De muito procurar
Marina Colasanti
Aquele
homem caminhava sempre de cabeça baixa. Por tristeza, não. Por atenção. Era um
homem à procura. À procura de tudo o que os outros deixassem cair
inadvertidamente, uma moeda, uma conta de colar, um botão de madrepérola, uma
chave, a fivela de um sapato, um brinco frouxo, um anel largo demais.
Recolhia,
e ia pondo nos bolsos. Tão fundos e pesados, que pareciam ancorá-lo à terra.
Tão inchados, que davam contornos de gordo à sua magra silhueta.
Silencioso
e discreto, sem nunca encarar quem quer que fosse, os olhos sempre voltados
para o chão, o homem passava pelas ruas despercebido, como se invisível.
Cruzasse duas ou três vezes diante da padaria, não se lembraria o padeiro de
tê-lo visto, nem lhe endereçaria a palavra. Sequer ladravam os cães, quando se
aproximava das casas.
Mas
aquele homem que não era visto, via longe. Entre as pedras do calçamento, as
rodas das carroças, os cascos dos cavalos e os pés das pessoas que passavam
indiferentes, ele era capaz de catar dois elos de uma correntinha partida,
sorrindo secreto como se tivesse colhido uma fruta.
À
noite, no cômodo que era toda a sua moradia, revirava os bolsos sobre a mesa e,
debruçado sobre seu tesouro espalhado, colhia com a ponta dos dedos uma ou outra
mínima coisa, para que à luz da vela ganhasse brilho e vida. Com isso, fazia-se
companhia. E a cabeça só se punha para trás quando, afinal, a deitava no
travesseiro.
Estava
justamente deitando-se, na noite em que bateram à porta. Acendeu a vela. Era um
moço.
Teria
por acaso encontrado a sua chave? Perguntou. Morava sozinho, não podia voltar
para casa sem ela.
Eu...
esquivou-se o homem. O senhor, sim, insistiu o moço acrescentando que ele
próprio já havia vasculhado as ruas inutilmente.
Mas
quem disse... resmungou o homem, segurando a porta com o pé para impedir a
entrada do outro.
Foi
a velha da esquina que se faz de cega, insistiu o jovem sem empurrar, diz que o
senhor enxerga por dois.
O
homem abriu a porta.
Entraram.
Chaves havia muitas sobre a mesa. Mas não era nenhuma daquelas. O homem então
meteu as mãos nos bolsos, remexeu, tirou uma pedrinha vermelha, um prego, três
chaves. Eram parecidas, o moço levou as três, devolveria as duas que não fossem
suas.
Passados
dias bateram à porta. O homem abriu, pensando fosse o moço. Era uma senhora.
Um
moço me disse... começou ela. Havia perdido o botão de prata da gola e o moço
lhe havia garantido que o homem saberia encontrá-lo. Devolveu as duas chaves do
outro. Saiu levando seu botão na palma da mão.
Bateram
à porta várias vezes nos dias que se seguiram. Pouco a pouco se espalhava a
fama do homem. Pouco a pouco se esvaziava a mesa dos seus haveres.
Soprava
um vento quente, giravam folhas no ar, naquele fim de tarde, nem bem outono, em
que a mulher veio. Não bateu à porta, encontrou-a aberta. Na soleira, o homem
rastreava as juntas dos paralelepípedos. Seu olhar esbarrou na ponta delicada
do sapato, na barra da saia. E manteve-se baixo.
Perdi
o juízo, murmurou ela com voz abafada, por favor, me ajude.
Assim
pela primeira vez, o homem passou a procurar alguma coisa que não sabia como
fosse. E para reconhecê-la, caso desse com ela, levava consigo a mulher.
Saíam
com a primeira luz. Ele trancando a porta, ela já a esperá-lo na rua. E sem
levantar a cabeça – não fosse passar inadvertidamente pelo juízo perdido – o
homem começava a percorrer rua após rua.
Mas
a mulher não estava afeita a abaixar a cabeça. E andando, o homem percebia de
repente que os passos dela já não batiam ao seu lado, que seu som se afastava
em outra direção. Então parava, e sem erguer o olhar, deixava-se guiar pelo
taque-taque dos saltos, até encontrar à sua frente a ponta delicada dos sapatos
e recomeçar, junto deles, a busca.
Taque,
taque hoje, taque-taque amanhã, aquela estranha dupla começou a percorrer
caminhos que o homem nunca havia trilhado. Quem procura objetos perdidos vai
pelas ruas movimentadas, onde as pessoas se esbarram, onde a pressa leva à
distração, ruas onde vozes, rinchar de rodas, bater de pés, relinchos e
chamados se fundem e ondeiam. Mas a mulher que andava com a cabeça para o alto
ia onde pudesse ver árvores e pássaros e largos pedaços de céu, onde houvesse
panos estendidos no varal. Aos poucos, mudavam os sons, chegavam ao homem latidos,
cacarejar de galinhas.
O
olhar que tudo sabia achar não parecia mais tão atento. O que procurar afinal
entre fios de grama senão formigas e besouros? Os bolsos pendiam vazios. O
homem distraía-se. Um caracol, uma poça d’água prendiam sua atenção, e o vento
lhe fazia cócegas. Metia o pé na pegada achada na lama, como se brincasse.
Taque-taque,
conduziam-no os pés pequenos dia após dia. Taque-taque crescia aquele som no
coração do homem.
Achei!
Exclamou afinal. E a mulher sobressaltou-se. Achei! Repetiu ele triunfalmente.
Mas não era o que haviam combinado procurar. Na grama, colhida agora entre dois
dedos, o homem havia encontrado a primeira violeta da primavera. E quando
levantou a cabeça e endireitou o corpo para oferecê-la a ela, o homem soube que
ele também acabava de perder o juízo.
1- O homem, personagem principal do texto, é descrito ao
longo do conto. Como ele é? ________________________________ ________________________________
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2- A que se referem os adjetivos “fundos e pesados” e
“inchados”? ________________________________ ________________________________
3- No trecho “Mas aquele homem que não era, via longe.” (4.º
parágrafo), a que característica do homem o narrador se refere com a expressão
em destaque: ________________________________ ________________________________
4- Escreva, de outra forma, a frase “Com isso, fazia-se
companhia”, no quinto parágrafo, substituindo o SE por aquilo a que ele se
refere:
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5- Repare que há um diálogo no
trecho que vai do oitavo ao décimo parágrafo. Escreva-o, usando a pontuação
característica de um diálogo:
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6- O que significam as reticências
nesse trecho?
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7- A quem se refere a palavra
destacada em: “Devolveu as duas chaves do outro”?
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8- O que significa o termo “ seus
haveres”? (16.º parágrafo)?
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9- A chegada da mulher provocou
inicialmente duas mudanças na vida do homem. Quais?
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10- O que significa a expressão “afeita
a abaixar a cabeça”, no último parágrafo?
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