CONTO 9º ANO DE MUITO PROCURAR RIO18
DE MUITO PROCURAR
Aquele homem
caminhava sempre de cabeça baixa. Por tristeza, não. Por atenção. Era um homem
à procura. À procura de tudo o que os outros deixassem cair inadvertidamente,
uma moeda, uma conta de colar, um botão de madrepérola, uma chave, a fivela de
um sapato, um brinco frouxo, um anel largo demais.
Recolhia, e ia
pondo nos bolsos. Tão fundos e pesados, que pareciam ancorá-lo à terra. Tão inchados,
que davam contornos de gordo à sua magra silhueta.
Silencioso e
discreto, sem nunca encarar quem quer que fosse, os olhos sempre voltados para
o chão, o homem passava pelas ruas despercebido, como se invisível. Cruzasse
duas ou três vezes diante da padaria, não se lembraria o padeiro de tê-lo
visto, nem lhe endereçaria a palavra.
Sequer ladravam
os cães, quando se aproximava das casas.
Mas aquele homem
que não era, via longe. Entre as pedras do calçamento, as rodas das carroças,
os cascos dos cavalos e os pés das pessoas que passavam indiferentes, ele era
capaz de catar dois elos de uma correntinha partida, sorrindo secreto como se
tivesse colhido uma fruta.
À noite, no
cômodo que era toda sua moradia, revirava os bolsos sobre a mesa e, debruçado sobre
seu tesouro espalhado, colhia com a ponta dos dedos uma ou outra mínima coisa,
para que à luz da vela ganhasse brilho e vida. Com isso, fazia-se companhia. E
a cabeça só se punha para trás quando, afinal, a deitava no travesseiro.
Estava justamente
deitando-se, na noite em que bateram à porta. Acendeu a vela. Era um moço.
Teria por acaso
encontrado a sua chave? Perguntou. Morava sozinho, não podia voltar para casa sem
ela.
Eu... Esquivou-se
o homem. O senhor, sim, insistiu o moço acrescentando que ele próprio já havia
vasculhado as ruas inutilmente.
Mas quem disse...
resmungou o homem, segurando a porta com o pé para impedir a entrada do outro.
Foi a velha da
esquina que se faz de cega, insistiu o jovem sem empurrar, diz que o senhor
enxerga por dois.
O homem abriu a porta.
Entraram. Chaves
havia muitas sobre a mesa. Mas não era nenhuma daquelas. O homem então meteu as
mãos nos bolsos, remexeu, tirou uma pedrinha vermelha, um prego, três chaves.
Eram parecidas, o moço levou as três, devolveria as duas que não fossem suas.
Passados dias
bateram à porta. O homem abriu, pensando que fosse o moço. Era uma senhora.
Um moço me
disse... Começou ela. Havia perdido o botão de prata da gola e o moço lhe havia
garantido que o homem saberia encontrá-lo.
Devolveu as duas
chaves do outro. Saiu levando seu botão na palma da mão. Bateram à porta várias
vezes nos dias que se seguiram. Pouco a pouco espalhava-se a fama do homem. Pouco
a pouco esvaziava-se a mesa dos seus haveres.
Soprava um vento
quente, giravam folhas no ar, naquele fim de tarde, nem bem outono, em que a
mulher veio. Não bateu à porta, encontrou-a aberta. Na soleira, o homem
rastreava as juntas dos paralelepípedos. Seu olhar esbarrou na ponta delicada
do sapato, na barra da saia. E manteve-se baixo.
Perdi o juízo,
murmurou ela com voz abafada, por favor, me ajude.
Assim, pela
primeira vez, o homem passou a procurar alguma coisa que não sabia como fosse.
E para reconhecê-la, caso desse com ela, levava consigo a mulher.
Saíam com a
primeira luz. Ele trancando a porta, ela já a esperá-lo na rua. E sem levantar
a cabeça ─ não fosse passar inadvertidamente pelo juízo perdido ─ o homem
começava a percorrer rua após rua.
Mas a mulher não
estava afeita a abaixar a cabeça. E andando, o homem percebia de repente que os
passos dela já não batiam ao seu lado, que seu som se afastava em outra
direção. Então parava, e sem erguer o olhar, deixava-se guiar pelo taque-taque
dos saltos, até encontrar à sua frente a ponta delicada dos sapatos e
recomeçar, junto deles, a busca.
COLASANTI. Marina. Histórias de um viajante. São Paulo:
Global, 2005.
1– O homem, personagem principal do texto, é descrito ao
longo do conto. Como ele é?
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2 – A que se referem os adjetivos “fundos e pesados” e
“inchados”?
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3 – No trecho “Mas aquele homem que não era, via
longe.” (4.º parágrafo), a que característica do homem o narrador se refere
com a expressão em destaque:
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4 – Escreva, de outra forma, a frase “Comisso, fazia-se companhia”,
no quinto
parágrafo, substituindo o SE por aquilo a que ele se refere:
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5 – Repare que há um diálogo no trecho que vai do oitavo ao décimo
parágrafo. Escreva-o, usando a pontuação característica de um diálogo:
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6 – “ Passados dias bateram à porta. O homem abriu, pensando
que fosse o moço. Era uma senhora. Um moço disse...Começou ela.” O que
significam as reticências nesse trecho?
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7 – A quem se refere a palavra destacada em: “Devolveu as duas
chaves do outro”?
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8 – O que significa o termo “ seus haveres”? (16.º
parágrafo)?
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9 – A chegada da mulher provocou inicialmente duas mudanças na
vida do homem. Quais?
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10 – O que significa a expressão “afeita a abaixar a
cabeça”, no último parágrafo?
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