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domingo, 26 de fevereiro de 2017

INTERPRETAÇÃO O CALO

O CALO
          – O senhor vai precisar extrair esse calo, seu Antônio.
– Mas, doutor!?
– Coisa simples! Amanhã, lá pelas oito, o senhor passa pelo hospital e num instante nós retiramos esse incômodo. Anestesia local. Não vai doer nada.
O pacato Antônio, funcionário público há trinta anos, saiu do consultório cabisbaixo e meio nervoso. “Que ideia! – Depois de vinte e dois anos, vivendo com esse calo. Meu calo de estimação! A Eusébia resolveu implicar com ele! Coisa de mulher… Logo agora que eu faria bodas de prata com o calo!?”, praguejou Antônio entre dentes.
Eusébia, em casa, recebeu a notícia com satisfação. Aliás já esperava por isso. Afinal, há vinte e dois anos Antônio reclamava, dizia que o calo era o centro de seus problemas. Mas tirar o calo, tomar alguma providência, que é bom, nada. Nada mesmo.
– Graças a Deus, Antônio. Deus ouviu minhas preces.
– Tô arrependido, Eusébia!
– Arrependido!? Por quê?
– (…) O calo sempre me avisou sobre o tempo. É melhor que o Serviço de Meteorologia! Se vier chuva ele dói, uma dorzinha fina; se for calor, ele lateja e se for nublado, ele estufa. Até pensei levar o calo no programa do Sílvio Santos, você se lembra?
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– Quer saber de uma coisa? Sempre detestei esse calo. Eu gostaria de ter um marido com pé perfeito. Perfeito, entendeu?
Assim foi. Antônio se arrumou, tomou café, não deu uma palavra com Eusébia e foi para o hospital. Algo chateado, ansioso, pois afinal de contas, havia vinte e dois anos de convivência diária com aquele calo feio, macerado, duro, mas no fundo adorável.
Antônio subia as escadas principais do hospital quando, avisou o calo, a-dor-fininha-sinal-de-chuva começou. Foi a conta, Antônio tropeçou e caiu. Quebrou o calcanhar.
Uivando de dor foi levado por dois atentos enfermeiros até a sala de raio-X. Colocado numa maca, lá ficou esperando meia hora, quarenta minutos e como não aparecia ninguém, ele resolveu, de mansinho, se levantar e ir chamar alguém. E então aconteceu o pior – Antônio caiu da maca e se arrebentou todo. Diagnóstico: fratura da bacia com estiramento parcial da coluna. Sua família foi comunicada; seu médico, simples dermatologista, chamou uma equipe de ortopedistas, para tratar do caso, e nosso herói todo esticado foi internado no quarto 315.
– Doutor, a culpa foi minha! Fui eu que obriguei o Antônio a vir aqui.
– Calma, Dona Eusébia. Não chore, por favor. Seu marido vai para casa dentro de 15 dias.
– Quinze dias, doutor?!
– Dona Eusébia, foi o destino! Os ossos demoram um pouco para se consolidar. Tenha paciência. Ele está sendo muito bem tratado. Os ortopedistas só usaram dezoito quilos de gesso.
– Só!? (E chorou.)
– O importante é que ele fique imóvel. Completamente imóvel.
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– Dona Eusébia, venho lhe comunicar que seu marido pegou uma pneumonia.
– Doutor!? Como isso aconteceu?
– É porque ele está imóvel há muito tempo.
– Mas não foi o senhor mesmo que disse que ele não devia se mexer, doutor?
– Mas essas coisas acontecem, Dona Eusébia. Fique calma, por favor. Nós vamos chamar um pneumologista.
– Um, o quê? (E chorou.)
– Um médico de pulmão!
E foi o médico de pulmão entrar para começar a desgraça. Primeiro ele meteu um tubo goela abaixo de Antônio, depois colocou-o no soro, deu uma série de injeções e comunicou à chorosa Eusébia:
– Dona Eusébia, infelizmente apareceu um novo problema.
– Outro!? Qual, doutor?
– Examinando o pulmão, notei que o coração de seu marido não anda nada bem. Tá trotando mais que cavalo no grande prêmio.
– E agora?
– Vamos chamar um cardiologista!
– Eu não quero ficar viúva não! (E Eusébia chorou.)
– Calmo, Dona Eusébia. Tudo vai dar certo!
O cardiologista entrou como um tufão. Era eficientíssimo. Colocou o estetoscópio no peito, pescoço e barriga do Antônio. Ouviu tudo a que tinha direito. Depois tirou a pressão, um eletrocardiograma e disse:
– Dona Eusébia, o seu marido não tem nada de coração.
Eusébia já vestida de preto, pois esperava pelo pior, sorriu toda alegre.
– É mesmo, doutor? Que bom! Então não vai acontecer o pior?
– Pelo coração não! Mas pelo cérebro eu não dou certeza alguma. Chame um neurologista imediatamente! A propósito, os rins não estão funcionando bem. Aproveite e chame um nefrologista também.
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Antônio estava agonizante. A equipe médica confabulava em torno do leito. Enfermeiras engomadíssimas andavam e zuniam por toda parte. Máquinas, termômetros e aparelhos dançavam em torno de Antônio que dava os últimos suspiros. Eusébia, acabada, isolada, assistia a tudo com desespero e dor. Se sentia culpada e pressentia sua existência sem Antônio, sem amor ou carinho.
Nesse instante, um dos médicos se aproximou e Eusébia:
– Doutor, eu queria dar um último beijo nele. Um afago, um último adeus!
Todos os médicos concordaram de imediato e Eusébia se postou junto ao leito. Mas onde beijar? Se Antônio era uma massa de gazes, tubos, gessos e fios. Eusébia olhou bem e achou um pé descoberto, a única parte possível de ser acariciada. Eusébia se curvou e viu, imaginem, o calo. Altivo, intacto e vivo. E, sem raiva ou vergonha, Eusébia beijou o calo do amado. E para surpresa de todos o moribundo se mexeu.
Acreditem, no quarto beijo Antônio espirrou. E, de afago em afago no calo, Eusébia conseguiu o impossível – curar Antônio.
Enfim, Antônio voltou ao lar com o calo e eles viveram felizes para sempre.
Moral da história – O amor tem razões que até os médicos desconhecem.
(DOC COMPARATO. O melhor da crônica brasileira. Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1981)

Responda:

1. Quais os principais personagens do texto?
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2. Que tipo de homem era Antônio e qual a sua profissão?
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3. Por que Antônio procurou um médico?
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4. Por que, apesar de reclamar do calo há vinte e dois anos, Antônio não tomava nenhuma providência?
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5. Para Antônio, o calo desempenhava importante função. Qual era essa função?
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6. Que fato originou a primeira desgraça de Antônio já no hospital?
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7. Qual foi a causa do segundo infortúnio de Antônio?
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8. Como se sentiu Eusébia após o duplo acidente?
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9. Quando o paciente parecia não ter mais salvação, Eusébia resolveu despedir-se, dando-lhe um beijo. Como se deu esse fato?
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10. Qual foi, na sua opinião, a razão principal para que Antônio se curasse?

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