O QUE VEM A SEGUIR
Escrito por Moacyr Scliar, o CONTO que você
vai ler agora trata, com humor melancólico, de uma situação difícil vivenciada
por pai e filho. Leia o título, que menciona um importante pintor holandês do
século XIX. Depois converse com os colegas a respeito da questão: Por que será
que o título do CONTO faz referência à orelha desse pintor?
A orelha de Van Gogh
(fragmento)
Moacyr Scliar
Estávamos, como
de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um
de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.
Mas, se lhe
faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem culto, inteligente,
além de alegre. Não concluíra os estudos [...]. Os fregueses gostavam dele, entre
outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém,
a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O
homem a quem meu pai devia no momento era conhecido como um credor
particularmente implacável.
Outro se
desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai.
Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu
ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu
algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível,
tinha uma paixão secreta por Van Gogh. [...]
Meu pai
retirou na biblioteca um livro sobre Van Gogh e passou o fim de semana
mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se
abriu e ele surgiu, triunfante:
– Achei!
Levou-me para
um canto – eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice – e sussurrou, os
olhos brilhando:
– A orelha de
Van Gogh. A orelha nos salvará.
O que é que
vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância
para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai,
e para mim, baixinho, depois te explico.
Depois me explicou. O caso era que o Van
Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir
disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que
recebera como herança de seu bisavô, amante da mulher por quem Van Gogh se
apaixonara, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do
perdão da dívida e de um crédito adicional.
– Que dizes?
Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo
de ilusões.
[...] A questão, contudo, era outra: – E a orelha?
– A orelha? –
olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido.
Sim, eu disse, a orelha do Van Gogh, onde é que se arranja
essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no
necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.
No dia
seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho
que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa
escura, de formato indefinido. A orelha de Van Gogh, anunciou, triunfante.
E quem diria
que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh
– orelha.
À tarde, fomos à casa do credor. Esperei
fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado,
furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco
de meu pai e o jogara pela janela.
– Falta de
respeito!
Tive de
concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos
caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito,
falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:
– Era a
direita ou a esquerda?
– O quê? –
perguntei, sem entender.
– A
orelha que o Van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?
– Não sei – eu
disse, já irritado com aquela história. Foi você quem leu o livro. Você é quem
deve saber. [...]
- mas não sei –
disse ele, desconsolado. – Confesso que não sei.
Ficamos um instante
em silencio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não
ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha
infância. Mas:
E a do vidro? –
Perguntei. – Era a direita ou a esquerda?
Mirou-me aparvalhado.
- Sabe que não
sei? – Murmurou numa voz fraca, rouca. – Não sei.
E prosseguimos,
rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma relha – qualquer orelha, seja ela
de Van Gogh ou não - Verá
que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido.
Eu nunca mais sairia dele.
Disponível em http://www.academia.org.br/abl/media/RB53%20-%20Prosa.pdf.
Acesso em: 19 mai.
2012.
1. Após a leitura do conto, retome as hipóteses formuladas
no boxe o que vem a seguir. O que você e os colegas imaginaram antes da leitura
se confirmou?
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2. Quem é o autor do conto A ORELHA DE VAN GOGH?
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3. Quem é o narrador do conto, isto é, quem conta a
história?
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ANOTE AÍ
O autor é quem cria e
escreve as narrativas. O narrador é a voz adotada pelo autor para contar os
acontecimentos em uma história. O autor é uma pessoa real, enquanto o narrador existe
apenas na história contada, podendo ou não participar dos acontecimentos
narrados.
4. O narrador do conto que você leu participa dos
acontecimentos? Justifique.
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5. Descreva algumas características das personagens.
PAI..................................................................................................................
MÃE.................................................................................................................
CREDOR........................................................................................................
6. Conhecemos as personagens do conto por meio das impressões
do narrador sobre elas. E, quanto ao narrador, que característica de sua personalidade
você pode perceber? Justifique sua resposta.
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7. Releia o trecho:
“Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação. Era um
homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o
confinara no modesto de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiça,
resistia bravamente aos embates da existência.”
a) O que você entende da expressão “embate da existência”?
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b) nesse trecho, parece opor duas formas de viver. Quais são
essas formas de viver que estão em oposição?
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8. Sobre o espaço e o tempo desse conto, responda as
questões a seguir.
a) em que espaço se desenvolvem as ações narradas no conto?
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b) Procure determinar em que período de tempo se deram essas
ações.
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9. No conto lido, há um conflito presente desde o primeiro
parágrafo é em torno dele que se desenvolve a narrativa. Qual é esse conflito?
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ANOTE AÍ
No gênero conto, o enredo
tende a se organizar em torno de um único conflito, ou seja, de uma única oposição
ente as personagens ou forças. Esse conflito pode ocorrer, por exemplo, entre
duas ou mais personagens, ente o protagonista e o antagonista, entre o protagonista
e as forças externas. Nesse genro, o enredo se desenvolve em um único espaço ou
em poucos espaços, e o tempo de duração da história é geralmente curto.
10. Sobre o conflito, responda as questões.
a) Que solução o pai encontra para resolvê-lo?
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b) O pai teve sucesso no seu plano? Por quê?
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c) Em sua opinião, por que isso aconteceu?
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11. Ao longo da história, conhecemos alguns sentimentos que
o narrador experimenta em relação ao pai e à forma que ele encontra para
resolver a dívida com seu credor. Esses sentimentos
sofrem alguma mudança? Explique.
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12. Relei a trecho.
“ Ficamos um instante em silencio. Uma dúvida me assaltou
naquele momento, um dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a
resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:
_ E a do vidro? –
perguntei – Era a direita ou a esquerda?
a) Qual é o significado da palavra assaltou nesse trecho?
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b) Por que há repetição da palavra dúvida nessa passagem?
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c) Em sua opinião, por que o narrador diz que a resposta do
pai à sua dúvida poderia significar o fim de sua infância?
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13. Releia o último parágrafo do conto.
“E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma
relha – qualquer orelha, seja ela de Van
Gogh ou não - Verá que seu desenho se assemelha ao de um
labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido. Eu nunca mais sairia dele.”
a) A história se passa em que época da vida do narrador?
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b) O narrador conta a história no momento em que ela acontece
ou em momento posterior aos acontecimentos?
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14. Ainda sobre o último parágrafo, responda as questões.
a) A quem o narrador se refere ao usar a expressão a gente?
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b) Explique, com suas palavras, a menção ao labirinto feita
pelo narrador.
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ANOTE AÍ
O conflito cria uma situação de tensão que domina toda a narrativa
e prende a atenção do leitor até o desfecho, a etapa final do enredo. É importante
que o desfecho causa impacto ou surpresa no leitor ou provoque uma reflexão.
RESPOSTAS E COMENTÁRIOS
1.Resposta pessoal. Professor, procure retomar o registro das
respostas dos alunos.
2.Moacyr Scliar.
3.O filho de um pequeno comerciante, dono de armazém.
4.Sim. O narrador participa dos acontecimentos e os narra como
alguém que acompanhou a ideia e a execução do plano do pai. Essa participação é
evidenciada pela alternância entre o emprego da 1• pessoa do plural e da 1•
pessoa do singular: "Ficamos um instante em silêncio" e
"Levou-me para um canto - eu, aos doze anos, era seu confidente ] ...
]".
5.Pai: culto, inteligente, alegre, imaginativo, otimista. Mãe:
impaciente, prática, pouco tolerante. Credor: implacável, rude, insensível.
6.O narrador é bastante próximo ao pai, como ele mesmo define,
"era seu confidente e cumplice". Além disso, é um narrador observador
e reflexivo e, ao final do conto, essa característica torna-se mais evidente.
7.a) Resposta pessoal. Espera-se que o aluno compreenda que a
expressão refere-se, em geral, às dificuldades do cotidiano
b) O narrador opõe uma forma mais prática e pragmática
de viver a uma forma mais ligada ao mundo da imaginação.
8.a) Em duas casas, a da família do narrador e a do credor.
b) Aparentemente ocorre em três dias: no final de
semana, o pai estuda e formula o plano; na segunda, obtém a orelha e vai até
a casa do credor.
9.A dívida com o credor.
RESPOSTAS E COMENTÁRIOS
10.a) Presentear o credor com a orelha de Van Gogh, que,
segundo sua invenção, teria sido deixada de herança pelo seu bisavô, amante da
mulher por quem o pmtor se apaixonara. Ele ofereceria a relíquia em troca do
perdão da dívida e de um crédito adicional.
b) O pai não teve sucesso no seu plano. A narrativa
não deixa evidente o motivo do fracasso.
c) Resposta pessoal. Espera-se que os alunos
elaborem uma resposta pertinente, com base nos elementos do conto.
11.Sim. No micro do conto, prevalecem sentimentos
positivos em relação ao pai, sobretudo em relação à capacidade imaginativa,
admirada pelo filho. No final do conto, o filho decepciona-se com o pai e
mostra certa impaciência e inquietude, pois o pai não sabe de detalhes da
história do pintor.
12.a) Assaltou, nesse contexto, significa "ocorrer
repentinamente"
b) Para enfatizar o estado de incerteza do
narrador
c) Resposta pessoal. Espera-se que os alunos criem
uma resposta pertinente e coerente, com base, sempre, nos elementos do conto
Por exemplo, que o pai se mostrou ingênuo e incapaz de lidar com os problemas
de modo adulto.
13.a) Na adolescência.
b) Em momento bastante posterior aos acontecimentos,
provavelmente na fase adulta
14.a) Refere-se ao narrador e aos leitores Professor,
ressalte que, no último parágrafo, o narrador convida os leitores a fazer uma
reflexão sobre o episódio narrado
b) Resposta pessoal. Possibilidade de resposta: O
labirinto pode ser entendido como as diferentes possibilidades de caminho que a
vida adulta traz.
15.Sim. Os temas apresentados pelo conto - a relação de pai
e filho, uma dívida que precisa ser paga, a transição da infância para a maturidade,
etc. - podem ser vivenciados por pessoas de diversos lugares do mundo e, por
isso, podem causar uma identificação universal.