dois espaços. Quais são eles?

_____________________________________________________________________

2. Quais as personagens da narrativa?

_____________________________________________________________________

3. Regina trabalhava para a família Laguna. Como era o trabalho de Regina quando Lucimar era mais nova? E depois que trabalho Regina passou a fazer?

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

4. Fernando, bonito, alto e ruivo, adolescia entre o pai atarefado e ausente e as futilidades da mãe. De acordo com o texto as futilidades da mãe era o quê?

____________________________________________________________________________

 

5. O que Munga era de Lucimar?

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

 

6. O que o pai de Fernando queria que ele fosse?

_________________________________________________________________

 

7. A mãe de Fernando gostou de ver o filho beijando a menina? Por quê?

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

 

8. Por que a mãe passou a apoiar o namoro de Fernando e Lucimar?

__________________________________________________________________________

 

9. O que Munga fez para se vingar?

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

 

10. “Mas de uma coisa não se podia duvidar: aquele amor juvenil, mas tão intenso, tinha vencido todos os preconceitos.” A quais preconceitos presente no texto esse fragmento se refere?

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

 

 

11.As palavras abaixo foram retiradas do texto.  Complete os espaços com a letra certa.

a) JAB___TICABA (U,O)

b) MO___ILA (X,CH)

c) INTEN__O (Ç,S,SS)

d) SURPRE__A (S,Z)

e) TRISTE___(S,Z)

 

12. Acentue as palavras se necessário.

a) INVENTARIO

b) DICIONARIO

c) RESIDENCIA

d) ADOLESCENCIA

e) CIUME

f) SAUDE

 

13. Correlacione as colunas:

(1) Inventário                    (   ) soltar

(2) Honorário                    (   ) residência grande

(3) Incógnita                     (   ) pagamento

(4) Desvencilhar               (   ) desconhecido

(5) Palacete                      (   ) relação bens deixado por pessoa falecida

sábado, 23 de março de 2024

CHEFIA E PELANCA - CONTO - ELIANA MARTINS

CHEFIA E PELANCA

As festas de fim de ano da família eram demais! Tinham um sítio, herança de avó para pai e de pai para filho. Lugar delicioso. Casa cheia de quartos e varandas, onde sempre cabia mais um.

Leila adolescia. Mais ou menos uns treze anos. Ado­rava levar os amigos para o sítio, para curtirem o salão de jogos, a piscina e o pomar, repleto de frutas variadas.

A maior alegria da garota, no entanto, era o cachorro Chefia, que ela havia ganhado do avô quando era bem pe­quena. Mas morava em apartamento...

  Cachorro em apartamento, nem pensar! — disse o pai.

    Eu que não tenho tempo de cuidar! — disse a mãe. E lá se foi o Chefia morar no sítio, quando Leila ia para lá, era uma festa. O cachorro lambia, balançava o rabo, chegava a se urinar de tanta fe­licidade. Quando ela ia embora, Chefia ficava pelo menos uns quatro dias amuado e sem apetite. Só se distraía corren­do atrás do Pelanca, o peru de estimação do vó Leocádio.

O cachorro odiava o peru, porque o velhote cuidava dele como se fosse um filho. Nas tardes frescas do sítio.
quando o vô se sentava na varanda para apreciar o fim do dia, Pelanca subia a escadinha, ficava de pé, ao lado da cadeira de balanço, e vô Leocádio alisava aquela pelanca vermelha que pendia do pescoço dele. Por isso tinha lhe dado esse nome.

          Glu-glu-glu...

          Pelanca, Pelanquinha... — dizia o avô, enquanto o peru repetia sua cantilena. Chefia chegava a rosnar de ciúme.

Aquela seria a primeira reunião de ano-novo sem a presença do vô Leocádio, falecido havia coisa de uns seis meses.

Leila, o pai e a mãe eram sempre os primeiros a che­gar ao sítio. Naquele ano, porém, o casal de tios já estava lá.

          O sítio está muito triste sem o vô Leocádio — co­mentou Leila.

          Mas o papai era homem alegre e, de onde estiver, vai ficar feliz em ver o sítio cheio de gente, na noite da vira­da do ano — disse a mãe da menina.

          E quem foi que convidou alguém? — perguntou o tio, irmão da mãe.

          Papai sempre convidava — ela respondeu.

          Papai está morto e temos que respeitar o luto. Este ano, ninguém foi convidado.

E a tia, agregada à família pelo casamento com o fi­lho do falecido, meteu-se na conversa:

          Onde já se viu encher a pança de estranhos com castanhas, figos, passas... Empanturrar de nozes...

          Mas não são estranhos, cunhada. — dessa vez in­trometeu-se o pai de Leila. — São todos amigos, vizinhos do sítio, parentes distantes.

Não houve, no entanto, o que convencesse os cunha­dos. A ceia seria só entre eles e ponto-final.

          Nem a família do Abelzinho, tio? — perguntou Leila, a ponto de chorar.

Abel era filho dos caseiros do sítio. Amigos de todas as horas, desde que o vô Leocádio e a finada vó Nice ti­nham ido morar lá.

Leila e ele eram da mesma idade, compartilhavam as mesmas ideias.

          O Abelzinho passa na casa dele com a família dele, Leila. Aqui, este ano, só nós — o tio encerrou o assunto.

Chefia rosnou para Leila. A menina saiu, aborrecida, e foi se sentar na cadeira do avô, na varanda.

          Que falta o vovô faz, Chefia. Meu tio se acha o dono da casa, mas não é. Isso tá errado. Nunca passei final de ano sem o Abel.

          Grrrrrrrrrr... — Chefia rosnou como se dissesse: "Compreendo, Leila".

De longe, Pelanca observava a cena que um dia foi sua: no lugar da garota, vô Leocádio. No lugar de Chefia, ele. Indignado, o peru subiu os degraus da varanda e co­meçou a reclamar, beliscando o pelo do cachorro.

          Glu-glu-glu... Glu-glu-glu...

Chefia não gostou e revidou, dando uma patada no

peru.

-            Grrrrr... Grrrr... (se manda, peru safado!)

          Glu-glu-glu... glu-glu-glu...

          Grrrrrrrr... (eu te odeio).

E os dois continuaram brigando. Chefia dando pata­da no peru e ele mordiscando o cachorro. Até que o último deu uma dentada no pobre do Pelanca, que saiu batendo as asas de dor.

O tio veio ver o que acontecia.

          Que barulhada é essa, Leila?

          Nada. Já passou.

          O tio fez menção de entrar, mas, de repente, lhe ocor­reu uma ideia:

          Não precisamos nem pensar na ceia. Assamos o Pelanca. Somos cinco pessoas, dá e sobra.

          Posso fazer urna deliciosa farofa fria pra acompa­nhar — ofereceu-se a tia, apoiando a ideia do marido. Leila se rebelou.

          O Pelanca não, tio! O vovô adorava ele.

          O tio deu um sorriso irônico.

          Querida, o vovô está morto, e dizem que carne de peru velho é muito dura.

          Então, tio, o Pelanca é velho, ruim de comer.

          Que eu saiba, o caseiro trouxe o peru há coisa de uns sete meses. Portanto, é uma ótima hora para saborear­mos o Pelanca, em honra do vovô. Amanhã cedo, peço pro caseiro matar o peru. Vai dar urna ceia e tanto!

          Leila ficou indignada. Falou com o pai e a mãe, mas os dois estavam tão desanimados com aquele final de ano desastroso, que nem ligaram para o assunto.

          Pelanca, ainda dolorido da briga, aquietara-se no terreiro quando a noite caiu. Só despertou quando o galo cantou. Então viu Chefia entrando, de mansinho, indo em sua direção. Achando que o cachorro ia mordê-lo de novo, levantou e saiu rabeando e batendo as asas.

          Glu-glu-glu...

          Mas o cachorro foi mais rápido; abocanhou uma das patas do Pelanca e saiu arrastando o peru. Por mais que ele gritasse "glu-glu-glu", por mais que o peru tentasse se livrar, Chefia correu o quanto pode, arrastando-o.

           Na manhã seguinte, o tio não conseguiu encontrar a ave para o caseiro matar. As horas se passaram, e ele aca­bou indo para a cidade comprar uma ceia pronta.

           Leila nem comeu. Estava angustiada. Chefia havia desaparecido também. O que teria acontecido com ele?

           O ano-novo rompeu triste. Os pais de Leila enfiaram as coisas no carro, despediram-se, e os três voltaram para a cidade. Os tios fizeram o mesmo.

          Dias depois, Abelzinho ligou para a amiga.

           — O Chefia apareceu. E o Pelanca também. Não sei, não, Leila, mas meu pai acha que o cachorro escondeu o peru pra ele não acabar assado em cima da mesa.

 

1. Qual o espaço da narrativa?

________________________________________________

2. Qual o tempo da narrativa?

________________________________________________

 

3. Quais as cinco pessoas que iriam passar a ceia no sítio?

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

4. Qual o nome das personagens abaixo?

a) Filho do caseiro_________________

b) O Vô falecido ___________________

c) A Vó falecida ___________________

d) O peru _________________________

e) O cachorro __________________________________

 

5. Grrrrrrrrrr... — Chefia rosnou como se dissesse: "Compreendo, Leila".  Por que o a narrador utilizou aspas no fragmento sublinhado?

________________________________________________________________________

 

6. Para indicar a fala da mãe e do pai que verbo e qual pontuação o narrador utilizou?

__Cachorro em apartamento, nem pensar! — disse o pai.

­­­­__Eu que não tenho tempo de cuidar! — disse a mãe.

a) verbo:________________

b) pontuação:____________

 

7. Porque o cachorro odiava o peru?

________________________________________________________________

 

8. “Chefia dando pata­da no peru e ele mordiscando o cachorro. Até que o último deu uma dentada no pobre do Pelanca” A palavra último se refere;

a) ao peru

b) ao cachorro

c) ao caseiro

d) ao avô

 

9. O Avô chamava o peru de PELANQUINHA o uso do diminutivo nesse caso indica que:

a) o animal era pequeno

b) o animal era da família

c) o avô tinha carinho pelo animal

d) o avô achava feio dizer pelanca.

 

10. A alternativa que NÃO apresenta opinião é:

a) Papai está morto e temos que respeitar o luto.

b) papai era homem alegre e, de onde estiver, vai ficar feliz em ver o sítio cheio de gente

c) Onde já se viu encher a pança de estranhos com castanhas, figos, passas...

d) Aquela seria a primeira reunião de ano-novo sem a presença do vô Leocádio

segunda-feira, 18 de março de 2024

PEGA LADRÃO – CONTO - ELIANA MARTINS

 PEGA LADRÃO – ELIANA MARTINS

          Neinha estava tão linda naquela noite que fez o coração de Jurandir bater mais forte que de costume.

          Já era bem tarde quando a deixou na porta do bar­raco duplex onde ela morava e seguiu para o seu.

          Tinha nascido ali, na comunidade do Babado Novo. Conhecia todo mundo. Era benquisto. Garoto sangue bom, diziam.

          Quinze anos tinha aquele menino cheio de sonhos e paixão por Neinha, que tinha catorze.

          Jurandir entrou em casa. A mãe e os dois irmãos me­nores dormiam a sono solto, em um colchão de casal, esti­cado no chão do único cômodo do barraco.

          Dentro de um armário, dois ovos fritos. A mãe sem­pre deixava alguma coisa para ele quando sabia que ia chegar tarde. Jurandir comeu, escovou os dentes, trocou a bermuda jeans por uma calça de moletom surrada e se jogou em outro colchão de solteiro, ao lado do da mãe.

          Viver na comunidade era bom, ele gostava. Mas acontecia de tudo. De repente, no silêncio da noite, um tiro, um pedido de socorro. Ninguém abria as portas, pe­rigando ser atingido por uma bala perdida. Mas não na­quela noite. Ela era especial.

          Jura, como todo mundo o conhecia, fechou os olhos e recordou os momentos com Neinha. Tinham os mesmos sonhos, amavam-se. Ele queria ser dentista. Ela, professo­ra. Gostava de crianças, ensinava toda a garotada da co­munidade que ia mal na escola.

          — Matemática não é difícil, não. Vem cá que eu te ensino. — Ele parecia ouvir a voz dela, macia, repetindo isso para alguma criança babado-novense.

Iam virar adultos e sair dali. Estudar, trabalhar, com­prar uma casa espaçosa em que coubesse todo mundo: a família dele e a dela.

          A mãe roncava, coitada! Às quatro da manhã tinha que levantar para deixar comida pronta para os filhos e descer o morro, rumo ao ponto do ônibus.

         O sono foi batendo nos olhos de Jura.

          — Jura, cê jura que nunca vai me deixar? — Pareceu, de novo, ouvir a voz de Neinha.

          _ Juro!

          _ Então pega bem forte na minha mão.

          _ Pega! Pega! Pega!

          Jurandir abriu os olhos. Aquele "pega" não fazia parte do seu devaneio.

          _ Pega ladrão! — alguém gritou lá fora, perturban­do o sono da comunidade. A mãe acordou, mas os dois pequenos continuaram dormindo.

          Que que tu tá fazendo de pé, Jura?

          _ Acordei com o grito. Vou ver o que é.

          _ Vai nada! — Agarrou o braço do filho, que, mes­mo assim, disparou para a ruela, ainda a tempo de ver um homem correndo e outros dois perseguindo.

          _ Pega! Pega!

          _ Ajuda aí, cara! — pediram pra ele.

          Uma janela de barraco foi aberta, de soslaio, e uma pessoa disse:

          _ Ele foi por ali. — E apontou uma esquina.

          Depois de umas três ruas, Jurandir percebeu que já havia muita gente correndo atrás deles, que nem bloco de carnaval.

          _ O que que foi, hein? — perguntava um.

          _ Sei lá! Ouvi o pega-pega e entrei na dança. Apareceu um policial.

          _ PRRRRRRRRRR... — apitou para se identificar. — O que foi?

          _ Um ladrão, seu guarda — alguém disse.

          _ Ladrão? Mas roubou o quê?

          Ninguém sabia.

          _ Parece que entrou naquele barraco duplex. Jurandir se arrepiou. Era a casa de Neinha. O pai era pedreiro fino, jeitoso. Tinha construído dois andares

Escada de alvenaria e tudo.

          A luz da casa foi acesa. O pai de Neinha apareceu na janela.

          _ Que que foi?

           Aquela não era a janela em que Jurandir sonhava es­tar com Neinha no futuro. Iriam ter janelas com floreiras, e, caso ele acordasse de madrugada, não seria por causa de um ladrão, e sim para dizer que a amava.

          Mas a realidade, agora, era aquela.

          _ Que é que foi que houve, meu Deus? — o pai de Neinha voltou a perguntar.

            Ninguém sabe ao certo, mas parece que um ladrão se escondeu aí na sua casa — explicou o policial.

          _ Ai, minha Nossa Senhora! — berrou a mãe, apa­recendo na janela, toda desgrenhada. O policial pediu li­cença e, sem mais nem menos, deu um pontapé na porta do barraco.

           _ Não podemos perder tempo — disse, já embara­fustando dentro da casa.

         A irmãzinha menor de Neinha, garota de uns seis anos, agarrou-se à mãe e começou a dar gritos histéricos, como porco em dia de matança.

         O pessoal que se manteve na rua, assustado com os berros da menina e supondo que o ladrão estava mesmo lá dentro, se enfiou no barraco feito sardinha em lata, en­tupindo o pequeno cômodo que servia de sala.

          _ Ói lá! Na laje — alguém gritou.

          O policial subiu a escada de dois em dois degraus.

          Cadê o excomungado?

          Mas só Neinha dormia lá em cima.

          Jurandir também subiu correndo, encontrando a na­morada pálida e tremendo de medo.

          Abraçou-a.

                    Calma, Neinha, que isso um dia acaba.

                    Não pode ter pulado da laje, que é alta pra chuchu — gritou um, lá pelos degraus de baixo.

                    Tão procurando o quê, Jura? — Neinha perguntou. A irmãzinha recomeçou seu grunhido de porco.

                    Cala a boca, Gildileia! — berrou a mãe, tentando abaixar o cabelo com uma escova. — Vê se pegam logo o ladrão e deixem a gente dormir em paz.

                    Quem contou que é ladrão? — perguntou uma velhinha que chegava, sem nenhum dente na boca.

                    Vamos varar todas as casas vizinhas — decidiu o policial.

          Não encontraram nada nas casas e todos foram saindo para a calçada outra vez.

          Com toda aquela balbúrdia, seu Tonico da venda, é claro, também tinha perdido o sono. Pegou no cavaquinho e mandou bala: "Ói que foi só pegar no cavaquinho...".

         A turma de menos de vinte anos não gostou da música e pediu pagode, funk, reggae. E lá foi seu Tonico, que amarrava o burro onde o freguês queria.

         Lá pelas quatro da manhã, a turma se dispersou. Afinal, tinham perseguido quem? Era o que todos se perguntavam.

          A comunidade do Babado Novo ficou morta de novo. Jurandir, tendo deixado Neinha bem mais calma, subiu a ruela de casa. A mãe o esperava à porta.

                    Ai, graças a Deus que tu tá vivo, filho!

                    Não tinha motivo pra morrer, não, mãe. Ninguém sabia nem quem tava procurando. Tudo maluco.

          _           Jurandir se espichou de novo em seu colchão.

          A casa ampla com floreiras. Um quarto para cada família. Ele, dentista; Neinha, professora. A casa ampla...A casa... A Ca...

           O sono chegou, o sonho voltou. Nem sombra da realidade.

 

Fonte: Ana Bola e Outras Histórias Corajosas

 

RESPONDA

1. Qual o título do conto?

_________________________________________________________

 

2. Qual a autora do conto?

__________________________________________________________

 

3. Quais são os personagens?

___________________________________________________________

 

4. Qual o espaço da narrativa, ou seja, onde acontece a história?

____________________________________________________________

 

5. Quanto tempo aproximadamente dura a história?

____________________________________________________________

 

6. Qual a situação social de Jurandir? Justifique sua resposta com uma frase do texto.

_______________________________________________________________________

 

7. Qual era o sonho de Jurandir?

_______________________________________________________________

 

8. Qual o significado das expressões presentes no texto:

a) sardinha em lata

________________________________________________________________

b) amarrava o burro onde o freguês queria

______________________________________________________________

c) grunhido de porco

______________________________________________________________

 

9. Qual o significado das palavras abaixo de acordo com o texto?

a) desgrenhada

___________________________________________________________

b) balburdia

____________________________________________________________

c) soslaio

___________________________________________________________

 

10. Acentue as palavras abaixo se necessário.

a) ARMARIO

b) ALGUEM

c) ARMARINHO

d) NINGUEM

e) MATEMATICA

f) DIFICIL

g) HISTERICO

h) PONTAPE

i) PALIDA

j) POLIDO

 

11. Complete os espaços em branco com uma das letras entre parênteses.

a) ___U___U    (X, CH)

b) ESPI____OU (X,CH)

c) VI____INHA (S,Z)

d) ____EITOSO (J,G)

e) E____COMUNGADO (S,X)

f) DEI___ADO  (X, CH)

g) MATAN____A (SS, Ç)

h) A____USTADO (S,SS)

i) A___GUÉM (U,L)

j) JEITO___O (S,Z)