SEFIES
Muita gente se irrita, e tem razão, com o
uso indiscriminado dos celulares. Fossem só para falar, já seria ruim. Mas
servem também para tirar fotografias, e com isso somos invadidos no Facebook
com imagens de gatos subindo na cortina, focinhos de cachorro farejando a
câmera, pratos de torresmo, brownie e feijoada.
Se depender do que vejo com meus
filhos —dez e 12 anos—, o tempo dos “selfies” está de todo modo chegando ao
fim. Eles já começam a achar ridícula a mania de tirar retratos de si mesmo em
qualquer ocasião. Torna-se até um motivo de preconceito para com os colegas.
“Fulaninha? Tira fotos na frente do
espelho.” Hábito que pode ser compreensível, contudo. Imagino alguém dedicado a
melhorar sua forma física, registrando seus progressos semanais. Ou apenas
entregue, no início da adolescência, à descoberta de si mesmo.
A bobeira se revela em outras
situações: é o caso de quem tira um “selfie” tendo ao fundo a torre Eiffel, ou
(pior) ao lado de, sei lá, Tony Ramos ou Cauã Reymond.
Seria apenas o registro de algo
importante que nos acontece —e tudo bem. O problema fica mais complicado se
pensarmos no caso das fotos de comida. Em primeiro lugar, vejo em tudo isso uma
espécie de degradação da experiência.
Ou seja, é como se aquilo que
vivemos de fato —uma estadia em Paris, o jantar num restaurante— não pudesse
ser vivido e sentido como aquilo que é.
Se me entrego a tirar fotos de mim
mesmo na viagem, em vez de simplesmente viajar, posso estar fugindo das minhas
próprias sensações. Desdobro o meu “self” (cabe bem a palavra) em duas
entidades distintas: aquela pessoa que está em Paris, e aquela que tira a foto
de quem está em Paris.
Pode ser narcisismo, é claro. Mas o
narcisismo não precisa viajar para lugar nenhum. A complicação não surge do
sujeito, surge do objeto. O que me incomoda é a torre Eiffel; o que fazer com
ela? O que fazer de minha relação com a torre Eiffel?
Poderia unir-me à paisagem, sentir
como respiro diante daquela triunfal elevação de ferro e nuvem, deixar que meu
olhar atravesse o seu duro rendilhado que fosforesce ao sol, fazer-me diminuir
entre as quatro vigas curvas daquela catedral sem clero e sem paredes.
Perco tempo no centro imóvel desse
mecanismo, que é como o ponteiro único de um relógio que tem seu mostrador na
circunferência do horizonte. Grupos de turistas se fazem e desfazem, há ruídos
e crianças.
Pego, entretanto, o meu celular:
tiro uma foto de mim mesmo na torre Eiffel. O mundo se fechou no visor do
aparelho. Não por acaso eu brinco, fazendo uma careta idiota; dou de costas
para o monumento, mas estou na verdade dando as costas para a vida.
(......)
Talvez as coisas não sejam tão
desesperadoras. Imagine-se que daqui a cem anos, depois de uma guerra atômica e
de uma catástrofe climática que destruam o mundo civilizado, um pesquisador
recupere os “selfies” e as fotos de batata frita.
“Como as pessoas eram felizes naquela
época!” A alternativa seria dizer: “Como eram tontas!”. Dependerá, por certo,
dos humores do pesquisador.
1.
Nesse texto, o autor, Marcelo Coelho, aborda o uso do telefone celular. De
acordo com o
texto,
NÃO é correto afirmar que o autor:
A)
vê, terminantemente, o uso do celular de forma negativa.
B)
critica o selfie banal, como fotografar-se tendo ao fundo a torre Eiffel.
C)
considera como entidades distintas a pessoa que está em Paris e a que tira foto
de quem está em Paris.
D)
considera razoável que alguém faça um registro de si mesmo com finalidade
prática.
2.
O texto tem como objetivo:
A)
descrever as múltiplas funções do celular.
B)
relatar situações corriqueiras e desinteressantes do uso ilimitado do celular.
C)
instruir os leitores sobre o uso adequado dos selfies.
D)
ilustrar o ponto de vista do autor sobre o uso dos selfies.
3.
Por suas características formais, por sua função e uso, o texto pertence ao
gênero:
A)
artigo de opinião por se tratar de um posicionamento do autor diante de um tema
atual.
B)
depoimento, pela apresentação de experiências pessoais.
C)
relato, pela descrição minuciosa de fatos verídicos.
D)
reportagem, pelo registro impessoal de situações reais.
4.
No trecho “Se depender do que vejo com meus filhos – dez e 12 anos –, o tempo
dos “selfies” está de todo modo chegando ao fim”, o travessão:
A)
destaca um esclarecimento.
B)
substitui os dois-pontos.
C)
indica a fala no discurso direto.
D)
isola um chamamento.
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