O texto que você vai ler a seguir é um fragmento da obra O caçador de palavras, de Walcyr
Carrasco. Júlio, o protagonista, sentia-se como uma página em branco, como se o
livro de sua vida ainda não tivesse realmente iniciado. Tinha perdido a família
muito cedo, trabalhava em uma pequena empresa, conhecia pouquíssima gente. Na
maior parte das noites, comia um sanduíche em um bar, ou tomava um copo de
leite quente, e entrava em um cinema.
O CAÇADOR DE
PALAVRAS
[...] Foi por causa de minha mania de ir
ao cinema que tudo aconteceu.
Naquela noite, eu estava cansado. E o
filme era bem aborrecido, para dizer a verdade. Só fiquei para a segunda sessão
porque estava chovendo, e não queria molhar os sapatos. Nos primeiros dez
minutos de filme, adormeci. Meu corpo escorregou da cadeira, e dormi tão
confortavelmente como em minha cama.
Acordei em plena escuridão e silêncio. No
início, nem sabia onde estava. Aos poucos, meus olhos foram se acostumando com
a falta de luz. Vi a tela branca, o letreiro de saída apagado. Não entendi,
imediatamente, o que estava acontecendo. Levantei atordoado. Com dificuldade,
empurrei a porta de entrada. Pesada. Saí do saguão. Só então percebi o que havia
acontecido: haviam esquecido de mim no cinema. Completamente. Talvez não
tivessem me visto. Olhei o relógio, estava no meio da noite.
Quis telefonar. Fui até o escritório, estava
trancado. Pensei em quebrar o vidro. Nunca senti tamanho desespero.
É incrível como um cinema vazio, à
noite, pode ser tétrico. Olhava para as paredes, via sombras. Ouvia ruídos. Ao
mesmo tempo, tentei raciocinar. Arrombar a porta, ou qualquer coisa do tipo,
poderia terminar em confusão. Chamar a polícia também: como explicar minha
presença, se todos pensariam, no primeiro instante, que eu era um ladrão? O
ideal, sem dúvida, era aguardar algumas horas, e esperar, pacificamente, que
alguém viesse abrir o cinema. Poderia, então, sair calmamente.
Como passar aquelas horas difíceis? Foi
quando vi, no canto do balcão da doceria, ajudando a apoiar uma lata, um livro
grosso. Fui até ele. Peguei. Era bem pesado.
Saí do saguão, onde só entrava a luz do
luar, e fui ao banheiro. Acendi a luz. No hall de entrada que levava aos dois
toaletes, havia um sofazinho velho. Sentei, e abri o livro. Era um dicionário
com a origem e o significado das palavras. No primeiro instante, pensei:
– Bem que eu preferia um livro policial!
Puro engano. Só
para me distrair, comecei a folheá-lo. Pouco a pouco, fui sendo envolvido pelo
universo fascinante das palavras. Elas começaram a brilhar para mim como
estrelas no céu. Da mesma forma que todas as pessoas, sempre vivi cercado por
verbos, substantivos, adjetivos. Com eles, dei forma a sentimentos, expressei vontades,
descobri risos, comuniquei emoções. Mas, assim como não se pensa
conscientemente nos dedos cada vez que se pega um garfo, também não me detinha
nas palavras. Elas faziam parte de mim como os olhos, os cabelos e as unhas.
Eram tão enredadas no cotidiano como o elevador do prédio, o ônibus, o cartão
de ponto. Apesar de fluírem através da vida com tanta facilidade quanto o ar
que respirava, as palavras eram um instrumento que eu usava mecanicamente.
De repente, tudo mudou.
Naquela noite, descobri que as palavras
guardam histórias. Percorrem os tempos, registrando emoções, atravessam vidas.
Entendi, pela primeira vez, o fascínio dos poetas ao brincar com elas, criando
versos e rimas que trazem os sons das marés, a cadência dos sentimentos, o
colorido das primaveras. A paixão de quem faz letras de músicas, sonoras por si
sós, onde as palavras remetem umas às outras, dançam entre si. Senti o encanto
dos escritores, que as usam para criar mundos e vidas, como se fossem bilhetes
para viagens fulgurantes. E, então, eu também me apaixonei, porque descobri,
mais que tudo, o quanto as palavras são vivas.
Deixei de ouvir os ruídos, de olhar as
sombras daquele cinema vazio. Era como se eu estivesse lendo um romance que
falava de todas as pessoas, de toda a humanidade. Quis seguir a trilha das
palavras.[...]
CARRASCO, WALCYR. São Paulo: Ática, 1994. p. 8-11
1. Logo no início do texto, o narrador diz que sua mania de
ir ao cinema foi a causa de um acontecimento inesperado. O que aconteceu de especial
com ele naquela noite?
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2.Sem saber o que fazer, o narrador imagina várias formas de
sair dali.
a) Por que ele abandona quase todas as ideias que teve?
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b) O que ele encontrou para fazer enquanto aguardava?
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3. O narrador abre o livro que encontrou sobre o balcão da
doceira.
a) Qual era a expectativa que ele tinha ao abrir o livro?
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b) o que ele provavelmente pensava a respeito de dicionários
antes dessa noite?
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c) Pouco a pouco o narrador passou a ter outra opinião sobre
os dicionários. Que comparação feita por ele exprime o novo tipo de relação que
ele passou a ter com as palavras?
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4. A descobertas das palavras e de seus significados faz com
que o narrador reveja a relação que até então ele tinha com as palavras.
a) até aquela noite, qual era, para ele, a utilidade de verbos,
substantivos e adjetivos?
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b) Considere essas comparações presentes na fala do
narrador;
§
Usamos as palavras como se pega um garfo.
§
As palavras fazem parte de nós como os olhos,
cabelos e unhas.
§
As palavras enredam-se no cotidiano como o
elevador, o ônibus, o cartão de ponto.
§
As palavras fluem como o ar que respiramos.
De acordo com as comparações, que tipo de uso ele fazia das
palavras?
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5. “De repente , tudo mudou”, o narrador afirma em um dos parágrafos do
texto.
a) O que o narrador descobriu sobre as palavras?
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b) Ao entender o fascínio dos poetas, dos compositores e dos
escritores pelas palavras, o que o narrador passa a ter em comum com esses
artistas?
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6. Por que, naquele cinema vazio, as palavras do dicionário
tiveram para o narrador um significado equivalente ao de um romance ou de um
longo filme?
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7. O titulo do texto é ”O caçador de palavras”
a) Que frase do último parágrafo traduz um desejo do narrador,
e ao mesmo tempo, esclarece o título do texto?
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b) Como você interpreta essa frase?
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FONTE: ORMUNDO, Wilton Se liga na língua: leitura, produção de texto
e linguagem : manual do professor / Wilton Ormundo, Cristiane Siniscalchi. — 1.
ed. — São Paulo : Moderna, 2018.