PáginasDESCRITOR

terça-feira, 23 de junho de 2020

CONTO: QUEM CONTA UM CONTO 9º ANO COM GABARITO


CONTO: QUEM CONTA UM CONTO

I

        Eu compreendo que um homem goste de ver brigar galos ou de tomar rapé. O rapé dizem os tomistas que alivia o cérebro. A briga de galos é o Jockey Club dos pobres. O que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.
       E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa singular vocação? O noveleiro não é tipo muito vulgar, mas também não é muito raro. Há família numerosa deles. Alguns são mais peritos e originais que outros. Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho, quero dizer as mesmas que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.
       Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que nenhum noveleiro confessa que o é tem impedido a realização deste meu desejo. Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito humano.
      O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.

II

        Há coisa de sete anos vivia nesta boa cidade um homem de seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.
       Era um modelo do gênero.
       Sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira como quem tira uma moeda de vintém para dar a um mendigo.
       Não, senhor.
       Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente que o ministério pedira a demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo molho para torná-la mais picante.
       Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes, e se entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o silêncio causado pela sua entrada, para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:
      — Então, parece que os homens...
      Os circunstantes perguntavam logo:
      — Que é? que há?
    Luís da Costa, sem perder o seu ar sério, dizia singelamente:
     — É o ministério que pediu demissão.
     — Ah! sim? quando?
     — Hoje.
     — Sabe quem foi chamado?
     — Foi chamado o Zózimo.
     — Mas por que caiu o ministério?
       — Ora, estava podre.
       Etc., etc.
       Ou então:
       — Morreram como viveram.
       — Quem? quem? quem?
      Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:
       — Os ministros.
       Suponhamos agora que se tratava de uma pessoa qualificada que devia vir no paquete: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck.
       Luís da Costa entrava, cumprimentava silenciosamente a todos, e em vez de dizer com simplicidade:
      — Veio no paquete de hoje o príncipe de Bismarck.
      Ou então:
      — O Thiers chegou no paquete.
      Voltava-se para um dos circunstantes:
      — Chegaria o paquete?
       — Chegou, dizia o circunstante.
       — O Thiers veio?
       Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com que se deliciava Luís da Costa, razão principalmente do seu ofício.
III
      Não se pode negar que este prazer era inocente e quando muito singular.
      Infelizmente não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? perguntava o poeta da Jovem Cativa, e eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro.
      Luís da Costa experimentou um dia as asperezas do seu ofício.
      Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja do Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado como homem que vem pejado de alguma notícia.
      Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio, que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para todos, e soltou secamente estas palavras:
      — Então fugiu a sobrinha do Gouveia? disse ele rindo.
      — Que Gouveia? disse um dos presentes.
      — O major Gouveia, explicou Luís da Costa.
      Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.
       — O major Gouveia da Cidade Nova? perguntou o desconhecido ao noveleiro.
     — Sim, senhor.
      Novo e mais profundo silêncio.
       Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de queimar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do major ao casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima dos moinhos.
     O silêncio era sepulcral.
     O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão.
     Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:
     — E quando foi esse rapto?
      — Hoje de manhã.
      — Oh!
     — Das 8 para as 9 horas.
     — Conhece o major Gouveia?
      — De nome.
     — Que idéia forma dele?
    — Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a rapariga é muito bonita...
      — Conhece-a?
      — Ainda ontem a vi.
      — Ah! A segunda circunstância...
       — A segunda circunstância é a crueldade de certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que se trata dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o major impedi-lo?
      — O major tinha razões fortes, observou o desconhecido.
      — Ah! conhece-o?
      — Sou eu.
       Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois sem saber o que ira sair dali. Deste modo correram cinco minutos.
IV
      No fim de cinco minutos, o major Gouveia continuou:
     — Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze dias se acha em Juiz de Fora.
     Luís da Costa ficou amarelo.
      — Por essa razão ouvi tranqüilamente a história que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu ontem...
     Luís da Costa tornou-se verde.
      — A notícia, entretanto, pode ter-se espalhado, continuou o major Gouveia, e eu desejo liquidar o negócio pedindo-lhe que me diga de quem a ouviu...
     Luís da Costa ostentou todas as cores do íris.
      — Então? disse o major passados alguns instantes de silêncio.
       — Sr. major, disse com voz trêmula Luís da Costa, eu não podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente alguém ma contou.
     — É justamente o que eu desejo saber.
     — Não me lembro...
     — Veja se se lembra, disse o major com doçura.
      Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que lhe contara a história do rapto.
      As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o major, que não era homem de graças, insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a respeito do inventor da balela.
     — Ah! agora me lembra, disse de repente Luís da Costa, foi o Pires.
     — Que Pires?
     — Um Pires que eu conheço muito superficialmente.
     — Bem, vamos ter com o Pires.
     — Mas, Sr. major...
      O major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís da Costa se levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o gesto do major, não sem tentar ainda um:
     — Mas, Sr. major...
      — Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal Pires?
      — Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.
      — Vamos ao escritório.
       Luís da Costa cortejou os outros e saiu ao lado do major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. O major recusou o charuto, dobrou o passo e os dois seguiram na direção da Rua dos Pescadores.
V
      — O Sr. Pires?
      — Foi à secretaria da Justiça.
      — Demora-se?
      — Não sei.
      Luís da Costa olhou para o major ao ouvir estas palavras do criado do Sr. Pires. O major disse fleugmaticamente:
       — Vamos à secretaria da Justiça.
      E ambos foram a trote largo na direção da Rua do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às garras do major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos, é provável que o major o levasse até lá antes de jantar.
     Tudo estava perdido.
     Chegaram enfim à secretaria, bufando como dois touros.
     Os empregados vinham saindo, e um deles deu notícia certa do esquivo Pires; disse-lhes que saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.
     — Voltemos à Rua dos Pescadores, disse pacificamente o major.
     — Mas, senhor...
      A única resposta do major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.
        Luís da Costa ia furioso. Começava a compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de estrangular o major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror de si mesmo.
       O major, porém, continuava a andar com aquele passo rápido dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente impossível apostar carreira com ele.
      Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte do escritório do Sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.
     O major Gouveia mostrou-se aborrecido com o fato; como era homem resoluto, depressa se consolou do incidente.
      — Não há dúvida, disse ele, iremos à Praia Grande.
      — Isso é impossível! clamou Luís da Costa.
       — Não é tal, respondeu tranqüilamente o major, temos barca e custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.
     — Mas, senhor, a esta hora...
     — Que tem?
     — São horas de jantar, suspirou o estômago de Luís da Costa.
     — Pois jantaremos antes.
      Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia do major era extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era impossível livrar-se dela; Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a sopa e o primeiro prato foi o começo da reconciliação. Quando veio o café e um bom charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer o seu anfitrião em tudo o que lhe aprouvesse.
     O major pagou a conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se à imperial cidade.
     No trajeto, o major Gouveia conservou-se tão taciturno como até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou atar conversa com o major; mas foram esforços inúteis. Ardia entretanto por levá-lo até a casa do Sr. Pires, que explicaria as coisas como as soubesse.
VI
      O Sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o Sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do Dr. Oliveira, em S. Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.
     O major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:
       — Vamos a S. Domingos.
      — Vamos a S. Domingos, suspirou Luís da Costa.
      A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.
     Na casa do Dr. Oliveira passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir.
     Enfim vieram.
     — Está cá o Sr. Pires?
     — Está, sim, senhor, disse o moleque.
     Os dois respiraram.
     O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires, l’introuvable.
     Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão a Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente ao major Gouveia.
     — Queiram sentar-se.
     — Perdão, disse o major, não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.
    O Sr. Pires curvou a cabeça e esperou.
    O major voltou-se então para Luís da Costa e disse:
    — Fale.
    Luís da Costa fez das tripas coração e exprimiu-se nestes termos:
     — Estando eu hoje na loja do Paula Brito contei a história do rapto de uma sobrinha do Sr. major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à fonte da notícia e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu então procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim, encontramo-lo.
     Durante este discurso, o rosto do Sr. Pires apresentou todas as modificações do espanto e do medo. Um ator, um pintor, ou um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o Sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três a quatro minutos.
    — Espero as suas ordens, disse o major, vendo que o homem não falava.
    — Mas, que quer o senhor? balbuciou o Sr. Pires.
     — Quero que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?
    — Não lhe disse tal, acudiu o Sr. Pires; o que eu disse foi que me constava ser bonita.
     — Vê? disse o major voltando-se para Luís da Costa.
    Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto.
    O major dirigiu-se depois ao Sr. Pires:
    — Mas vamos lá, disse; de quem ouviu a notícia?
    — Foi de um empregado do Tesouro.
    — Onde mora?
    — Em Catumbi.
     O major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo já contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.
      — Pode retirar-se, disse o major; não é mais preciso aqui.
      Luís da Costa não esperou mais; apertou a mão do Sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa, e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.
     Estava livre.
VII
     Ficaram sós o major e o Sr. Pires.
     — Agora, disse o primeiro, há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do Tesouro... Como se chama?
    — O bacharel Plácido.
    — Estou às suas ordens; tem passagem e carro pago.
    O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:
    — Mas eu não sei... se...
    — Se?
    — Não sei se me é possível nesta ocasião...
     — Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.
    — Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...
     — O quê?
    — Adiar?
    — Impossível.
     O Sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.
    — Acredite, Sr. major, disse ele concluindo, que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.
    O major inclinou-se.
     O Sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução.
    A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O major parecia uma estátua; não falava e raras vezes olhava para o seu companheiro.
     A razão foi compreendida pelo Sr. Pires, que matou as saudades do voltarete, fumando sete cigarros por hora.
    Enfim chegaram a Catumbi.
     Desta vez foi o major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.
     O bacharel Plácido era o seu próprio nome feito homem. Nunca a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido verdadeiramente plácido.
    O Sr. Pires explicou o objeto da visita.
    — É verdade que eu lhe falei de um rapto, disse o bacharel, mas não foi nos termos em que o senhor o repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia do projeto de rapto.
     — E quem lhe disse isso, Sr. bacharel? perguntou o major.
     — Foi o capitão de artilharia Soares.
     — Onde mora?
     — Ali em Mata-porcos.
     — Bem, disse o major.
     E voltando-se para o Sr. Pires:
     — Agradeço-lhe o incômodo, disse; não lhe agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar até à estação das barcas.
     O Sr. Pires não esperou novo discurso; despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro deu dois ou três socos em si mesmo e fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa.
    — É bem feito, dizia o Sr. Pires; quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito descansado e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!
VIII
    O bacharel Plácido encarou o major, sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou que o major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu da sala, disse ele:
    — Queira agora acompanhar-me à casa do capitão Soares.
    — Acompanhá-lo! exclamou o bacharel mais surpreendido do que se lhe caísse o nariz no lenço de tabaco.
    — Sim, senhor.
    — Que pretende fazer?
    — Oh! nada que o deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.
      O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias para ir a Mata-porcos era um absurdo. A nada atendia o major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.
      — Mas há de confessar que é longe, observou este.
      — Não seja essa a dúvida, acudiu o outro; mande chamar um carro que eu pago.
     O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.
     — Então? disse o major ao cabo de algum tempo de silêncio.
     — Refleti, disse o bacharel; é melhor irmos a pé; eu jantei há pouco e preciso digerir. Vamos a pé...
     — Bem, estou às suas ordens.
      O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o major, com as mãos nas costas, passeava na sala meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.
     Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala, quando o major ia já tocar a campainha para chamar alguém.
     — Pronto?
     — Pronto.
    — Vamos!
    — Deus vá conosco.
    Saíram os dois na direção de Mata-porcos.
     Se uma pipa andasse seria o bacharel Plácido; já porque a gordura não lho consentia, já porque desejara pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava... arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.
     Com este era impossível o major empregar o sistema de reboque que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do braço.
     Tudo isto punha o major em apuros. Se visse passar um carro, tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento, os fregueses.
    O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o major batia palmas na escada.
    — Quem é? perguntou uma voz açucarada.
    — O Sr. capitão? disse o major Gouveia.
    — Eu não sei se já saiu, respondeu a voz; vou ver.
    Foi ver, enquanto o major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a singeleza:
    — O senhor quem é?
    — Diga que é o bacharel Plácido, acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.
      A voz foi dar a resposta e daí a dois minutos voltou a dizer que o bacharel Plácido podia subir.
    Subiram os dois.
    O capitão estava na sala e veio receber à porta o bacharel e o major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.
    — Queiram sentar-se.
      Sentaram-se
IX
    — Que mandam nesta sua casa? perguntou o capitão Soares.
    O bacharel usou da palavra:
     — Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do Sr. major Gouveia.
     — Não me lembra; que foi? disse o capitão com uma cara tão alegre como a de homem a quem estivessem torcendo um pé.
    — Disse-me você, continuou o bacharel Plácido, que o namoro da sobrinha do Sr. major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...
    — Perdão! interrompeu o capitão. Agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.
    — Não foi?
    — Não.
    — Então que foi?
     — O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. S. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.
    — Sim, há alguma diferença, concordou o bacharel.
    — Há, disse o major deitando-lhe os olhos por cima do ombro.
    Seguiu-se um silêncio.
     Foi o major Gouveia o primeiro que falou.
      — Enfim, senhores, disse ele, ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. capitão dizer-me a quem ouviu isso?
      — Pois não, disse o capitão; ouvi-o ao desembargador Lucas.
      — É meu amigo!
      — Tanto melhor.
     — Acho impossível que ele dissesse isso, disse o major levantando-se.
     — Senhor! exclamou o capitão.
      — Perdoe-me, capitão, disse o major caindo em si. Há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado por culpa de um amigo...
     — Nem ele disse por mal, observou o capitão Soares. Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa...
     — É verdade, concordou o major. O desembargador não era capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.
     — É provável.
     — Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.
     — Agora!
     — É indispensável.
     — Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?
     — Sei; iremos de carro.
     O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.
     — Não podíamos adiar isso para depois? perguntou o capitão logo que o bacharel saiu.
    — Não, senhor.
      O capitão estava em sua casa; mas o major tinha tal império na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão ceder.
      Preparou-se, meteram-se num carro e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.
     O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.
     Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que em menos de uma hora lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava... figuradamente falando, e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.
     O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes.
     — Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.
       — Vamos, tenha paciência, dizia-lhe o coadjutor. Vá, vá ver o que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção corrija a sorte dos dados.
     — Tem razão, é possível, concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.
X
    Na sala teve a surpresa de achar dois conhecidos.
     O capitão levantou-se sorrindo e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O major levantou-se também, mas não sorria.
     Feitos os cumprimentos foi exposta a questão. O capitão Soares apelou para a memória do desembargador a quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do major Gouveia.
      — Recordo-me ter-lhe dito, respondeu o desembargador, que a sobrinha de meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro...
     O major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia a diminuir à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.
     — Muito bem, disse ele; a mim não basta esse dito; desejo saber a quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.
     — A quem o ouvi?
    — Sim.
    — Foi ao senhor.
    — A mim!
    — Sim, senhor; sábado passado.
    — Não é possível!
     — Não se lembra que me disse na Rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...
      — Ah! mas não foi isso! exclamou o major. O que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.
    — Nada mais? perguntou o capitão.
    — Mais nada.
    — Realmente é curioso.
    O major despediu-se do desembargador, levou o capitão até Mata-porcos e foi direito para casa praguejando contra si e todo o mundo.
    Ao entrar em casa estava já mais aplacado. O que o consolou foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:
     — Quem conta um conto...

1 – O autor mostra que há coisas no ser humano que ele não compreende,
mas gostaria de compreender. Que exemplo ele dá daquilo que ele não
compreende?
O autor diz não compreender o gosto que muitas pessoas têm de dar notícias, ou seja, o ofício
de noveleiro.
2 – O autor dialoga com o leitor, ou seja, procura fazer um contato direto com
seu interlocutor. Aliás, essa é uma marca machadiana. Que recurso Machado
utiliza para realizar esta tarefa?
Durante o texto, Machado chama a atenção do leitor para que este interaja com ele; por
exemplo, faz uma indagação “E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa
singular vocação?”, o leitor certamente refletirá sobre pessoas que conhece que costumam
fazer uso desta prática.
3 – No quarto parágrafo do texto o autor avisa: “O caso... Lê-se depressa,
porque não é grande.” Que efeito ele pretende alcançar com esse recurso?
O autor tem a intenção de não perder o leitor, de prendê-lo à leitura, de conquistá-lo pela
notícia de ser a história pequena e não tomar-lhe muito tempo.
4 – Quais são as características de um bom noveleiro, segundo Machado de
Assis?
Para Machado, um bom noveleiro deve saber o momento e o modo exatos de se dar uma
notícia, bem como escolher o auditório. É preciso ter certo glamour para exercer bem o ofício,
por isso não é noveleiro quem quer.
5 – Machado de Assis não apresenta logo o noveleiro em questão; antes,
mostra-o aos poucos, falando de suas qualidades. Quem é o noveleiro e quais
são seus predicados?
O noveleiro em questão é Luís da Costa, homem de seus trinta anos, bem-apessoado e bem
falante, gostava de conversar e espalhar notícias. Não dava a notícia de qualquer jeito,
valorizava; sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de fazê-lo.
6 – Ao contar aos presentes na loja do Paula Brito a notícia de que a sobrinha
do Major Gouveia havia fugido, houve olhares de soslaio e pesado silêncio. O
que levava os ouvintes da notícia a agirem desta forma?
As pessoas que ouviam a notícia dada por Luís da Costa sabiam que o major de quem ele
falava era um dos presentes, mas não sabiam como avisá-lo.
7 – Após o primeiro momento de tensão, no qual Luís da Costa descobre estar
diante daquele a quem expunha e até criticava, há novo embaraço. O major
desfia as peripécias proferidas pelo noveleiro e comprova-lhe os absurdos. Que
prova o major dá de que a notícia alvissareira é mentirosa?
O major diz ao noveleiro que sua sobrinha não poderia ter fugido da casa dele naquela manhã,
visto que a moça se achava há quinze dias em Juiz de Fora.
8 – Qual a reação do nosso desastrado noveleiro ao se defrontar com o
homem de quem falava há pouco?
O noveleiro ficou sem ação, petrificado; empalideceu tanto que parecia um defunto.
9 – Ao ouvir o Major, além do estado de choque em que se encontra, Luís da
Costa passa a ostentar novos adereços: fica amarelo, verde e, por último, de
todas as cores do arco-íris. É possível que aconteça a algum ser humano essa
mudança de cores? Usando estas imagens, o autor quer levar o leitor a
visualizar a cena. O que essa mudança de cores significa?
Resposta pessoal. (Lembrar aos alunos que a linguagem pode ser usada em sentido figurado).
A mudança de cores mostra a mudança de estado do noveleiro, várias reações em pouco
tempo (mudança de humor, confusão de sentimentos, vexação).
10 – Luís da Costa se defende. Que argumento ele usa para convencer o Major
de que não está mentindo?
O noveleiro, diante da situação, argumenta que não poderia ter inventado a notícia, que
alguém lhe contara.
11 – O major aceita seu argumento, mas exige saber o nome de quem lhe
contara tal notícia. Após saber de quem se trata, que decisão toma o homem
ferido em sua honra?
O major decide ir ter com o Pires, autor da notícia segundo o noveleiro, para tomar
esclarecimentos.
12 – Luís da Costa procura dissuadir o Major da tarefa de procurar o autor da
notícia, mas fracassa e se vê obrigado a acompanhá-lo até o escritório do
Pires. Resumidamente, recorde (escreva) o que sucedeu aos dois homens
desde que deixaram a loja do Paula Brito até o momento de encontrar o
“inencontrável” Pires.
O major e Luís da Costa seguiram a passos largos até o escritório do Sr. Pires, na Rua dos
Pescadores; não o encontrando foram a trote à sua procura na Secretaria da Justiça, na Rua
do Passeio; o procurado já havia saído de lá dez minutos antes, voltaram à Rua dos
Pescadores. Agora Luís da Costa ia arrastado pelo braço do major. Ao chegarem ao escritório,
deram com o nariz na porta; o major decidiu então que iriam à Praia Grande, apesar da
resistência do noveleiro. Antes, porém, a pedido do alvissareiro, jantaram. Depois tomaram
uma barca de Niterói para a cidade imperial (Rio). O Sr. Pires não se encontrava em casa,
tinha ido jogar voltarete na casa do Dr. Oliveira. Partiram então para S. Domingos. Aí,
finalmente puderam encontrar o homem.
13 – Qual foi a reação do Pires diante do exposto por Luís da Costa?
O Sr. Pires apresentou modificações de espanto e medo, não conseguindo pronunciar palavra
ao término da exposição feita por Luís da Costa.
14 – Luís da Costa, ao se ver liberado da presença do Major, tomou uma barca
e rumou de volta. O Major, então, faz duas exigências a Pires. Quais?
Pediu-lhe que tivesse a bondade de o acompanhar à casa do empregado do Tesouro e quis
saber o nome do tal empregado.
15 – O Major faz uma peregrinação: de Luís da Costa a Pires; de Pires ao
Bacharel Plácido; do Bacharel ao Capitão Soares; do Capitão ao
Desembargador Lucas; do Desembargador a ele mesmo, o próprio Major, que
se surpreende com sua descoberta. Qual é a descoberta feita pelo major?
Descobriu que a desastrosa notícia diminuía à proporção que chegava a um novo suspeito. E,
de suspeito em suspeito, o major descobre que a fonte do boato era ele mesmo.
16 – O autor termina o texto com um dito popular. Complete-o:
“Quem conta um conto, aumenta um ponto.”
17 – Dê sua interpretação a este dito popular:
Resposta pessoal.
18 – Por que o Major tinha necessidade de encontrar o autor da notícia sobre
sua sobrinha?
Queria chegar à fonte da notícia para provar que esta era mentirosa e salvar a honra de sua
sobrinha, tanto quanto do seu nome.
19 – Havia uma notícia? Justifique sua resposta, baseando-se nos fatos
apresentados ao longo do texto:
Havia o fato do major ter dito que era capaz de castigar sua sobrinha, se esta deitasse os olhos
a algum alferes que passasse, estando ela para casar. No entanto, esta notícia foi aumentada
e modificada conforme foi passando de boca em boca.







CONTO: UMA IDEIA TODA AZUL 6º E 9º ANOS


CONTO: UMA IDEIA TODA AZUL - MARINA COLASANTI


                                           Marina Colasanti

        Um dia o rei teve uma ideia. Era a primeira da vida toda e, tão maravilhado ficou com aquela ideia azul, que não quis saber de contar aos ministros. Desceu com ela para o jardim, correu com ela nos gramados, brincou com ela de esconder entre outros pensamentos, encontrando-a sempre com alegria, linda ideia dele toda azul.
        Brincaram até o rei adormecer encostado numa árvore.
        Foi acordar tateando a coroa e procurando a ideia, para perceber o perigo. Sozinha no seu sono, solta e tão bonita, a ideia poderia ter chamado a atenção de alguém. Bastaria esse alguém pegá-la e levá-la. É tão fácil roubar uma ideia! Quem jamais saberia que já tinha dono?
        Com a ideia escondida debaixo do manto, o rei voltou para o castelo. Esperou a noite. Quando todos os olhos se fecharam, ele saiu dos seus aposentos, atravessou salões, desceu escadas, subiu degraus, até chegar ao corredor das salas do tempo. Portas fechadas e o silêncio. Que sala escolher?
        Diante de cada porta o rei parava, pensava e seguia adiante. Até chegar à sala do sono. Abriu. Na sala acolchoada, os pés do rei afundavam até o tornozelo, o olhar se embaraçava em gases, cortinas e véus pendurados como teias. Sala de quase escuro, sempre igual. O rei deitou a ideia adormecida na cama de marfim, baixou o cortinado, saiu e trancou a porta.
        A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela.
        O tempo correu seus anos. Ideias o rei não teve mais, nem sentiu falta, tão ocupado estava em governar. Envelhecia sem perceber, diante dos educados espelhos reais que mentiam a verdade. Apenas sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido vontade de brincar nos jardins.
        Só os ministros viam a velhice do rei. Quando a cabeça ficou toda branca, disseram-lhe que já podia descansar, e o libertaram do manto.
        Posta a coroa sobre a almofada, o rei logo levou a mão à corrente.
        Ninguém mais se ocupa de mim – dizia, atravessando salões, descendo escadas a caminho da sala do tempo. Ninguém mais me olha – dizia. Agora, posso buscar minha linda ideia e guardá-la só para mim.
        Abriu a porta, levantou o cortinado.
        Na cama de marfim, a ideia dormia azul como naquele dia.
        Como naquele dia, jovem, tão jovem, uma ideia menina. E linda. Mas o rei não era mais o rei daquele dia. Entre ele e a ideia estava todo o tempo passado lá fora, o tempo todo parado na sala do sono. Seus olhos não viam na ideia a mesma graça. Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como naquele dia.
        Sentado na beira da cama o rei chorou suas duas últimas lágrimas, as que tinha guardado para a maior tristeza.
        Depois, baixou o cortinado e, deixando a ideia adormecida, fechou para sempre a porta.
        Moral: ideia não é para ficar adormecida, mas para ser realizada, sob pena de se perder.

                            Extraído da obra de mesmo nome, Editora Global.

Entendendo o conto: 6º ano
01 – Quais fatos no texto permitem classifica-lo como um conto?
      Os fatos são imaginários.

02 – No texto, o narrador conta a história do rei que um dia passou a não ter mais ideias. Por que é importante que as pessoas tenham ideias?
      Para tomar decisões e procurar soluções para os problemas.

03 – O rei sentiu-se feliz porque finalmente teve sua primeira ideia. Temeroso, o rei preferiu esconder sua ideia para que ninguém a roubasse. De que modo se pode roubar uma ideia de outra pessoa?
      Utilizando como se fosse sua, para benefícios ou se promover.

04 – O rei parecia não confiar em ninguém e imaginou que, por ser tão especial, sua ideia atrairia o interesse de qualquer um. O rei agiu bem ao ocultar a sua ideia?
      O rei deveria ter utilizado a ideia azul para ter uma vida mais feliz.

05 – Já envelhecido, o rei finalmente pensou na ideia toda azul que se encontrava adormecida. Por que ele só foi pensar na ideia nesse momento?
      Porque agora tinha tempo para pensar em si mesmo.

9º ano
1 – O texto fala de um acontecimento único: uma ideia. Acontecimento único é
comum, faz parte do cotidiano ou é incomum?
Durante nossa vida (ou mesmo nosso dia) muitos são os acontecimentos. Em se tratando de ideias também. Muitas são as que permeiam nosso dia-a-dia, porém nem todas são colocadas em prática. Com o Rei, no entanto, foi um grande acontecimento, o único de sua vida toda.

2 – Quantos momentos possui a narrativa de Marina Colassanti e qual a contradição entre eles?
No primeiro momento, o rei tem uma idéia, mas não tem tempo de dar tratamento a ela. No segundo momento, o objeto (ideia) continua lá, mas o ser (rei) em relação a ela não, pois agora que tem tempo, não tem mais ânimo (idade) para dela tratar.

3 – As afirmações e as ações são categóricas?
Não, elas são atenuadas por adjetivos. Exemplos: “Brincaram até o Rei adormecer encostado numa árvore” ; “O Rei deitou a ideia adormecida na cama de marfim...” ; “A chave prendeu no pescoço em grossa corrente” ; “...diante dos educados espelhos reais...” ; “Agora posso buscar minha linda idéia...” ; “...a idéia dormia azul como naquele dia.” ; “uma idéia menina”.

4 – As ações se repetem ou são únicas?
As ações são únicas, num crescente e leve evoluir. A história toda se passa rapidamente através da leitura, mas lentamente através do tempo (o Rei é jovem e chega à velhice).

5 – O tempo e o lugar são mutáveis ou a ação ocorre em tempo e lugar únicos?
O lugar da ação é o castelo (é um espaço mítico), seus arredores (jardins, gramados, árvore) e aposentos (salões, escadas, corredor, salas).

6 – Qual(is) é(são) a(s) figura(s) de linguagem presente(s) neste texto?

Sinestesia (mistura de sentidos – tato, visão, audição); Personificação (a idéia toma forma, pode ser tocada, o Rei a deita na cama); Comparação (cortinas e véus pendurados como teias).

7 – Observe que a autora utiliza muitos substantivos acompanhados de adjetivos, apresentando assim afetividade em relação aos elementos. Faça uma lista de, pelo menos, cinco casos em que esse recurso aparece:
Ideia azul; linda ideia; ideia escondida; ideia adormecida; portas fechadas; sala acolchoada; véus pendurados; cama de marfim; grossa corrente; educados espelhos reais.
8 – Os verbos empregados no texto são seguidos de complemento ou apenas marcam a ação?
A maioria dos verbos são seguidos de complemento. Ex.: Um dia o Rei teve uma idéia; não quis saber de contar aos ministros; foi acordar tateando a coroa e procurando a ideia, para perceber o perigo.

9 – Há momentos em que a autora intercala ações com pensamentos. Transcreva situações do texto que comprovem esta afirmação:
No quarto e no antepenúltimo parágrafos, a autora busca transmitir de forma indireta o pensamento da personagem.


CONTO: A INCAPACIDADE DE SER VERDADEIRO 6º ANO


A incapacidade de ser verdadeiro

Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões da independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
— Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse menino é mesmo um caso de poesia.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. 7. ed. Ria de Janeiro: Record, 2006.

1 – O que levou Paulo a ter fama de mentiroso?
Paulo ganhou fama de mentiroso por não ater-se aos acontecimentos, sempre aumentando, fantasiando. A própria mãe o considerava tal.

2 – Você julga Paulo mentiroso? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal.

3 – Qual foi o motivo de Paulo receber o primeiro castigo?
O primeiro castigo Paulo recebeu no dia em que chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões da independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.

4 – O segundo castigo foi um pouco mais pesado. Qual foi sua penalidade?
Da segunda vez, por ter dito que no pátio da escola caíra um pedaço da lua, cheio de buraquinhos e que tinha gosto de queijo, Paulo foi condenado a ficar sem sobremesa e sem jogar futebol por quinze dias. Já pensou no que isso representa para um garoto?

5 – Da terceira vez, a mãe não aplicou castigo. Qual foi a medida tomada por ela neste caso?
No dia em que Paulo contou que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para levá-lo ao sétimo céu, a mãe levou-o ao médico para uma consulta.
6 - Paulo disse que vira no campo dois dragões da independência cuspindo
fogo e lendo fotonovelas.
a) Quem seriam os dragões da independência?
Dragões da Independência são soldados da cavalaria, usam fardamento vermelho e branco, cores tradicionais da cavalaria desde a Idade Média. (O 1º Regime de Cavalaria de Guardas, criado em 1808, passou a ser assim chamado em 1927. Eram estes dragões que acompanhavam D. Pedro I quando ele declarou a independência do Brasil e são eles que fazem a guarda e a segurança do presidente da República.)
b) O que pode ter de verdadeiro no fato narrado por Paulo?
Ele pode ter realmente visto dois soldados.
c) E de mentiroso ou fantástico?
O fato de eles estarem cuspindo fogo e lendo fotonovelas.

7 – De outra feita, Paulo diz que caiu no pátio da escola um pedaço da lua, que parecia queijo e até tinha gosto de queijo, pois ele havia provado. Explique o que há de fantasioso nesta narrativa de Paulo:
Nesta narrativa, a fantasia aparece no fato de ter caído no pátio da escola um pedaço da lua.

8 - Para a mãe que já andava preocupa com as “mentiras” de Paulo, foi demais ouvi-lo dizer que todas as borboletas da Terra haviam passado pelo sítio de Siá Elpídia e que queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu.
a) O que Paulo quis dizer com “todas as borboletas da Terra”?
Paulo viu uma grande quantidade de borboletas voando juntas (panapaná é o coletivo), por serem muitas ele as viu como todas da Terra.
b) O que seria o “tapete voador”?
A grande quantidade de borboletas vista por Paulo, sugeriu-lhe a imagem de um tapete voador.
c) Pesquise sobre o significado da expressão “sétimo céu”. Depois compare sua pesquisa com a dos colegas.
Respostas pessoais. O professor deverá mediar a comparação das respostas.
Sugestão: Por sétimo céu entende-se o alcance do nível máximo de felicidade, estado incomparavelmente maravilhoso. (Segundo os muçulmanos, não existe apenas um único céu, e sim sete, todos superpostos).
9 - Segundo o médico, a preocupação da mãe procedia? O que ele quis dizer com “Este menino é mesmo um caso de poesia”?
Não, segundo a opinião do médico, a mãe podia ficar tranquila, pois o menino era um caso de poesia, ou seja, Paulo era criativo, imaginoso, um pequeno poeta.
10 – E você, já fantasiou alguma realidade? Como foi? Se ainda não o fez, tente. Solte sua imaginação, você perceberá que é um exercício prazeroso.
Resposta pessoal. O professor pode levar os alunos a realizar este exercício.



Entendendo o texto:
     a) Que motivos conduziram as pessoas a achar que Paulo era mentiroso?
       Ele chegava em casa relatando que viu seres imaginários, falando coisas improváveis, mencionando acontecimentos fantásticos – considerando-se a realidade concreta, ele falava coisas improcedentes.

     b) Apesar de ser castigado, Paulo continua relatando à mãe situações fantasiosas. Por que você acha que isso ocorre?
       Professor, espera-se que o aluno reconheça que Paulo tem uma imaginação fértil e que, possivelmente, como escritor, gosta de imaginar situações, inverter histórias.

     c) Releia o diagnóstico do médico:
- Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse menino é mesmo um caso de poesia.
- A afirmação do médico confirma a ideia de que Paulo é mentiroso? Explique sua resposta.
       Não, o médico acha normal a imaginação criadora do menino e diz que ele tem dons poéticos.

d)Depois de ler o texto, explique por que Paulo é incapaz de ser verdadeiro.
      O menino é incapaz de ser verdadeiro conforme o que a mãe julgava correto. Ele criava outra realidade, a “realidade” da fantasia, do sonho, da imaginação. Professor, o título revela a capacidade da personagem de ir além de uma visão comum das coisas. O poeta é alguém que dá outro significado às palavras e à forma de ver o mundo.

     e) Que outro título poderia ter o texto?
      Um título possível seria: “Poeta por natureza”.

     f) Você costuma escrever textos poéticos? Já mostrou para alguém? Por quê?
      Resposta pessoal.

g) Quando Paulo chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas, a mãe:
(A) colocou-o de castigo.    
(B) deixou-o sem sobremesa.
(C) levou-o ao médico.    
(D) proibiu-o de jogar futebol.

h) A mãe de Paulo ficou preocupada com o filho porque ele
(A) machucou-se no pátio da escola.   
(B) contava histórias criativas.
(C) desistiu de jogar futebol.    
(D) queixou-se do médico.

i) A preocupação da mãe que a fez levar o filho ao médico deveu-se à:
(A) fábula dos dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.
(B) história do pedaço de lua, cheio de queijo no pátio da escola.
(C) passagem das borboletas pela chácara de Siá Elpídia formando um tapete voador.
(D) imaginação do menino ao criar suas histórias fantasiosas.

j) O parecer do médico "Este menino é mesmo um caso de poesia", sugere que Paulo
(A) agia dessa forma pelo excesso de castigo.     
(B) brincava com coisas verdadeiras.
(C) era um menino imaginativo e criativo.           
(D) estava precisando do carinho familiar.

k) Dona Coló castigava o filho porque acreditava que ele estivesse
(A) brincando.   
(B) sonhando.   
(C) mentindo.   
(D) teimando.

l) O texto sugere que
(A) mentira e teimosia andam juntos.   
(B) mentira e fantasia são sinônimos.
(C) mentira e sonho parecem brincadeiras.   
(D) mentira e imaginação são diferentes.



CONTO: FELICIDADE CLANDESTINA INTERPRETAÇÃO


Felicidade clandestina - Clarice Lispector
( Esse conto é o primeiro de uma série de 25 contos presentes no livro)
São Paulo, Ed. Ática, 1996

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

1 – O que tornava a antagonista diferente das demais garotas?
Além do aspecto físico que não condizia com as demais garotas da sua idade e do talento para a crueldade, possuía um pai dono de livraria, o sonho de toda criança devoradora de histórias.

2 – A filha do dono de livraria tinha grande capacidade para a crueldade. E, como se tivesse consciência disso, exercia-o com raro prazer. De que forma
agia a antagonista com sua “refém” ?
Exercia sobre ela uma tortura chinesa (no caso, consiste em tortura psicológica em ritmo vagaroso e nível crescente).

3 – O que o objeto de desejo representava para a garota que venerava ouvir/ler histórias?
O livro representava para ela sonho, fantasia, êxtase, poder. Através de tão venerado objeto, o qual sua condição financeira não permitia, a garota buscava alegria, amor pelo mundo.

4 – O estranho modo de andar da protagonista/narradora pelas ruas de Recife
nos dá uma ideia da sua forma de vida na infância: feliz, livre, despreocupada.
O mesmo se aplica à infância de nossas crianças hoje?
Resposta pessoal. (Refletir, discutir sobre o modo de vida atual. Não esquecer de contrapor vida urbana x vida rural; cidade pequena x grandes centros).

5 – Nesta narrativa, podemos dividir a situação vivida pela protagonista em três fases: desejo, esperança e deleite. Escreva sobre cada uma delas.
Desejo: Nesta fase, a garota toma conhecimento da existência do livro dos seus sonhos e passa a desejar ardentemente tê-lo nas mãos, lê-lo, vivê-lo.
Esperança: Na segunda fase, a menina passa a viver a espera do cumprimento da promessa. As idas diárias à casa daquela que lhe prometera o empréstimo; as constantes desculpas desta pelo fato do livro “não se encontrar” em seu poder; o momento da interferência da mãe da garota a propósito de explicações.
Deleite: A conquista do livro e o prazer de tê-lo, a felicidade clandestina.

6 – Justifique o título do texto, usando para isso o seu próprio conteúdo.
A autora escolheu “Felicidade clandestina” para título do conto por exprimir o que ela sentira em relação ao livro desejado. Era como se ele fosse-lhe ilegal (fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter); fosse-lhe um segredo (...fingia que não sabia onde guardara o livro... criava as mais falsas dificuldades... Havia orgulho e pudor em mim...).

7 – A aparição da mãe da garota possibilita um novo rumo à história. Que possibilidade é esta?
A partir do surgimento da mãe da garota, surge também a possibilidade de, finalmente, conseguir o empréstimo e, conseguindo-o acaba a tortura a que estava submetida, podendo realizar o sonho de ler o livro.

8 – A expressão o drama do “dia seguinte”, usada pela autora é reveladora.
O que esta expressão nos leva a deduzir sobre a personagem?
Essa expressão revela algo do comportamento emocional da personagem (ou talvez da própria autora). A cada nova espera, a cada novo dia seguinte, à guisa de expectativa a personagem sente o mesmo anseio, “com meu coração batendo”. Popularmente, chamaríamos este sintoma de “trauma de infância”.

9 – Quais são as expectativas (sonhos) que as mães tecem a respeito de seus
filhos?
Resposta pessoal. (Sugestões: a) Os alunos podem fazer uma pesquisa junto a algumas mães a esse respeito. b) As mães têm sempre expectativas positivas a respeito de seus filhos. Imaginam-nos crianças dóceis, amáveis, estudiosas. Quando adolescentes, esperam que terminem ou prossigam sua escolaridade, encontrem um bom emprego, sejam adultos de caráter e sucesso.)

10 – A autora inicia o texto com um parágrafo descritivo. Quem é caracterizado
e quais são as características dessa personagem?
No primeiro parágrafo do texto, a autora descreve a filha do dono de livraria: ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Costumava encher os bolsos da blusa, por cima do busto, de balas que chupava com barulho. Obs.: A descrição continua em outros parágrafos, apresentando uma garota que não gosta de ler, que certamente sente ciúmes das características físicas das outras garotas e que, talvez por isso, torna-se egoísta, vingativa, cruel, sádica.

11- Como se portou nossa protagonista a partir do momento que obteve o livro
nas mãos?
Ficou estonteada, aérea, como se estivesse fora de si. O livro tomado nas mãos fazia-lhe sentir-se com o peito quente e o coração pensativo. Era uma mistura de sentimentos: delícia e respeito, responsabilidade e devaneio. Passou a criar falsas dificuldades só para aumentar o incrível prazer que sentia com sua felicidade clandestina.
12 – A autora finaliza o texto com uma imagem, com uma metáfora: explique-a.
“Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.”
O segredo que fazia do livro para si própria, o cuidado com que dele cuidava, o carinho dispensado a ele eram os mesmos que uma mulher dispensa a amante. Esse amor quase proibido pelo objeto inspira a metáfora: a garota é a mulher; o livro, o amante.