CONTO: QUEM CONTA UM CONTO
I
Eu compreendo
que um homem goste de ver brigar galos ou de tomar rapé. O rapé dizem os
tomistas que alivia o cérebro. A briga de galos é o Jockey Club dos pobres. O
que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.
E todavia
quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa singular vocação? O noveleiro
não é tipo muito vulgar, mas também não é muito raro. Há família numerosa
deles. Alguns são mais peritos e originais que outros. Não é noveleiro quem
quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho, quero dizer as mesmas
que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar
uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve
esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.
Não compreendo,
como disse, o ofício de noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o
que sabe a respeito de algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa
a entender. Mais de uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas
a certeza de que nenhum noveleiro confessa que o é tem impedido a realização
deste meu desejo. Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em
conhecer os caprichos do espírito humano.
O caso de que
vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não
é grande.
II
Há coisa de
sete anos vivia nesta boa cidade um homem de seus trinta anos, bem apessoado e
bem falante, amigo de conversar, extremamente polido, mas extremamente amigo de
espalhar novas.
Era um modelo
do gênero.
Sabia como
ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de dar a notícia. Não
sacava a notícia da algibeira como quem tira uma moeda de vintém para dar a um
mendigo.
Não, senhor.
Atendia mais
que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente
que o ministério pedira a demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria
simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente,
ou adicionava-lhe certo molho para torná-la mais picante.
Às vezes entrava,
cumprimentava as pessoas presentes, e se entre elas alguma havia metida em
política, aproveitava o silêncio causado pela sua entrada, para fazer-lhe uma
pergunta deste gênero:
— Então, parece
que os homens...
Os circunstantes
perguntavam logo:
— Que é? que há?
Luís da Costa, sem
perder o seu ar sério, dizia singelamente:
— É o ministério
que pediu demissão.
— Ah! sim?
quando?
— Hoje.
— Sabe quem foi
chamado?
— Foi chamado o
Zózimo.
— Mas por que
caiu o ministério?
— Ora, estava
podre.
Etc., etc.
Ou então:
— Morreram como
viveram.
— Quem? quem?
quem?
Luís da Costa
puxava os punhos e dizia negligentemente:
— Os ministros.
Suponhamos
agora que se tratava de uma pessoa qualificada que devia vir no paquete: Adolfo
Thiers ou o príncipe de Bismarck.
Luís da Costa
entrava, cumprimentava silenciosamente a todos, e em vez de dizer com
simplicidade:
— Veio no
paquete de hoje o príncipe de Bismarck.
Ou então:
— O Thiers
chegou no paquete.
Voltava-se para
um dos circunstantes:
— Chegaria o
paquete?
— Chegou, dizia
o circunstante.
— O Thiers
veio?
Aqui entrava a
admiração dos ouvintes, com que se deliciava Luís da Costa, razão
principalmente do seu ofício.
III
Não se pode
negar que este prazer era inocente e quando muito singular.
Infelizmente não
há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de
veneno? perguntava o poeta da Jovem Cativa, e eu creio que nenhum, nem sequer o
de alvissareiro.
Luís da Costa
experimentou um dia as asperezas do seu ofício.
Eram duas horas
da tarde. Havia pouca gente na loja do Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís
da Costa entrou com o rosto fechado como homem que vem pejado de alguma
notícia.
Apertou a mão a
quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque
não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio, que Luís da Costa
aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para
todos, e soltou secamente estas palavras:
— Então fugiu a
sobrinha do Gouveia? disse ele rindo.
— Que Gouveia?
disse um dos presentes.
— O major
Gouveia, explicou Luís da Costa.
Os circunstantes ficaram muito calados e
olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para
Luís da Costa.
— O major
Gouveia da Cidade Nova? perguntou o desconhecido ao noveleiro.
— Sim, senhor.
Novo e mais
profundo silêncio.
Luís da Costa,
imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de queimar, entrou a
referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um
alferes, da oposição do major ao casamento, do desespero dos pobres namorados,
cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima
dos moinhos.
O silêncio era
sepulcral.
O desconhecido
ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma
grossa bengala que tinha na mão.
Quando o
alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:
— E quando foi
esse rapto?
— Hoje de manhã.
— Oh!
— Das 8 para as 9
horas.
— Conhece o major
Gouveia?
— De nome.
— Que idéia forma
dele?
— Não formo idéia
nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a rapariga é
muito bonita...
— Conhece-a?
— Ainda ontem a
vi.
— Ah! A segunda
circunstância...
— A segunda
circunstância é a crueldade de certos homens em tolher os movimentos do coração
da mocidade. O alferes de que se trata dizem-me que é um moço honesto, e o
casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o major impedi-lo?
— O major tinha
razões fortes, observou o desconhecido.
— Ah! conhece-o?
— Sou eu.
Luís da Costa
ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e
pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois sem saber o que ira sair
dali. Deste modo correram cinco minutos.
IV
No fim de cinco
minutos, o major Gouveia continuou:
— Ouvi toda a sua
narração e diverti-me com ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha
casa, visto que há quinze dias se acha em Juiz de Fora.
Luís da Costa
ficou amarelo.
— Por essa razão
ouvi tranqüilamente a história que o senhor acaba de contar com todas as suas
peripécias. O fato, se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto,
porque, além do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu
ontem...
Luís da Costa
tornou-se verde.
— A notícia,
entretanto, pode ter-se espalhado, continuou o major Gouveia, e eu desejo
liquidar o negócio pedindo-lhe que me diga de quem a ouviu...
Luís da Costa
ostentou todas as cores do íris.
— Então? disse o
major passados alguns instantes de silêncio.
— Sr. major,
disse com voz trêmula Luís da Costa, eu não podia inventar semelhante notícia.
Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente alguém ma contou.
— É justamente o
que eu desejo saber.
— Não me
lembro...
— Veja se se lembra,
disse o major com doçura.
Luís da Costa
consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não
podia atinar com a pessoa que lhe contara a história do rapto.
As outras
pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que as coisas podiam ter,
trataram de meter o caso à bulha; mas o major, que não era homem de graças,
insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a respeito do inventor da
balela.
— Ah! agora me
lembra, disse de repente Luís da Costa, foi o Pires.
— Que Pires?
— Um Pires que eu
conheço muito superficialmente.
— Bem, vamos ter
com o Pires.
— Mas, Sr.
major...
O major já
estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com ar de quem estava pouco disposto
a discussões. Esperou que Luís da Costa se levantasse também. O alvissareiro
não teve remédio senão imitar o gesto do major, não sem tentar ainda um:
— Mas, Sr. major...
— Não há mas,
nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo.
Sabe onde mora esse tal Pires?
— Mora na Praia
Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.
— Vamos ao
escritório.
Luís da Costa cortejou os outros e saiu ao
lado do major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um
charuto. O major recusou o charuto, dobrou o passo e os dois seguiram na
direção da Rua dos Pescadores.
V
— O Sr. Pires?
— Foi
à secretaria da Justiça.
— Demora-se?
— Não sei.
Luís da Costa
olhou para o major ao ouvir estas palavras do criado do Sr. Pires. O major
disse fleugmaticamente:
— Vamos à
secretaria da Justiça.
E ambos foram a
trote largo na direção da Rua do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e
Luís da Costa, que jantava cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa
petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às garras do major. Se o Pires
tivesse embarcado para Santos, é provável que o major o levasse até lá antes de
jantar.
Tudo estava
perdido.
Chegaram enfim à
secretaria, bufando como dois touros.
Os empregados
vinham saindo, e um deles deu notícia certa do esquivo Pires; disse-lhes que
saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.
— Voltemos à Rua
dos Pescadores, disse pacificamente o major.
— Mas, senhor...
A única resposta
do major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.
Luís da Costa
ia furioso. Começava a compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um
crime. O desejo de estrangular o major pareceu-lhe um sentimento natural.
Lembrou-se de ter condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de
morte, e teve horror de si mesmo.
O major, porém,
continuava a andar com aquele passo rápido dos majores que andam depressa. Luís
da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente impossível apostar carreira com ele.
Eram três e
cinco minutos quando chegaram defronte do escritório do Sr. Pires. Tiveram o
gosto de dar com o nariz na porta.
O major Gouveia
mostrou-se aborrecido com o fato; como era homem resoluto, depressa se consolou
do incidente.
— Não há dúvida,
disse ele, iremos à Praia Grande.
— Isso é
impossível! clamou Luís da Costa.
— Não é tal,
respondeu tranqüilamente o major, temos barca e custa-nos um cruzado a cada um:
eu pago a sua passagem.
— Mas, senhor, a
esta hora...
— Que tem?
— São horas de
jantar, suspirou o estômago de Luís da Costa.
— Pois jantaremos
antes.
Foram dali a um
hotel e jantaram. A companhia do major era extremamente aborrecida para o
desastrado alvissareiro. Era impossível livrar-se dela; Luís da Costa portou-se
o melhor que pôde. Demais, a sopa e o primeiro prato foi o começo da
reconciliação. Quando veio o café e um bom charuto, Luís da Costa estava
resolvido a satisfazer o seu anfitrião em tudo o que lhe aprouvesse.
O major pagou a
conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói;
meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se à imperial cidade.
No trajeto, o
major Gouveia conservou-se tão taciturno como até então. Luís da Costa, que já
estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou atar conversa com o major; mas
foram esforços inúteis. Ardia entretanto por levá-lo até a casa do Sr. Pires,
que explicaria as coisas como as soubesse.
VI
O Sr. Pires
morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes
haviam jantado, também o Sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir
jogar o voltarete em casa do Dr. Oliveira, em S. Domingos, para lá seguira
vinte minutos antes.
O major ouviu
esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as
duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda e olhando de esguelha para
Luís da Costa, disse:
— Vamos a S.
Domingos.
— Vamos a S.
Domingos, suspirou Luís da Costa.
A viagem foi de
carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.
Na casa do Dr.
Oliveira passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir.
Enfim vieram.
— Está cá o Sr.
Pires?
— Está, sim,
senhor, disse o moleque.
Os dois
respiraram.
O moleque
abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires,
l’introuvable.
Era um sujeitinho
baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão a Luís da Costa e
cumprimentou cerimoniosamente ao major Gouveia.
— Queiram
sentar-se.
— Perdão, disse o
major, não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.
O Sr. Pires curvou
a cabeça e esperou.
O major voltou-se
então para Luís da Costa e disse:
— Fale.
Luís da Costa fez
das tripas coração e exprimiu-se nestes termos:
— Estando eu hoje
na loja do Paula Brito contei a história do rapto de uma sobrinha do Sr. major
Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O major Gouveia é
este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto
sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à
fonte da notícia e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei
em dizer que fora o senhor. Resolveu então procurá-lo, e não temos feito outra
coisa desde as duas horas e meia. Enfim, encontramo-lo.
Durante este
discurso, o rosto do Sr. Pires apresentou todas as modificações do espanto e do
medo. Um ator, um pintor, ou um estatuário teria ali um livro inteiro para
folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o Sr.
Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não
se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três a quatro
minutos.
— Espero as suas
ordens, disse o major, vendo que o homem não falava.
— Mas, que quer o
senhor? balbuciou o Sr. Pires.
— Quero que me
diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe
disse que minha sobrinha era bonita?
— Não lhe disse
tal, acudiu o Sr. Pires; o que eu disse foi que me constava ser bonita.
— Vê? disse o
major voltando-se para Luís da Costa.
Luís da Costa
começou a contar as tábuas do teto.
O major dirigiu-se
depois ao Sr. Pires:
— Mas vamos lá,
disse; de quem ouviu a notícia?
— Foi de um
empregado do Tesouro.
— Onde mora?
— Em Catumbi.
O major voltou-se
para Luís da Costa, cujos olhos, tendo já contado as tábuas do teto, que eram
vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.
— Pode
retirar-se, disse o major; não é mais preciso aqui.
Luís da Costa não
esperou mais; apertou a mão do Sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa, e
saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível
major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a
alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.
Estava livre.
VII
Ficaram sós o
major e o Sr. Pires.
— Agora, disse o
primeiro, há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do
Tesouro... Como se chama?
— O bacharel
Plácido.
— Estou às suas
ordens; tem passagem e carro pago.
O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e
murmurou:
— Mas eu não
sei... se...
— Se?
— Não sei se me é
possível nesta ocasião...
— Há de ser.
Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir
a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.
— Confesso que as
circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...
— O quê?
— Adiar?
— Impossível.
O Sr. Pires
mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava
disposto a acompanhá-lo.
— Acredite, Sr.
major, disse ele concluindo, que só as circunstâncias especiais deste caso me
obrigariam a ir à cidade.
O major
inclinou-se.
O Sr. Pires foi
despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável major, em
cujo rosto se lia a mais franca resolução.
A viagem foi tão
silenciosa como a primeira. O major parecia uma estátua; não falava e raras
vezes olhava para o seu companheiro.
A razão foi
compreendida pelo Sr. Pires, que matou as saudades do voltarete, fumando sete
cigarros por hora.
Enfim chegaram a
Catumbi.
Desta vez foi o
major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.
O bacharel
Plácido era o seu próprio nome feito homem. Nunca a pachorra tivera mais
fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes
com a benevolência de um Plácido verdadeiramente plácido.
O Sr. Pires
explicou o objeto da visita.
— É verdade que eu
lhe falei de um rapto, disse o bacharel, mas não foi nos termos em que o senhor
o repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do major Gouveia com um
alferes era tal que até já se sabia do projeto de rapto.
— E quem lhe
disse isso, Sr. bacharel? perguntou o major.
— Foi o capitão
de artilharia Soares.
— Onde mora?
— Ali
em Mata-porcos.
— Bem, disse o
major.
E voltando-se
para o Sr. Pires:
— Agradeço-lhe o
incômodo, disse; não lhe agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro
tem ordem de o acompanhar até à estação das barcas.
O Sr. Pires não
esperou novo discurso; despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro deu dois ou
três socos em si mesmo e fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua
pessoa.
— É bem feito,
dizia o Sr. Pires; quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me
diz respeito, estaria a esta hora muito descansado e não passaria por
semelhante dissabor. É bem feito!
VIII
O bacharel Plácido
encarou o major, sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro
fora embora. Não tardou que o major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu
da sala, disse ele:
— Queira agora
acompanhar-me à casa do capitão Soares.
— Acompanhá-lo!
exclamou o bacharel mais surpreendido do que se lhe caísse o nariz no lenço de
tabaco.
— Sim, senhor.
— Que pretende
fazer?
— Oh! nada que o
deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem
necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o
repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.
O bacharel
recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às
ave-marias para ir a Mata-porcos era um absurdo. A nada atendia o major
Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que
persuadia o gordo bacharel.
— Mas há de
confessar que é longe, observou este.
— Não seja essa
a dúvida, acudiu o outro; mande chamar um carro que eu pago.
O bacharel
Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e
sentou-se.
— Então? disse o
major ao cabo de algum tempo de silêncio.
— Refleti, disse
o bacharel; é melhor irmos a pé; eu jantei há pouco e preciso digerir. Vamos a
pé...
— Bem, estou às
suas ordens.
O bacharel
arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o major, com as mãos nas costas,
passeava na sala meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.
Gastou o bacharel
cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala,
quando o major ia já tocar a campainha para chamar alguém.
— Pronto?
— Pronto.
— Vamos!
— Deus vá conosco.
Saíram os dois na
direção de Mata-porcos.
Se uma pipa
andasse seria o bacharel Plácido; já porque a gordura não lho consentia, já
porque desejara pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com
passo de gente. Não andava... arrastava-se. De quando em quando parava,
respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.
Com este era
impossível o major empregar o sistema de reboque que tão bom efeito teve com
Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar era impossível, porque ninguém
arrasta oito arrobas com a simples força do braço.
Tudo isto punha o
major em apuros. Se visse passar um carro, tudo estava acabado, porque o
bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se
apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um
tílburi vago convidava, a passo lento, os fregueses.
O resultado de
tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do capitão Soares.
O bacharel respirou à larga, enquanto o major batia palmas na escada.
— Quem é?
perguntou uma voz açucarada.
— O Sr. capitão?
disse o major Gouveia.
— Eu não sei se já
saiu, respondeu a voz; vou ver.
Foi ver, enquanto
o major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de
semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar
com toda a singeleza:
— O senhor quem é?
— Diga que é o
bacharel Plácido, acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a
católica pessoa em cima de algum sofá.
A voz foi dar a
resposta e daí a dois minutos voltou a dizer que o bacharel Plácido podia
subir.
Subiram os dois.
O capitão estava
na sala e veio receber à porta o bacharel e o major. A este conhecia também,
mas eram apenas cumprimentos de chapéu.
— Queiram
sentar-se.
Sentaram-se
IX
— Que mandam nesta
sua casa? perguntou o capitão Soares.
O bacharel usou da
palavra:
— Capitão, eu
tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha
do Sr. major Gouveia.
— Não me lembra;
que foi? disse o capitão com uma cara tão alegre como a de homem a quem
estivessem torcendo um pé.
— Disse-me você,
continuou o bacharel Plácido, que o namoro da sobrinha do Sr. major Gouveia era
tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...
— Perdão!
interrompeu o capitão. Agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi
tanto como você acaba de repetir.
— Não foi?
— Não.
— Então que foi?
— O que eu disse
foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. S. com um alferes.
Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.
— Sim, há alguma
diferença, concordou o bacharel.
— Há, disse o
major deitando-lhe os olhos por cima do ombro.
Seguiu-se um
silêncio.
Foi o major
Gouveia o primeiro que falou.
— Enfim,
senhores, disse ele, ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da
notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído
muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. capitão
dizer-me a quem ouviu isso?
— Pois não,
disse o capitão; ouvi-o ao desembargador Lucas.
— É meu amigo!
— Tanto melhor.
— Acho impossível
que ele dissesse isso, disse o major levantando-se.
— Senhor!
exclamou o capitão.
— Perdoe-me,
capitão, disse o major caindo em si. Há de concordar que ouvir a gente o seu
nome assim maltratado por culpa de um amigo...
— Nem ele disse
por mal, observou o capitão Soares. Parecia até lamentar o fato, visto que sua
sobrinha está para casar com outra pessoa...
— É verdade,
concordou o major. O desembargador não era capaz de injuriar-me; naturalmente
ouviu isso a alguém.
— É provável.
— Tenho interesse
em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.
— Agora!
— É
indispensável.
— Mas sabe que
ele mora no Rio Comprido?
— Sei; iremos de
carro.
O bacharel
Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.
— Não podíamos
adiar isso para depois? perguntou o capitão logo que o bacharel saiu.
— Não, senhor.
O capitão estava
em sua casa; mas o major tinha tal império na voz ou no gesto quando exprimia a
sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão
ceder.
Preparou-se,
meteram-se num carro e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o
desembargador.
O desembargador
era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra
quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.
Ora, justamente
na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o
coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que em menos de uma hora lhe
dera já cinco gangas. O desembargador fumava... figuradamente falando, e o
coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na
sala e queriam falar com o desembargador.
O digno sacerdote
da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou
antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e
maçantes.
— Há de ver que é
algum procurador à procura de autos, ou à cata de autos, ou à cata de
informações. Que os leve o diabo a todos eles.
— Vamos, tenha
paciência, dizia-lhe o coadjutor. Vá, vá ver o que é, que eu o espero. Talvez
que esta interrupção corrija a sorte dos dados.
— Tem razão, é
possível, concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.
X
Na sala teve a
surpresa de achar dois conhecidos.
O capitão
levantou-se sorrindo e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O
major levantou-se também, mas não sorria.
Feitos os
cumprimentos foi exposta a questão. O capitão Soares apelou para a memória do
desembargador a quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do major
Gouveia.
— Recordo-me
ter-lhe dito, respondeu o desembargador, que a sobrinha de meu amigo Gouveia
piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para
casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro...
O major não pôde
disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia a diminuir à proporção que se
aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.
— Muito bem,
disse ele; a mim não basta esse dito; desejo saber a quem o ouviu, a fim de
chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.
— A quem o ouvi?
— Sim.
— Foi ao senhor.
— A mim!
— Sim, senhor;
sábado passado.
— Não é possível!
— Não se lembra
que me disse na Rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...
— Ah! mas não
foi isso! exclamou o major. O que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que
era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse
os olhos a algum alferes que passasse.
— Nada mais?
perguntou o capitão.
— Mais nada.
— Realmente é
curioso.
O major
despediu-se do desembargador, levou o capitão até Mata-porcos e foi direito
para casa praguejando contra si e todo o mundo.
Ao entrar em casa
estava já mais aplacado. O que o consolou foi a idéia de que o boato podia ser
mais prejudicial do que fora. Na cama ainda pensou no acontecimento, mas já se
ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir
foram:
— Quem conta um
conto...
1 – O autor mostra que há coisas no ser humano que ele não
compreende,
mas gostaria de compreender. Que exemplo ele dá daquilo que
ele não
compreende?
O autor diz não compreender o gosto que muitas pessoas têm
de dar notícias, ou seja, o ofício
de noveleiro.
2 – O autor dialoga com o leitor, ou seja, procura fazer um
contato direto com
seu interlocutor. Aliás, essa é uma marca machadiana. Que
recurso Machado
utiliza para realizar esta tarefa?
Durante o texto, Machado chama a atenção do leitor para que
este interaja com ele; por
exemplo, faz uma indagação “E todavia quantas pessoas não
conhecerá o leitor com essa
singular vocação?”, o leitor certamente refletirá sobre
pessoas que conhece que costumam
fazer uso desta prática.
3 – No quarto parágrafo do texto o autor avisa: “O caso...
Lê-se depressa,
porque não é grande.” Que efeito ele pretende alcançar com
esse recurso?
O autor tem a intenção de não perder o leitor, de prendê-lo
à leitura, de conquistá-lo pela
notícia de ser a história pequena e não tomar-lhe muito
tempo.
4 – Quais são as características de um bom noveleiro,
segundo Machado de
Assis?
Para Machado, um bom noveleiro deve saber o momento e o
modo exatos de se dar uma
notícia, bem como escolher o auditório. É preciso ter certo
glamour para exercer bem o ofício,
por isso não é noveleiro quem quer.
5 – Machado de Assis não apresenta logo o noveleiro em
questão; antes,
mostra-o aos poucos, falando de suas qualidades. Quem é o
noveleiro e quais
são seus predicados?
O noveleiro em questão é Luís da Costa, homem de seus
trinta anos, bem-apessoado e bem
falante, gostava de conversar e espalhar notícias. Não dava
a notícia de qualquer jeito,
valorizava; sabia como ninguém escolher o auditório, a
ocasião e a maneira de fazê-lo.
6 – Ao contar aos presentes na loja do Paula Brito a
notícia de que a sobrinha
do Major Gouveia havia fugido, houve olhares de soslaio e
pesado silêncio. O
que levava os ouvintes da notícia a agirem desta forma?
As pessoas que ouviam a notícia dada por Luís da Costa
sabiam que o major de quem ele
falava era um dos presentes, mas não sabiam como avisá-lo.
7 – Após o primeiro momento de tensão, no qual Luís da
Costa descobre estar
diante daquele a quem expunha e até criticava, há novo
embaraço. O major
desfia as peripécias proferidas pelo noveleiro e
comprova-lhe os absurdos. Que
prova o major dá de que a notícia alvissareira é mentirosa?
O major diz ao noveleiro que sua sobrinha não poderia ter
fugido da casa dele naquela manhã,
visto que a moça se achava há quinze dias em Juiz de Fora.
8 – Qual a reação do nosso desastrado noveleiro ao se
defrontar com o
homem de quem falava há pouco?
O noveleiro ficou sem ação, petrificado; empalideceu tanto
que parecia um defunto.
9 – Ao ouvir o Major, além do estado de choque em que se
encontra, Luís da
Costa passa a ostentar novos adereços: fica amarelo, verde
e, por último, de
todas as cores do arco-íris. É possível que aconteça a
algum ser humano essa
mudança de cores? Usando estas imagens, o autor quer levar
o leitor a
visualizar a cena. O que essa mudança de cores significa?
Resposta pessoal. (Lembrar aos alunos que a linguagem pode
ser usada em sentido figurado).
A mudança de cores mostra a mudança de estado do noveleiro,
várias reações em pouco
tempo (mudança de humor, confusão de sentimentos, vexação).
10 – Luís da Costa se defende. Que argumento ele usa para
convencer o Major
de que não está mentindo?
O noveleiro, diante da situação, argumenta que não poderia
ter inventado a notícia, que
alguém lhe contara.
11 – O major aceita seu argumento, mas exige saber o nome
de quem lhe
contara tal notícia. Após saber de quem se trata, que
decisão toma o homem
ferido em sua honra?
O major decide ir ter com o Pires, autor da notícia segundo
o noveleiro, para tomar
esclarecimentos.
12 – Luís da Costa procura dissuadir o Major da tarefa de
procurar o autor da
notícia, mas fracassa e se vê obrigado a acompanhá-lo até o
escritório do
Pires. Resumidamente, recorde (escreva) o que sucedeu aos
dois homens
desde que deixaram a loja do Paula Brito até o momento de
encontrar o
“inencontrável” Pires.
O major e Luís da Costa seguiram a passos largos até o
escritório do Sr. Pires, na Rua dos
Pescadores; não o encontrando foram a trote à sua procura
na Secretaria da Justiça, na Rua
do Passeio; o procurado já havia saído de lá dez minutos
antes, voltaram à Rua dos
Pescadores. Agora Luís da Costa ia arrastado pelo braço do
major. Ao chegarem ao escritório,
deram com o nariz na porta; o major decidiu então que iriam
à Praia Grande, apesar da
resistência do noveleiro. Antes, porém, a pedido do
alvissareiro, jantaram. Depois tomaram
uma barca de Niterói para a cidade imperial (Rio). O Sr.
Pires não se encontrava em casa,
tinha ido jogar voltarete na casa do Dr. Oliveira. Partiram
então para S. Domingos. Aí,
finalmente puderam encontrar o homem.
13 – Qual foi a reação do Pires diante do exposto por Luís
da Costa?
O Sr. Pires apresentou modificações de espanto e medo, não
conseguindo pronunciar palavra
ao término da exposição feita por Luís da Costa.
14 – Luís da Costa, ao se ver liberado da presença do
Major, tomou uma barca
e rumou de volta. O Major, então, faz duas exigências a
Pires. Quais?
Pediu-lhe que tivesse a bondade de o acompanhar à casa do
empregado do Tesouro e quis
saber o nome do tal empregado.
15 – O Major faz uma peregrinação: de Luís da Costa a
Pires; de Pires ao
Bacharel Plácido; do Bacharel ao Capitão Soares; do Capitão
ao
Desembargador Lucas; do Desembargador a ele mesmo, o próprio
Major, que
se surpreende com sua descoberta. Qual é a descoberta feita
pelo major?
Descobriu que a desastrosa notícia diminuía à proporção que
chegava a um novo suspeito. E,
de suspeito em suspeito, o major descobre que a fonte do
boato era ele mesmo.
16 – O autor termina o texto com um dito popular.
Complete-o:
“Quem conta um conto, aumenta
um ponto.”
17 – Dê sua interpretação a este dito popular:
Resposta pessoal.
18 – Por que o Major tinha necessidade de encontrar o autor
da notícia sobre
sua sobrinha?
Queria chegar à fonte da notícia para provar que esta era
mentirosa e salvar a honra de sua
sobrinha, tanto quanto do seu nome.
19 – Havia uma notícia? Justifique sua resposta,
baseando-se nos fatos
apresentados ao longo do texto:
Havia o fato do major ter dito que era capaz de castigar
sua sobrinha, se esta deitasse os olhos
a algum alferes que passasse, estando ela para casar. No
entanto, esta notícia foi aumentada
e modificada conforme foi
passando de boca em boca.
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