PáginasDESCRITOR

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

O MENINO - GABARITO

O MENINO  - GABARITO

          Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido. 

          Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos,  mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.

          É um menino normal, ou seja: subnutrido, desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram pra pedir.

          Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. É, como a maioria, um desses meninos de 11 anos que ainda não tiveram infância.

          Parece ser menor carente, mas, se é, não sabe disso. Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança- -problema. Anda descalço por amor à bola.

          Suas roupas são de segunda mão, seus livros são de segunda mão e tem a desconfiança de que a sua própria história alguém já viveu antes.

          Do amor não correspondido pela professora, descobriu que viver dói. Viveu cada verso de “Romeu e Julieta”, sem nunca ter lido a história.

          Foi Dom Quixote sem precisar de Cervantes e sabe, por intuição, que o mundo pode ser um inferno ou uma badalação, dependendo se ele é visto pelo Nelson Rodrigues ou pelo Gilberto Braga.

          De seu, tinha uma árvore, um estilingue zero quilômetro e um pássaro preto que cantava no dedo e dormia em seu quarto.

          Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.

          Trajava, na ocasião em que desapareceu, uns olhos pretos muito assustados e eu não digo isso pra ser original: é que a primeira coisa que chama a atenção no menino são os grandes olhos, desproporcionais ao tamanho do rosto.

          Mas usava calças curtas de caro‡, suspensórios de elástico, camisa branca e um estranho boné que, embora seguro pelas orelhas, teimava em tombar pro nariz.

          Foi visto pela última vez com uma pipa na mão, mas é de todo improvável que a pipa o tenha empinado. Se bem que, sonhador do jeito que ele é, não duvido nada.

          Sequestrado, não foi, porque é um menino que nasceu sem resgate.

          Como vocês veem, é um menino comum, desses que desaparecem às dezenas todos os dias.

          Mas se alguém souber de alguma notícia, me procure, por favor, porque... ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim.

ANYSIO, Chico. Um autorretrato inédito de Chico Anysio. O Globo, Rio de Janeiro, 28 mar. 2012. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/um-autorretrato-inedito-de-chico-anysio-4428439. Acesso em: 26 abr. 2022.

 

1. O texto é construído como se fosse um anúncio de busca de pessoa desaparecida.

a) Em que trecho isso fica explícito?

a) “Vou fazer um apelo. É o caso de um menino desaparecido.”

 

b) Em geral, o que caracteriza um texto desse tipo?

b) A identificação da pessoa desaparecida, seguida da descrição dela, incluindo traços físicos e psicológicos e o vestuário que a pessoa trajava quando foi vista pela última vez.

 

2. Com relação ao texto em estudo, responda:

a) Quais são as características físicas do menino?

a) Tem 11 anos, 30 quilos, olhos pretos de tamanho desproporcional ao tamanho do rosto.

 

b) Que tipo de vestuário o menino trajava quando foi visto pela última vez?

Estava descalço e usava roupas de segunda mão: calças curtas de caroá, suspensórios de elástico, camisa branca, boné

 

 

c) O que ele fazia quando foi visto pela última vez?

c) Provavelmente, estava empinando pipa, pois tinha uma em mãos.

 

d) Deduza: Qual era a condição social do menino?

Era um menino pobre.

 

3. O texto faz outras caracterizações do menino, além das físicas.

a) Que elementos mencionados dizem respeito:

• ao mundo infantil do menino?

Árvore, estilingue, pássaro preto, pipa, bola.

• ao romantismo precoce?

O amor não correspondido pela professora.

• à concepção de mundo dele?

A ideia de que o mundo pode ser um lugar de sofrimento ou um lugar de prazeres (inferno ou badalação)

 

b) Referindo-se ao menino, o narrador diz: “sonhador do jeito que ele é”. Qual personagem citado no texto também é um sonhador?

Dom Quixote.

 

4. Observe estas referências feitas ao menino: “é brasileiro”, “desses milhares de meninos”, “como a maioria”, “que desaparecem às dezenas”, “sua própria história alguém já viveu antes”.

 

a) As palavras e expressões destacadas nesses trechos singularizam a figura do menino desaparecido, facilitando seu reconhecimento?

a) Não. Elas correspondem a informações genéricas, que situam o menino em um grupo amplo, em um coletivo.

 

b) Que efeito esse tipo de referência ao menino produz no leitor?

b) Produz um estranhamento inicial, seguido pelo reconhecimento de que a situação do garoto (estar perdido, sem família nem orientação) diz respeito à parte significativa da infância do país.

 

5. O narrador também faz referências ao menino utilizando expressões como: “subnutrido”, “nasceram pra pedir”, “ainda não tiveram infância”, “sem resgate”. Que visão da infância se depreende desses trechos: feliz e bem cuidada ou desprotegida e carente?

Trata-se de uma visão de infância marcada pela carência e pela invisibilidade, portanto, “desaparecida” tanto no espaço como na visão das autoridades e das famílias, responsáveis pelo bem-estar das crianças.

 

6. Aos poucos, vai ficando claro o tema do texto e sua verdadeira intencionalidade.

a) Qual é o tema do texto?

a) O tema do texto é o descaso com qu e as autoridades brasileiras tratam a infância no país. Prova disso é o grande número de crianças que não têm suas necessidades básicas atendidas (alimentação, educação, higiene, etc.), vivendo à margem da sociedade e sem perspectivas de futuro.

b) Apesar de o texto abordar um grave problema da sociedade brasileira, ele não perde o humor. Explique como se constrói o humor nestes trechos:

• “[...] pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.”

O paralelismo de termos quantificaveis: anos, quilos, é quebrado por um termo não quantificável: o adjetivo brasileiro.

• “[...] com idade demais pra sua idade.”

Não é possível alguém ter uma idade diferente da que tem na realidade.

• “[...] é de todo improvável que a pipa o tenha empinado.”

Aqui há uma inversão de expectativa: a ideia de que a pipa tenha empinado o menino e não o inverso.

 

7. O texto faz referência a um órgão responsável pela recuperação de menores infratores. Qual é a visão do narrador a respeito desse órgão? Justifique sua resposta com um trecho do texto.

A visão do narrador é crítica, pois ele entende que esse órgão, em vez de educar e orientar as crianças, por vezes, acaba ensinando a elas a vida do crime, conforme demonstra o trecho “Nunca esteve na Febem, portanto, não teve tempo de aprender a ser criança-problema

 

8. No último parágrafo, há uma revelação importante para o desfecho do texto.

a) Qual é essa revelação?

 A de que o menino procurado é o menino que o narrador do texto foi um dia e do qual ele se perdeu.

b) Nesse sentido, o menino procurado se perdeu no espaço ou no tempo? Explique sua resposta.

O menino se perdeu no tempo, pois ficou no passado do narrador.

 

9. O narrador aponta todas as carências do menino que ele foi, mas, no final do texto, diz: “ou eu encontro de novo esse menino que um dia eu fui, ou eu não sei o que vai ser de mim”.

a) De acordo com sua interpretação, por que o narrador deseja encontrar o menino que ele foi?

a) Sugerimos abrir a discussão com a turma. Entre outras possibilidades, parece que a infância sofrida foi a base de tudo o que narrador se tornou. Reencontrar-se com o passado é uma forma de reafirmar seus caminhos e confirmar sua identidade.

 

b) O desaparecimento do menino deve ser visto como um fato concreto ou ele pode representar um desaparecimento no sentido figurado? Explique.

Ele pode representar um desaparecimento no sentido figurado, pois o menino pode ter desaparecido dentro do adulto que o narrador se tornou.

 

10. O texto “O menino” contém humor e lirismo. Contudo, além de provocar o riso e a emoção, ele também cumpre outra finalidade. Qual seria ela?

O texto cumpre a finalidade de fazer uma crítica ao descaso com que as crianças são tratadas por certas famílias e pelas autoridades no país.

 

A LINGUAGEM DO TEXTO

 

1. Releia estes trechos do texto:

• Ele tem 11 anos, mas parece menos; pesa 30 quilos, mas parece menos; é brasileiro, mas parece menos.

• Calado demais pra sua idade, sofrido demais pra sua idade, com idade demais pra sua idade. Observe os termos menos e demais, em destaque.

a) A que classe gramatical pertencem?

À classe dos advérbios.

 

b) O sentido dos dois termos é antagônico. No entanto, pode-se dizer que, no contexto em que aparece, o advérbio demais apresenta sentido equivalente ao sentido do advérbio menos? Justifique sua reposta.

Sim, pois os adjetivos calado e sofrido e a locução adjetiva com idade (idoso) implicam carência. Assim, correspondem a menos expansivo, menos feliz e menos jovem, ou seja, ao oposto do que todo menino deveria ser.

 

2. A palavra mas é empregada três vezes no primeiro dos dois trechos reproduzidos na atividade anterior.

a) Que ideia essa palavra expressa: de adição, de oposição, de explicação ou de causa?

De opocisão.

b) Considerando o contexto, como você justifica o emprego dessa palavra?

Ela inicia orações que expressam a ideia de que a criança parece não ter a idade que tem, pesa menos que o normal e não tem sua nacionalidade respeitada, pois é pouco desenvolvida na aparência física e na cidadania.

 

3. Compare os dois trechos a seguir.

• O menino era tímido, calado e choroso.

• “Tímido até a ousadia, seus silêncios gritavam nos cantos da casa e seus prantos eram goteiras no telhado de sua alma.” Nos dois trechos, há, essencialmente, a mesma informação. Contudo, um deles apresenta recursos próprios da literatura, como a expressividade e o uso de imagens.

a) Qual deles é mais expressivo?

O segundo trecho, que faz parte do texto lido.

 

b) Identifique as imagens empregadas no trecho que é mais expressivo.

São elas: “silêncios gritavam” e “goteiras no telhado de sua alma”.

 

4. Observe este trecho do texto:

É um menino normal, [...] desses milhares de meninos que não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram para pedir.

 

Identifique o trocadilho (jogo de palavras) que há nesse trecho e explique o efeito de sentido que ele provoca no texto.

O trocadilho ocorre em “não pediram pra nascer; ao contrário: nasceram para pedir” e reforça a condição desse menino: fruto de uma gravidez provavelmente não planejada por seus pais e com um futuro de miséria como criança pedinte nas ruas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário