Felicidade clandestina - Clarice Lispector
( Esse conto é o primeiro de uma série de 25 contos presentes no livro)
São Paulo, Ed. Ática, 1996
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente
crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda
éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por
cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de
histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário,
em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um
cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo,
onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra
bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura
vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu
nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe
emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre
mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações
de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar
vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses.
Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da
alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e
me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela
não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando
bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e
que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em
breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar
pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez
nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes
seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei
pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha
do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à
porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta
calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte.
Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia
seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era
tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já
começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho.
Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer
esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um
dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas
você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não
era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos
espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa,
ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar
estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras
pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar
entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme
surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que
acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos
espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a
menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então
que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai
emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por
quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo
tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode
ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim
recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí
pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso
com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar
em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha,
só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas
maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo
comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,
abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela
coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser
clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no
ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro
aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o
seu amante.
1 – O que tornava a antagonista diferente das demais
garotas?
Além do aspecto físico que não
condizia com as demais garotas da sua idade e do talento para a crueldade,
possuía um pai dono de livraria, o sonho de toda criança devoradora de
histórias.
2 – A filha do dono de livraria tinha grande capacidade para
a crueldade. E, como se tivesse consciência disso, exercia-o com raro prazer.
De que forma
agia a antagonista com sua “refém” ?
Exercia sobre ela uma tortura
chinesa (no caso, consiste em tortura psicológica em ritmo vagaroso e nível
crescente).
3 – O que o objeto de desejo representava para a garota que
venerava ouvir/ler histórias?
O livro representava para ela sonho,
fantasia, êxtase, poder. Através de tão venerado objeto, o qual sua condição
financeira não permitia, a garota buscava alegria, amor pelo mundo.
4 – O estranho modo de andar da protagonista/narradora pelas
ruas de Recife
nos dá uma ideia da sua forma de vida na infância: feliz,
livre, despreocupada.
O mesmo se aplica à infância de nossas crianças hoje?
Resposta pessoal. (Refletir,
discutir sobre o modo de vida atual. Não esquecer de contrapor vida urbana x
vida rural; cidade pequena x grandes centros).
5 – Nesta narrativa, podemos dividir a situação vivida pela
protagonista em três fases: desejo, esperança e deleite. Escreva sobre cada uma
delas.
Desejo: Nesta fase, a garota toma
conhecimento da existência do livro dos seus sonhos e passa a desejar
ardentemente tê-lo nas mãos, lê-lo, vivê-lo.
Esperança: Na segunda fase, a menina
passa a viver a espera do cumprimento da promessa. As idas diárias à casa
daquela que lhe prometera o empréstimo; as constantes desculpas desta pelo fato
do livro “não se encontrar” em seu poder; o momento da interferência da mãe da
garota a propósito de explicações.
Deleite: A conquista do livro e o
prazer de tê-lo, a felicidade clandestina.
6 – Justifique o título do texto, usando para isso o seu
próprio conteúdo.
A autora escolheu “Felicidade
clandestina” para título do conto por exprimir o que ela sentira em relação ao
livro desejado. Era como se ele fosse-lhe ilegal (fingia que não o tinha, só
para depois ter o susto de o ter); fosse-lhe um segredo (...fingia que não
sabia onde guardara o livro... criava as mais falsas dificuldades... Havia
orgulho e pudor em mim...).
7 – A aparição da mãe da garota possibilita um novo rumo à
história. Que possibilidade é esta?
A partir do surgimento da mãe da
garota, surge também a possibilidade de, finalmente, conseguir o empréstimo e,
conseguindo-o acaba a tortura a que estava submetida, podendo realizar o sonho
de ler o livro.
8 – A expressão o drama do “dia seguinte”, usada pela autora
é reveladora.
O que esta expressão nos leva a deduzir sobre a personagem?
Essa expressão revela algo do
comportamento emocional da personagem (ou talvez da própria autora). A cada
nova espera, a cada novo dia seguinte, à guisa de expectativa a personagem sente
o mesmo anseio, “com meu coração batendo”. Popularmente, chamaríamos este
sintoma de “trauma de infância”.
9 – Quais são as expectativas (sonhos) que as mães tecem a
respeito de seus
filhos?
Resposta pessoal. (Sugestões: a) Os
alunos podem fazer uma pesquisa junto a algumas mães a esse respeito. b) As
mães têm sempre expectativas positivas a respeito de seus filhos. Imaginam-nos
crianças dóceis, amáveis, estudiosas. Quando adolescentes, esperam que terminem
ou prossigam sua escolaridade, encontrem um bom emprego, sejam adultos de caráter
e sucesso.)
10 – A autora inicia o texto com um parágrafo descritivo.
Quem é caracterizado
e quais são as características dessa personagem?
No primeiro parágrafo do texto, a
autora descreve a filha do dono de livraria: ela era gorda, baixa, sardenta e
de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Costumava encher os bolsos
da blusa, por cima do busto, de balas que chupava com barulho. Obs.: A
descrição continua em outros parágrafos, apresentando uma garota que não gosta
de ler, que certamente sente ciúmes das características físicas das outras
garotas e que, talvez por isso, torna-se egoísta, vingativa, cruel, sádica.
11- Como se portou nossa protagonista a partir do momento
que obteve o livro
nas mãos?
Ficou estonteada, aérea, como se
estivesse fora de si. O livro tomado nas mãos fazia-lhe sentir-se com o peito
quente e o coração pensativo. Era uma mistura de sentimentos: delícia e respeito,
responsabilidade e devaneio. Passou a criar falsas dificuldades só para
aumentar o incrível prazer que sentia com sua felicidade clandestina.
12 – A autora finaliza o texto com uma imagem, com uma
metáfora: explique-a.
“Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o
seu amante.”
O segredo que fazia do livro para si
própria, o cuidado com que dele cuidava, o carinho dispensado a ele eram os
mesmos que uma mulher dispensa a amante. Esse amor quase proibido pelo objeto
inspira a metáfora: a garota é a mulher; o livro, o amante.
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