PáginasDESCRITOR

domingo, 10 de novembro de 2019

CONTO - O DIA EM QUE EXPLODIU MABATA-BATA - MIA COUTO INTERPRETAÇÃO


     CONTO -    O DIA EM QUE EXPLODIU MABATA-BATA ( MIA COUTO)

     De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grão e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível do vento.
         O espanto não cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda há um instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata-bata. O bicho pastava mais vagaroso que a preguiça. Era o maior da manada, régulo da chifraria, e estava destinado como prenda de lobolo do tio Raul, dono da criação. Azarias trabalhava para ele desde que era órfão.
       Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo das primeiras horas.
        Olhou a desgraça: o boi poeirado, eco de silêncio, sombra de nada.
       «Deve ser foi um relâmpago», pensou.
       Mas relâmpago não podia. O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saíra o raio? Ou foi a terra que relampejou?
       Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a ave do relâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntos os todos rios para nascerem para nascerem da mesma vontade da água. O ndlati vive nas suas quatro cores escondidas e só se destapa quando as nuvens rugem na rouquidão do céu. É então que o ndlati sobe aos céus, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, e lança seu vôo incendiado sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o. Fica na cova e ali deita a sua urina.
        Uma vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escovar aquele ninho e retirar os ácidos depósitos. Talvez o Mabata-bata pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia acreditar? O tio, não. Havia de querer ver o boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastre. Já conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar o corpo. O fogo mastiga, não engole de uma só vez, conforme sucedeu-se
        Reparou em volta, os outros bois assustados, espalharam-se pelo mato. O medo escorregou dos olhos do pequeno pastor.
        –         Não apareças sem um boi, Azarias. Só digo: é melhor nem apareceres.
        A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como sombras mas não encontravam saídas. Havia uma só solução: era fugir, tentar os caminhos onde não sabia mais nada. Fugir é morrer de um lugar e ele, com os seus calções rotos, um saco velho a tiracolo, que saudade deixava? Maus tratos, atrás dos bois. Os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho. O serviço arrancava-o cedo da cama e devolvia-o ao sono quando dentro dele já não havia resto de infância. Brincar era só com os animais: nadar o rio a boleia do rabo do Mabata-bata, apostar na briga dos mais fortes.
       Em casa, o tio advinha-lhe o futuro:
       –         Este, da maneira que vive misturado com a criação há-de casar com uma vaca.
       E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados. Por isso, olhou sem pena para o campo que iria deixar. Calculou o dentro do seu saco: uma fisga, frutos de djambalau, um canivete enferrujado. Tão pouco não pode deixar saudade. Partiu na direcção do rio. Sentia que não fugia: estava apenas a começar o seu caminho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da água. Na outra margem parou à espera nem sabia de quê.
        Ao fim da tarde a avó Carolina esperava Raul à porta da casa.
         Quando chegou ela disparou a aflição:
         -Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.
         –         O quê? Esse malandro vai apanhar muito bem, quando chegar.
         –         Não é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos …
         –         Aconteceu brincadeira dele, mais nada.
        Sentaram na esteira e jantaram. Falaram das coisas do lobolo, preparação do casamento. De repente, alguém bateu à porta. Raul levantou-se interrogando os olhos da avó Carolina. Abriu a porta: eram os soldados, três.
       –         Boa noite, precisam alguma coisa?
       –         Boa noite, viemos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde, foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.
      Outro soldado acrescentou:
      –         Queremos saber onde está o pastor dele.
      –         O pastor estamos à espera – respondeu Raul. E vociferou: – Malditos bandos!
      –         Quando chegar queremos falar com ele, saber como foi sucedido. É bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espalhar minas nesse lado.
       Despediram. Raul ficou, rodando à volta das suas perguntas. Esses sacana do Azarias onde foi? E os outros bois andariam espalhados por aí?
       –         Avó: eu não posso ficar assim. Tenho que ir ver onde está esse malandro. Deve ser talvez deixou a manada fugentar-se. É preciso juntar os bois enquanto é cedo.
      –         Não podes, Raul. Olha os soldados o que disseram. É perigoso.
       Mas ele desouviu e meteu-se pela noite. Mato tem subúrbio? Tem: é onde o Azarias conduzia os animais. Raul, rasgando-se nas micaias, aceitou a ciência do miúdo. Ninguém competia com ele na sabedoria da terra. Calculou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale.
      Chegou ao rio e subiu às grandes pedras. A voz superior, ordenou:
      –         Azarias, volta. Azarias!
Só o rio respondia, desenterrando a sua voz corredeira. Nada em toda à volta.   
    Mas ele adivinhava a presença oculta do sobrinho.
      –         Apareças lá, não tenhas medo. Não vou-te bater, juro.
Jurava mentiras. Não ia bater: ia matar-lhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estátua de escuro. Os olhos habituados à penumbra desembarcaram na outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta.
     –         Azarias?
     Não era. Chegou-lhe a voz de Carolina.
      –         Sou eu, Raul.
      Maldita velha, que vinha ali fazer? Trapalhar só. Ainda pisava na mina,  rebentava-se e, pior, estoirava com ela também.
      –         Volta em casa, avó!
      –         O Azarias vai negar de ouvir quando chamares. A mim, há-de ouvir.
      E aplicou sua confiança, chamando o pastor. Pro trás das sombras, uma silhueta deu aparecimento.
     –         És tu, Azarias. Volta comigo, vamos pra casa.
     –         Não quero, vou fugir.
      O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto pra saltar e agarrar as goelas do sobrinho.
     –         Vais fugir para onde, meu filho?
     –         Não tenho onde, avó.
     –         Esse gajo vai voltar nem que eu lhe chamboqueie até partir-se dos bocados – precipitou-se a voz rasteira de Raul
      –         Cala-te, Raul. Na tua vida nem sabes da miséria – E voltando-se para o pastor: – Anda meu filho, só vens comigo. Não tens culpa do boi que morreu.
    Anda ajudar o teu tio juntar os animais.
      –         Não é preciso. Os bois estão aqui, perto comigo.
      Raul ergueu-se, desconfiado. O coração batucava-lhe o peito.
      –         Como é? Os bois estão aí?
       –         Sim, estão.
     Enroscou-se o silêncio. O tio não estava certo da verdade de Azarias.
       –         Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois?
      A avó sorria pensando no fim das brigas daqueles os dois. Prometeu um prêmio e pediu ao miúdo que escolhesse.
      –         O teu tio está muito satisfeito. Escolhe. Há-de respeitar o teu pedido.
      Raul achou melhor concordar com tudo, naquele momento. Depois, emendaria as ilusões do rapaz e voltariam as obrigações do serviço das pastagens.
      –         Fala lá o seu pedido.
      –         Tio: próximo ano posso ir na escola?
     Já adivinhava. Nem pensar. Autorizar a escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento e ele falou de costas para o pensamento:
     –         Vais, vais.
     –         É verdade, tio?
     –         Quantas bocas tenho, afinal?
     –         Posso continuar ajudar nos bois. A escola só frequentamos da parte de tarde.
     –         Está certo. Mas tudo isso falamos depois. Anda lá daqui.
            O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da noite. O pequeno pastor engoliu aquele todo vermelho, era o grito do fogo estourando. Nas migalhas da noite viu descer o ndlati, a ave do relâmpago. Quis gritar:
      –         Vens pousar quem, ndlati?
      Mas nada não falou. Não era o rio que afundava suas palavras: era um fruto vazando de ouvidos, dores e cores. Em volta tudo fechava, mesmo o rio suicidava sua água, o mundo embrulhava o chão nos fumos brancos.
     –         Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido e prometente como o pai verdadeiro que morreu-me?
E antes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu e abraçou-a na viagem de sua chama.

1. o conto se inicia com a explosão do boi Mabata-bata. Descreva como aconteceu essa explosão.
............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
2. Qual foi a reação do pequeno pastor Azarias ao ver a explosão?
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
3. O boi diferenciava-se dos demais, O narrador chega a chamá-lo de "régulo da chifraria".  Veja uma das definições da palavra régulo no dicionário:
RÉGULO= CHEFE DE POVO INDIGENA OU DE PEQUENO ESTADO DA ÀFRICA. Considerando essa definição e esse apelido, qual era a importância de Mabata-bata?
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
4. O menino pensou que os bois poderiam ter sido relampejados, mas logo descartou essa hipótese. Que outra hipótese ele formulou?
............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................

5. Azarias foi tomado pelo medo do tio, pois este havia dito que ele não poderia perder nenhum boi. Neste momento da narrativa, ficamos conhecendo um pouco mais o pequeno pastor azarias. Como era a vida do menino?
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
6. Ao dizer que" os filhos dos outros tinham direito da escola. Ele não, não era filho" Que informações o narrador nos dá sobre o menino?
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
7. Como "não filho" o menino não tinha direito a infância. Transcreva o trecho que o leitor reconhece isso.
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
8. O que Azarias decide fazer para não ser castigado pelo tio?
..............................................................................................................................................................................................................................................................
9. Releia o excerto do conto:

Abriu a porta: eram os soldados, três.
                Boa noite, precisam alguma coisa?
                Boa noite, viemos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina esta tarde, foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.

a) Nesse diálogo entre soldados  e o tio de Azarias, é possível perceber o uso da linguagem que não ocorre no português do Brasil? Explique- os.
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................b) Qual pode ser a justificativa para essa variação?
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................

10. Com a chegada dos soldados à casa do tio Raul, ficamos sabendo o que tinha acontecido com o boi. Que informação os soldados trouxeram?
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
11. Releia o trecho:
               Queremos saber onde está o pastor dele.
               O pastor estamos à espera – respondeu Raul. E vociferou: – Malditos bandidos!
a) Inicialmente o tio Raul responde e depois vocifera. Explique essa diferença.
..............................................................................................................................................................................................................................................................b) Se o narrador tivesse usado gritou, teríamos o mesmo sentido?
.............................................................................................................................................................................................................................................................
12. O tio não obedeceu a orientação dos soldados e foi encontrar o sobrinho. O tio estava preocupado com o sumiço do menino?
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................

13. Quando o tio e a avó o encontram, Azarias impõe uma condição para voltar com eles para casa. Qual?
..............................................................................................................................................................................................................................................................14. Como você explica esse desejo tão grande de Azarias de ir à escola?
..............................................................................................................................................................................................................................................................

15. No momento em que o tio finge aceitar as condições do menino e o pequeno pastor vai ao encontro da avó Carolina, o que acontece/ descreva esse acontecimento.
.............................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................




11 comentários: