A menina e as
balas
Georgina
Martins
Todos os dias a
menininha estava lá: vendia doces na porta de uma lanchonete, perto de uma
pracinha, onde brincam quase todas as crianças da redondeza. Mas ela não
brincava, só vendia doces. Mesmo porque ela não era moradora do bairro. Sempre
chegava por volta das quatro da tarde e ficava até os doces acabarem. Nos
finais de semana ela chegava mais tarde, mas nunca faltava. Devia ter uns oito
anos e, às vezes, distraia-se olhando as crianças brincarem.
Quando eu era
menina, queria ter uma fábrica de doces só para poder comer todos os doces que
eu quisesse; naquela época eu era muito pobre, e quase nunca sobrava dinheiro
lá em casa para comprar doces. A menininha não comia nenhum. Ficava lá até
vender todos. Será que algum dia ela já desejou ter uma fábrica de doces só pra
ela?
Todas as vezes que
eu passava por ela pensava nessas coisas. Eu também desejava ter uma fábrica de
leite condensado, só para poder furar todas as latinhas que quisesse. Eu sempre
gostei de furar latinhas de leite condensado, e quando sobrava algum dinheiro
lá em casa, minha mãe dava um jeito de comprar uma latinha de leite condensado.
Mas, como ela não sabia cozinhar, nunca preparava nada com as latinhas, e eu
furava todas, sempre escondido dela, que fingia não saber.
Eu nunca pensava em
vender os doces das fábricas dos meus sonhos, só pensava em comê-los. Acho que
os doces não foram feitos para serem vendidos por crianças, foram feitos para
serem comidos por elas. Mas aquela garotinha não comia nenhum, mesmo quando não
conseguia vendê-los.
Um dia, resolvi
perguntar se ela não tinha vontade de comê-los, e ela me respondeu que seu
irmão menor trabalhava em uma mercearia e que também não podia comer nada sem
pagar. Ela me disse que os doces não eram dela: ela os pegava em uma lojinha em
Japeri, perto de sua casa; no final do dia, acertava as contas com o seu
Alberto, o dono da loja. Adorava chupar balas e queria muito ter bastante
dinheiro para poder comprar um monte de uma vez. Mas não tinha. Nem tinha
pracinha perto da casa dela, mas achava ótimo poder brincar com as amigas na
rua mesmo.
Uma noite, quando
eu voltava do cinema, passei pela menina e percebi que ela estava com muito
sono, quase cochilando; a lanchonete já ia fechar e ela ainda tinha alguns
doces na caixa. Eu tinha acabado de assistir a um filme sobre crianças, um
filme iraniano que eu adoro e que foi um dos filmes mais bonitos que eu já vi:
chama-se Filhos do paraíso, e conta a história de dois irmãos, um menino e uma
menina; o menino perde o único par de sapatos que a irmã possuía e os pais
deles não têm como comprar outro. Acho que todas as crianças do mundo deveriam
assistir a esse filme.
Contei o dinheiro
que eu tinha na bolsa e cheguei à conclusão de que dava para pagar todos os
doces que ainda restavam. Depois de ver um filme como aquele, eu achava
impossível deixar uma menininha daquelas cochilando no meio da rua, numa noite
fria.
— Olhe só, vou
lhe dar esse dinheiro. Dá pra comprar todos os doces que você tem aí, e você
não precisa nem me dar os doces, pode ficar com eles e vendê-los amanhã.
Ela me olhou sem
entender direito e disse que eu tinha que levar os doces.
— Mas, menina,
é a mesma coisa: você ganha o dinheiro e ainda fica com os doces; é muito
melhor pra você...
— Melhor nada,
minha mãe diz que eu não posso voltar pra casa enquanto não vender tudo.
— Mas você vai
vender, vai levar o dinheiro que levaria se tivesse vendido tudo.
— Tia, você não
entendeu, eu não posso voltar com doce pra casa, senão eu apanho da minha mãe e
do meu padrasto. Preciso ajudar em casa, minha mãe trabalha muito, lá em casa
tem muita gente pra comer, tenho seis irmãos... é por isso que eu vendo
doces.
— Já entendi,
mas eu só estou querendo lhe ajudar, você leva o dinheiro e ainda sobra doce
pra amanhã.
— Mas não pode
sobrar nada, minha mãe falou. Por que a senhora não quer levar os doces?
— Pra ajudar
você! Amanhã, quando você for lá na loja do seu Alberto, você vai precisar
comprar menos doces e vai ter mais dinheiro.
— Não, tia, não
é assim. Eu não estou pedindo o seu dinheiro, estou vendendo doces e tenho que
vender tudo, minha mãe falou. Por favor, leva os doces.
— Minha
querida, vou lhe explicar direitinho: eu vou lhe pagar por todos os doces que
tem aí, mas não vou levá-los, assim você vai poder vendê-los pra outras pessoas.
— Tia, você não
entende mesmo, hein? Minha mãe vai brigar comigo, ela fica muito braba quando
eu faço alguma besteira. Já falei que ela disse que eu não posso voltar com
nada pra casa. O meu padrasto, quando eu chego em casa, faz as contas e quando
sobra doce ele me bate. Ele sempre conta quanto dinheiro tem e tem que ter tudo
certinho.
Percebi que não
adiantava nada tentar convencê-la, ela já estava ficando nervosa de tentar me
explicar o seu problema. Dei -lhe o dinheiro e tive que levar todos aqueles
doces, que ela, rapidamente, enfiou em minha bolsa.
Ao ver-se livre
deles, seus olhinhos brilharam de contentamento e ainda pude ouvi-la falando
sozinha, muito indignada com a minha pouca compreensão a respeito do seu
problema:
— Que tia
burra, não entende nada de vender doces. Vai ver que ela nunca trabalhou,
porque nem sabe fazer conta!
MARTINS. Georgina. No
olho da rua: historinhas quase tristes. São Paulo: Ática, 2003. p.
36-43.
Georgina Martins nasceu em
1960 no Rio de Janeiro (RJ).
Professora e
escritora, participa de projetos comunitários que estimulam crianças e jovens
da periferia do Rio de Janeiro a ler e a escrever. No olho da rua:
historinhas quase tristes reúne narrativas curtas sobre o cotidiano
das personagens, crianças que vivem nas ruas dos grandes centros urbanos.
Interpretação do
texto
1. O conto lido
começa assim: Todos os dias a menininha estava lá.
Aos poucos, o texto
fornece ao leitor mais informações sobre a menininha. Identifique e copie em
seu caderno os seguintes dados dessa personagem:
a) idade;
_________________________________________________________________
b) parentes;
________________________________________________________________
c) obrigação;
________________________________________________________________
d) receio;
_________________________________________________________________
e) desejos.
______________________________________________________________
2. Além da menininha,
no conto há outra personagem, a que conta os fatos. Essa narradora-personagem
diz que também foi pobre quando criança. Responda: qual era o sonho dela quando
menina?
_________________________________________________________________________________________________________________________________________
3. Releia os
parágrafos 7 e 8 do texto, discuta com os colegas e escreva no caderno quais
das alternativas a seguir mostram o que a narradora-personagem pretendia:
a) Proteger a
menina.
b) Aumentar a
venda de doces.
c) Ajudar a
garotinha a ganhar mais dinheiro.
d) Despertar o
interesse dos pais da menina.
4. Por que o
mais importante para a menina era vender todos os doces?
__________________________________________________________________
5. O texto informa que
a menina vendia doces, mas o título da história é "A menina e as
balas". Qual seria uma explicação para esse título?
_______________________________________________________________
6. Releia:
[...] os doces não
foram feitos para serem vendidos por crianças, foram feitos para serem comidos
por elas.
Você concorda com
essa opinião? Justifique sua resposta.
___________________________________________________________________
7. Quase
triste?
Depois de ler o
conto, qual é sua impressão: a historinha é quase triste, é triste ou não é
triste? Por quê? Exponha sua opinião para os colegas e ouça a deles para que
possam comparar os diferentes modos de entender uma história.
Gabarito:
1.
a) Uns 8 anos.
b) Mãe.
padrasto e seis irmãos.
c) Vender doces para
ajudar em casa.
d) Não vender
todos os doces e apanhar da mãe e do padrasto.
e) Ter
bastante dinheiro para comprar um monte de balas: brincar na rua com as amigas.
2. Ter uma
fabrica de doces, não para vender, mas para comer.
3. Alternativas
a e c. Discutir os valores que estão por trás da atitude da
narradora: compaixão, respeito pela infância, desejo de proteger
a menina, indignação pela situação de fragilidade da criança diante
dos perigos da rua...
4. Porque só depois de
vendê-los todos e que ela podia voltar para casa. Comentar que,em
sua inocência de criança, não ocorre à menina pegar o dinheiro e
guardar os doces para vender no dia seguinte, ou comê-los,
ou mesmo joga-los fora.
5. Sugestão: o título
se refere provavelmente ao sonho da menina: ter bastante
dinheiro para comprar muitas balas.
6. Resposta
pessoal.
7. Professor: É
fundamental estimular a troca de opiniões e. principalmente a troca de
argumentos que as justifiquem.
Referência: Projeto
Teláris (Editora Ática)