A DESCOBERTA DA ESCRITA
Tentava escrever e eles surgiam, levando todo o material. Confiscavam e sumiam. Sem satisfações, mas também sem recriminações. Não diziam nada, olhavam e recolham o que estava sobre a mesa.
Tentou mudar de casa, não adiantou. Eles chegaram, apenas a caneta tocava o papel. Como se aquele toque tivesse a capacidade de emitir um sinal, perceptível somente por eles, como o infra som para um cachorro. Levaram todos os papéis. E, quando ele tentou comprar, as papelarias não venderam sema a requisição oficial. Nenhum tipo de papel, nada. Caderno, cada criança tinha direito a cotas estabelecidas. Desvio de cadernos era punido com degredo perpétuo. Rondou as padarias e descobriu que o pão era embrulhado em plásticos finos, transparentes. E, quando quis comprar um jornal, viu que as margens não eram brancas, vazias. Agora, havia nelas um chapado preto, para impedir que se escrevesse ali. Uma noite, altas horas, escreveu nas paredes. E pela manhã descobriu que eles tinham vindo e caiado sobre os escrito. Escreveu novamente. Caiaram, outra vez. Na terceira, derrubaram as paredes. Ele procurava desmontar caixas, aproveitar as áreas internas. Eles tinham pensado nisso, antes. As partes internas eram cheias de desenhos, ou com tintas escuras sobre as quais era impossível gravar alguma coisa. Experimentou panos brancos, algodão cru, cores leves como o amarelo, o azul claro. Eles também tinham pensado. As tintas manchavam o pano, borravam, as letras se confundiam.
Eles não proibiam, prendiam ou censuravam. Pacientemente, vigiavam. Controlavam. Dia a dia, minuto, segundos Impediam que ele escrevesse. Sem dizer nada, simplesmente tomando: objetos, lápis, canetas, cotos de carvão, pincéis, estiletes de madeira, o que ele inventasse.
Dois, cinco, doze anos se passaram. Ele experimentou fabricar papel, clandestinamente, em porões e barracos escondidos no campo. Eles descobriram, arrebentavam as máquinas, destruíam as matérias-primas.
Ele tentou tudo: vidros, madeira, borracha, metais. Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando. Constantes, sempre incansáveis, silenciosos.
Deixou o tempo correr. Fez que tinha desistido. Só pensava, escrevia dentro da própria cabeça tudo o que tinha. Esperou dois anos, cinco, doze. Quando achou que tinha sido esquecido, colocou o material num carro.
Tomou estradas para o norte, regiões menos povoadas. Cruzou pantanais, sertões, desertos, montanhas. Calor, frio, umidade. Encontrou uma planície imensa, a perder de vista. Onde só havia pedras. Ficou ali. Com martelo e cinzel, começou a escrever. Gravando bem fundo nas pedras imensas os sinais. Ali podia trabalhar, sem parar.
E o cinzel formava, lentamente, ás, bês, cês, dês, pês. Traços. Palavras, desenhos.
Ignácio de Loyola Brandão. O homem do furo na mão
& outras histórias. São Paulo: Ática, 1987. p. 29-30.
(Série Rosa dos Ventos).
Interpretação:
1 – Ao ler o título, em que você pensou? Sua hipótese se confirmou após a leitura? Justifique o título do texto.
Resposta pessoal do aluno. O título remete a um passado longínquo; provavelmente a expectativa dos alunos girará em torno das primeiras tentativas do homem de registrar sua fala.
2- Observe que, no primeiro período do texto, o autor refere-se a eles. O pronome pessoal é geralmente empregado no lugar de um nome que já é do conhecimento do leitor ou que será imediatamente citado. É o que ocorre nesse texto? Como você explica o emprego desse pronome?
Não. O autor usa o pronome sem antecedente. Além de instigar o leitor (queremos, a todo custo, saber quem são eles), a indefinição do referente confere ao texto um caráter alegórico: Eles são os órgãos repressores.
3 – Como o texto é narrado em terceira pessoa, os verbos estão conjugados na terceira pessoa do singular, quando se referem às ações da personagem principal, e na terceira pessoa do plural. Estes últimos têm que tipo de sujeito? Qual a importância disso para o texto?
Na maioria das vezes, os verbos aparecem sem o pronome, configurando um sujeito indeterminado. Esse recurso sintático faz aumentar o suspense, a curiosidade em torno do sujeito da ação.
4 – O texto apresenta uma progressão. De que maneira o autor a constrói?
A progressão na narrativa é construída de várias maneiras: enumerando ações (e insucessos); com indicações temporais (muitos anos passaram) e com a informação de que eles iam se revezando, como passar do tempo.
5 – No trecho: “Percebia, com o passar do tempo, que eles não eram os mesmos. Iam mudando, se revezando”, como se poderia explicar esse “revezamento”? A quem, concretamente, o autor estaria se referindo com esse texto? Procure estabelecer uma relação entre esses fatos e uma determinada época histórica vivida recentemente pelo povo brasileiro.
O autor se refere aos representantes dos órgãos repressores. Provavelmente, com a mudança do governo, os funcionários (ou censores) mudam também. O autor, alegoricamente, refere-se ao período da ditadura militar, em que se institui a censura nos meios de comunicação, da qual ele mesmo foi vítima.
6 – Como você imagina que seja “escrever dentro da própria cabeça”? Você costuma fazer isso? A quem atinge, comais intensidade, a impossibilidade de escrever?
Resposta pessoal do aluno.
7 – Esperar dois, cinco, 12 anos, até achar que tinha sido esquecido é um ato de resistência. O que, na sua opinião, manteve na personagem a vontade de escrever? Por que ele não desistiu se não tinha forças suficientes para enfrentar seus repressores?
Nos períodos de grande repressão política, o movimento de resistência é o que impede a morte total da cultura de um povo. Com atividades divulgadas apenas em círculos fechados, ou lutando na clandestinidade para ver chegar o dia da liberdade de um regime autoritário, os pensadores, intelectuais, artistas, mestres jamais desistem de divulgar as ideias que julgam acertadas para seu povo. Fingir que desistiram é apenas uma estratégia de preservação.
8 – O que a escrita, tão ardentemente desejada pelo personagem, estaria simbolizando no texto? Nesse sentido, o que significaria “gravar bem fundo nas pedras”?
A escrita simboliza a liberdade de expressão. “Gravar nas pedras” simbolizaria deixar suas ideias registradas para sempre Nesse sentido, entende-se o título do texto: a descoberta da escrita foi a concretização do desejo da personagem de poder expressar-se, escrever o que pensava e sentia: ele, finalmente, descobre uma maneira de escrever.
9 – Que processo de construção de período predomina no texto? Por que o autor o escolheu?
Predomina o processo de coordenação. A sequência quase interminável de tentativas para “furar o cerco” é reproduzida com a enumeração das várias ações da personagem.
10 – Observe a extensão dos períodos. Qual teria sida a intensão do autor ao construí-los assim?
O autor optou por períodos curtos, nos quais reproduz a ação da personagem e a reação dos opressores, alternadamente. Há um crescimento da violência no texto (arrebentavam as máquinas), o cerco vai se fechando até que a personagem decide fingir desistência de seus planos. A partir desse momento, os períodos se tornam ainda mais curtos, revelando apenas as atitudes da personagem.
11 – Observe também como foi construído o último parágrafo do texto e faça um comentário.
O último parágrafo revela a concretização do sonho da personagem. O autor intensifica o processo de diminuição dos períodos e encerra o texto apenas com frases nominais.
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