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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

CONTO CHUVA: A ABENSONHADA EXERCICIOS DE ESCRITA



CHUVA: A ABENSONHADA

            Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?
            Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.
            Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de-usar e profere suas certezas: 
            – Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este seu fato? 
            – Mas, Tia Tristereza: não está chover de mais?
De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.
Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade de estio se seguirá a punição das cheias?
Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que minha sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa:
– Lá em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a água.
            E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades.
            – Não acredita, senhor? Mesmo em minha casa já caíram.
            – Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?
            Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. Lá fora continua chovendo. O céu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta:
            – A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moçambique ...
            Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros. Por que motivo eu tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta, como eu, a atracção de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A janela: não é onde a casa sonha ser mundo?
            A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua de todas as cores. A Tia já dobrou as despedidas e está a sair quando eu a chamo:
            – Tristereza, tira o meu casaco.
Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saímos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.

(COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 57-62)

1. Descreva as personagens do conto.
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2. Qual o assunto principal sobre o qual conversam?
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3. Elas têm a mesma opinião sobre o assunto? Justifique.
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4. As personagens estão alegres devido a chuva, mas também a outro fato. Que fato é esse?
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5. Neologismo se refere a criação de novas palavras. Quais palavras do texto são neologismos?
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6. Você conhece algum neologismo?
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POR DENTRO DO TEXTO

1.   Quem são as personagens do conto? Descreva-as.

   O narrador-personagem, provavelmente jovem, bastante pensativo e reflexivo, e tia Tristereza, que é idosa e mostra-se sábia e conhecedora das crenças do seu país.

2.   Em que lugar ocorre o diálogo entre essas personagens?

 Elas estão dentro de uma casa.

3.   Descreva o assunto sobre o qual as personagens conversam. Elas concordam sobre o assunto que está sendo tratado?

As personagens conversam sobre uma festa que ocorrerá em breve e sobre a chuva. Os dois não têm a mesma opinião: ela

acredita que a chuva é um recado dos espíritos e ele não. Ela quer que ele se vista bem para ir à festa de Moçambique, mas

ele não quer usar a roupa que ela lavou e preparou.

 4.Transcreva em seu caderno apenas a alternativa que melhor exprime a opinião da personagem Tristereza sobre a chuva.

a) A chuva era um castigo dos deuses, assim como o período de estio que o povo havia enfrentado.

 b) A chuva serviria para limpar o povo de qualquer pecado e excesso que houvesse cometido durante o período de guerra.

c) A chuva estava lavando a terra do triste passado de guerra.

 

5. Releia este trecho:

A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

a)   A alegria que as personagens experimentam refere-se somente à chuva que cai após o período de seca?

Não. Na verdade, elas estão alegres porque a guerra está no fim.

b)   Comprove sua resposta ao item anterior com um trecho do terceiro parágrafo. Transcreva-o em  seu caderno.

“Em todo o Moçambique a guerra está parar”.

 6.  Releia este outro trecho:

A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.

• Em seu caderno, explique seu significado.

De acordo com o trecho, a paz não depende da vontade dos políticos, mas é influenciada por outras razões. No conto, a paz é atribuída à chegada da chuva, ou seja, à ocorrência de um fenômeno da natureza.

 TEXTO E CONSTRUÇÃO

 1.   Em sua opinião, que característica mais se destaca no texto? Por quê?

Resposta pessoal. Professor, espera-se que os alunos citem o uso criativo da linguagem e a presença de muitas palavras diferentes das que estamos acostumados.

2.Releia o título e o primeiro parágrafo do conto:

 Chuva: a abensonhada

 Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

 a)   As palavras destacadas podem ser localizadas no dicionário?

 Não.

b)   Observando o contexto, é possível definir o significado de “tintintinar”. Explique qual é ele.

     Barulho intermitente do chuvisco caindo, provavelmente batendo em alguma superfície metálica.

 c)   E quanto à palavra “indaguava”, por que também é possível defini-la? Explique.

É muito próxima de outra palavra que usamos: “indagava”, que significa “perguntava/ questionava”. Professor, incentive os alunos a perceberem que há uma junção entre o termo “indagar” com a palavra “aguar”, em uma provável tentativa de se referir à água da chuva.

 d)   As palavras “abensonhada” e “perfumegante” também são criações do autor. Observe-as e indique a partir de que outras palavras foram formadas.

Abensonhada – formada por meio da junção de duas palavras:

“abençoada” e “sonhada”.

Perfumegante – formada por meio da junção de duas palavras: “perfumada” e “fumegante”.

 e)   Agora, explique o significado de “abensonhada” e “perfumegante”, no contexto em que foram utilizadas.

Abensonhada – a chuva era abençoada e sonhada (desejada) porque o período de seca fora muito longo.

Perfumegante – a terra seca e quente da estiagem, ao ser molhada pela chuva, libera um vapor como o odor agradável de um perfume.

3. No texto de Mia Couto, há outras palavras formadas pela junção de termos existentes, como: “cantarosa”, “Tristereza” e “murmurrindo”. Explique como se deu a formação nesses exemplos.

Cantarosa – chuva que “canta” e que é “maravilhosa”, “gostosa” etc.

Tristereza – fusão de “triste” com “Tereza”, provavelmente definindo uma característica marcante da personagem.

Murmurrindo – rindo em murmúrio, rindo e falando

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