PRÓLOGO
O menino e o homem
Quando chovia, no meu tempo de menino, a casa
virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas
as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando e
trazendo baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para aparar a
água que caía e para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os
mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma
distração das mais excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal
correndo para lá e para cá, e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os
diferentes ruídos das gotas d´água retinindo no vasilhame, acompanhados do som
oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão, formavam uma alegre
melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de parede dando
horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro
da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos como entrada para a reunião da nossa
sociedade secreta. Depois de examinar o telhado, descia, aborrecido. Não
conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse penetrar tanta
água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela casa
cheia de mistérios.
[...]
EPÍLOGO
O homem e o menino
Paro de escrever, levanto os olhos do papel para o relógio de parede:
cinco horas. As sonoras pancadas começam a soar uma a uma, como antigamente em
nossa casa. É um relógio bem antigo. Foi do meu avô, depois do meu pai, hoje é
meu e um dia será do meu filho. Seu tique-taque imperturbável me acompanha
todas as horas de vigília o dia inteiro e noite adentro, segundo a segundo, do
tempo vivido por mim.
[...]
Cansado de tantas recordações, afasto-me do relógio e caminho até a
janela, olho para fora.
Assombrado, em vez de ver os costumeiros edifícios, cujos fundos dão
para o meu apartamento em Ipanema, o que eu vejo é uma mangueira ─ a mangueira
do quintal de minha casa, em Belo Horizonte. Vejo até uma manga amarelinha de
tão madura, como aquela que um dia quis dar para a Mariana e por causa dela
acabei matando uma rolinha. Daqui da minha janela posso avistar todo o quintal,
como antigamente: a caixa de areia que um dia transformei numa piscina, o
bambuzal de onde parti para o meu primeiro voo. Volto-me para dentro e descubro
que já não estou na sala cheia de estantes com livros do meu apartamento, mas
no meu quarto de menino: a minha cama e a do Toninho, o armário de cujo espelho
um dia se destacou um menino igual a mim...
Saio para a sala. Vejo meus pais conversando de mãos dadas no sofá, como
costumavam fazer todas as tardes, antes do jantar. Comovido, dirijo-me a eles:
─ Papai... Mamãe...
Mas eles não me veem. Nem parecem ter-me
ouvido, como se eu não existisse. Ganho o corredor, passo pela copa onde o
relógio está acabando de bater cinco horas. Atravesso a cozinha, vendo a Alzira
a remexer em suas panelas, sem tomar conhecimento da minha existência. Desço a
escada para o quintal e dou com um garotinho agachado junto às poças d´água da
chuva que caiu há pouco, entretido com umas formigas. Dirijo-me a ele, e
ficamos conversando algum tempo.
Depois me despeço e refaço todo o caminho
de volta até o meu quarto. Vou à janela, olho para fora. O que vejo agora é a
paisagem de sempre, o fundo dos edifícios voltados para mim, iluminados pelas
luzes do entardecer em Ipanema. Ouço o relógio soando a última pancada das
cinco horas. Viro-me, e me vejo de novo no meu apartamento.
Caminho até a mesa, debruço-me sobre a
máquina que abandonei há instantes. Leio as últimas palavras escritas no papel:
... Até desaparecer em direção ao infinito.
Sento-me, e escrevo a única que falta:
FIM
SABINO, Fernando. O menino no espelho.
1- Qual a causa do corre-corre na
casa do menino?
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2- Qual o trecho do texto que nos
deixa perceber que havia muitas goteiras?
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3- Como os mais velhos e o menino
encaravam as goteiras da casa?
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4- Após ler o prólogo e o
epílogo, responda quem é o narrador em cada uma das partes do romance.
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5- Um jogo de palavras foi usado
em cada uma das partes para antecipar essa informação. Onde ocorre e como se dá
o jogo de palavras?
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6- No trecho do epílogo “Cansado
de tantas recordações, afasto-me do relógio e caminho até a janela, olho para
fora.” A que se refere a palavra destacada?
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7- Onde morou o
narrador-personagem?
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8- Da janela do seu apartamento,
em Ipanema, o que o narrador-personagem imagina que vê e, depois do momento de
recordação, o que vê realmente?
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9- Que elementos são
característicos desse quintal, na infância, em Belo Horizonte?
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10- Que efeito causa no narrador
suas lembranças da infância?
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11- Por que os pais do
narrador-personagem e Alzira não o veem?
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12- Ao longo do epílogo, podemos
perceber, explicitamente, palavras que representam os estados físicos e emocionais
do narrador. Localize e transcreva essas palavras.
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13- Que elemento do apartamento
do narrador, em Ipanema, proporciona a viagem ao passado e o retorno ao
presente?
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