TENTAÇÃO
Ela
estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era
ruiva.
Na rua vazia as
pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de
sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no
ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço
a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado
na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras,
desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de
morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia
futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto
ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a
salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um
amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi
quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A
possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma
senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce
sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele
trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido,
acostumado, cachorro.
A menina abriu os
olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua
vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos
seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina
que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir.
Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um
grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou
por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos
de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se
disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não
havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com
urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e
de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas
ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá
estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam
profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho
se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas
ambos eram comprometidos.
Ela com sua
infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse
uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava
impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e
saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez
que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal
acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra
esquina.
Mas ele foi mais
forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
__________________
Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. Felicidade
clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
1 Quem são as personagens principais? O que elas têm em
comum?
2. O que a menina fazia sentada na porta de casa, às duas
horas da tarde?
3. Onde se passa a história? Retire do texto uma frase que
apresenta uma característica marcante do cenário.
4.De acordo com o texto, como a menina se sentia em relação
a outras pessoas? Retire do texto uma frase para justificar sua resposta.
5. “Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava.” O que
a menina suportava?
Indique a alternativa que melhor responde a questão:
(a) a pessoa que esperava o bonde (b) a
bolsa velha (c) o calor e a
solidão (d) sua mãe
6. “O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com
alça partida.” Do que a bolsa a salvava?
(a) do calor excessivo (b) da solidão,
já que a bolsa era sua companhia
(c) das brigas com a mãe (d) do homem que esperava o bonde
7) No texto, quem é o narrador?
( a ) a mãe
(c) alguém que não presente na história
(b ) alguém presente na história, mas sem participar
muito (d) a menina ruiva
8) Retire do texto
um trecho em que se percebe a presença do narrador como personagem.
9) O que o narrador fazia naquele lugar ?
10)Pode-se dizer que o narrador se identifica com a menina?
Por quê?
11) O cão basset provoca uma mudança na cena inicial. Qual
a reação da menina e do cão quando se veem ?
12) “Mas ambos eram comprometidos.” Segundo o texto, com o
que eles eram comprometidos ? O que isso pode significar?
13) Por que o cachorro não olhou para trás?
14) Considerando a reação da menina e do cão quando se
encontram e a resposta à questão 10, o que o título TENTAÇÃO pode indicar?
13) Qual é o tema central do texto?
Questões para debater:
No texto, a menina se sente diferente dos outros, o que
intensifica a solidão dela. Ser diferente dos demais gera solidão? Você já se
sentiu excluído ou sozinho por ser diferente dos outros? Qual é sua opinião
sobre isso?
RESPOSTAS:
1. A menina e o
basset. Ambos são ruivos.
2. Resposta
pessoal - Ela olhava o movimento...tomava sol... esperava passar o soluço etc.
3. No bairro
Grajaú, Rio de Janeiro. “ Na rua vazia as pedras vibravam de calor”
4. Se sentia
diferente, discriminada, provavelmente porque era ruiva. “Numa terra de
morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária.”
5. Resposta C
6. Resposta B
7. Resposta B
8. “Olhamo-nos sem
palavras...”
9. Provavelmente
espera o bonde. Em certo trecho ele diz ele diz “Na rua deserta nenhum sinal de
bonde.”
10. Sim. Resposta
pessoal. Talvez o narrador se sentisse
assim porque o calor era insuportável e o bonde não vinha logo; vendo a menina
ruiva “numa terra de morenos”, sozinha, sem nada de interessante para fazer,
naquele calor insuportável.
11. Resposta
pessoal. Sugestão: Se identificaram um com o outro: ambos eram ruivos e solitários,
poderia nascer daí uma grande amizade.
12. Ela estava
comprometida com sua infância e o cão, com sua natureza aprisionada. Isso
significa que eles não podem ficar juntos,
pois têm naturezas diferentes, não podem fazer companhia um ao outro.
13. Pode se referir
ao impulso de ficarem juntos ( a menina ruiva e o basset ruivo), uma tentação
de se pertencerem.
14. O tema central é
a solidão.
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