A fábula do leão e dois bêbados
Decrépito o leão, terror dos bosques, e
saudoso de sua antiga fortaleza, espairecia um deles ao entardecer à sombra do
parque onde o prenderam.
Assim levava a vida, ou assim esperava a
morte.
Sua missão não era valorosa;
incumbia-lhe, todos os dias, e de preferência aos sábados e domingos, fingir
que era de fato um leão feroz e assustar os visitantes com pálidos rugidos.
Em troca, recebia três fartas refeições
ao dia (fora o breakfast), água fresca, sombra, agradável companhia, e o título
honorífico de rei das selvas, que na verdade era o que mais o comovia.
Mas não era de fato um leão de verdade;
faltavam-lhe a certeza de sua intrepidez, o horizonte aberto, a liberdade, que
não ia além do arame farpado entre as sebes disfarçado.
Tratava-se de um jogo previamente
combinado: em troca do alimento e da tranquilidade, o mísero leão, rugindo
apenas, aceitava digerir todas as afrontas.
Um belo dia aconteceu, porém, que três
bebuns, enganando-se de boteco, erraram o atalho e foram cair, por puro acaso,
nos domínios reservados ao leão domesticado. E tão bebuns estavam os
três-loucados que nem se deram fé do risco que corriam: a moita onde dormiam
desmaiados nada mais era que a juba da fera enjaulada.
Surpreendeu-se o leão com tamanha audácia,
que não constava nas cláusulas contratuais que assinara com o
empresário-empregador. E logo lhe veio à mente, num impulso atávico, o justo
desejo de provar daquele banquete que se oferecia assim de mão-beijada. De
fato, há muito o leão não saboreava um prato humano, como nos velhos tempos de
antanho.
Já se lambia o bicho, com sua língua
áspera e salivada.
Mas a civilização também cobra os seus
tributos - e o leão, que conhecia algo de Direito, antes de se lançar ao
ataque, resolveu reler o seu contrato, a ver se nas entrelinhas (sábio leão!)
não constava algo que o prejudicasse: pois não queria o rei das selvas perder o
emprego por justa causa. Pra tanto procurou um leão mais velho - e
presumidamente mais experiente - e lhe propôs a delicada questão: se era
lícito, naquela conjuntura, devorar os três bebuns incautos, que haviam
invadido o parque e ali dormiam.
O velho leão examinou o contrato,
verificou se não era falso, e concluiu que, pelo escrito, nada impedia
legalmente que o leão mais novo os devorasse. Mas enquanto consultavam a lei,
corria o tempo, de sorte que, por sorte, os três bebuns, passada a carraspana
despertaram para a vida. Sobressaltados, antes que o leão, apoiado na lei,
voltasse e os atacasse, trataram os três de fazer o que a situação impunha:
mandar-se.
E foi desta maneira que o leão perdeu o
acepipe, frustrando-se o ensejo de fartar-se com carne de primeira, tenra e
fresquinha (ainda por cima regada a canjebrina).
Amuado, foi novamente ao leão mais velho
(e mais experiente) queixar-se de que o excesso de escrúpulo contratual o havia
feito perder o nobre prato.
Ao que o mais velho respondeu, com a
sabedoria própria dos leões fabulosos:
- Queixas-te de barriga cheia, o que é
um mal. Se de fato estivesses com fome, certamente primeiro os teria devorado,
e só depois te lembrarias do contrato. Mas não te lastimes: quem faz o bem
sempre o tem. Nenhum leão está livre neste mundo de, amanhã, por acaso,
adormecer num parque e ser comido de surpresa por três bebuns esfomeados. A
vida não está difícil só para os animais, rapaz.
Vocabulário:
decrépito: velho, caduco
espairecer: entreter-se
honorífico: honroso
intrepidez: coragem
sebe: arbusto
juba: crina
audácia: coragem
cláusula: artigo; preceito
atávico: reaparecimento de uma característica dos
ascendentes
antanho: antigamente
incauto: imprudente
carraspana: bebedeira
acepipe: guloseima
ensejo: oportunidade
canjebrina: cachaça
escrúpulo: cuidado
1. O texto que você acabou de ler apresenta os elementos
essenciais da narrativa: personagens, fato, tempo, lugar (espaço), narrador.
a) Quem são as personagens?
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b) O que acontece?
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c) Onde acontece a história?
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2. O que seria necessário para que o animal desta fábula
fosse “um autêntico leão”?
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3. Por que o leão não devorou os bêbados? Copie a
alternativa mais acertada. Justifique sua escolha.
(A) Porque as cláusulas contratuais o proibiam.
(B) Porque, enquanto ele e o leão mais velho consultavam o
contrato, os três bêbados, conscientes do risco que corriam, fugiram.
(C) Porque, além de não querer perder o emprego, não estava
faminto.
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