Crônica: Mila
Carlos Heitor Cony
Era pouco
maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos
atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não
caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela
também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me
para dono. Pior: me aceitou.
Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites
juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer
contra o vento?
Amá-la — foi
a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma
dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não
aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária,
encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria
disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.
Tendo-a ao meu
lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove
filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque
passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu
"fumos fidalgos'; como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era uma lady,
uma rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos
imaginários.
No sábado,
olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que
amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha
compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a
até o fim.
Eu me
considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que
houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi
possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que
eu acabasse a crônica para ficar com ela.
Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me
aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força,
sabendo que ela seria maior do que a saudade.
1) Nesse texto, o cronista revela o enorme sentimento de
amor entre ele e seu cão, do momento da adoção até o dia em que o levou para o
sacrifício.
a) Que trecho do texto revela o primeiro e o último contato
entre o cronista e seu cão?
b) Você já viveu ou vivencia experiência semelhante?
2) Com que propósito, na sua opinião, o cronista publicou
essa história em um jornal?
3) É comum a ideia de que são as pessoas que escolhem os
seus animais de estimação. Segundo o cronista, no momento da adoção foi Mila
que o escolheu como dono.
a) Por que você acha que o cronista inverteu essa ideia?
b) Em que outro momento o cronista confirma essa idéia?
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